Por Luiz Calcagno (http://www.correiobraziliense.com.br)
Pouca gente sabe, mas o endereço QSB 12/13, de Taguatinga, abriga em um só lugar teatro, oficina de artesanato, ateliês de costura e de instrumentos musicais, e até um Bicicentro – local de empréstimo de bicicletas
Os três blocos de prédios ganharam cores em forma de grafite, O conjunto de blocos tem cerca de 200 metros de comprimento, mas é preciso caminhar muito mais para conhecer a fundo o Mercado Sul. O endereço, na QSB 12/13, de Taguatinga Sul, às margens da Samdu, ainda pouco conhecido dos moradores da região, tornou-se referência de ocupação urbana, produção cultural e economia solidária. Os três blocos de prédios de dois andares enfileirados guardam um teatro de bolso, uma oficina de artesanato, uma de reciclagem, um ateliê de reparos e fabricação de instrumentos musicais, um de costura, brechós e até um local de empréstimo de bicicletas, que funciona com doações. Muita gente vive e produz no local, e uns ajudam os outros.
A história dos pavilhões de pequenos prédios remonta aos primórdios de Taguatinga. Na década de 1960, era um pequeno, porém agitado, centro comercial, que perdeu força e movimento diante do crescimento de outras áreas da cidade. Aos poucos, o endereço foi esquecido pela população em geral. Guardava apenas algumas lojas de estofamento e oficinas. À medida que um ou outro estabelecimento fechava, a região caía ainda mais no esquecimento, até chegar um momento em que, apesar de ainda manter algumas lojas abertas e pessoas morando em apartamentos de sobrelojas, a QSB 12/13 ganhou fama de área de tráfico e prostituição. Então, uma dupla de luthiers se mudou para o local.
Pai e filho, os fabricantes de violões João Pedro Adem da Silva, 80 anos, mais conhecido como Mestre Dico, e Alexandre Adem Alves, 50, também formavam uma dupla caipira: Advogado e Engenheiro chegaram a gravar alguns discos de vinil. Eles eram proprietários de um dos pequenos prédios, comprado na época da construção. A mudança ocorreu somente na década de 1990, mas era o começo de uma transformação que mudaria o endereço para sempre. “Viemos fazer uma visita e vimos que a área estava abandonada. As pessoas tinham medo de passar por aqui. Começamos a movimentar a área, pedíamos policiamento, e começamos a chamar amigos para ocuparem as lojas”, lembra Alexandre.
Mestre Dico morou na sobreloja do ateliê durante muitos anos. Alexandre conhecia o mamulengueiro Chico Simões e o parceiro de trabalho dele, Walter Cedro. No início dos anos 2000, ele os convidou para montar um teatro de bolso na loja ao lado. O Teatro e Centro Cultural Invenção Brasileira, fundado por Chico em 1987, mudou-se para lá e, em pouco tempo, as transformações no endereço, então apelidado de Beco, tomaram forma. Aos poucos, a área foi sendo revitalizada e ganhando os coloridos e os grafites que marcam tanto o ambiente. “Começamos a fazer festivais, chamar as pessoas”, completa Alexandre. “Montamos espetáculos e ficou tudo mais movimentado. Nossa primeira festa de comemoração foi em 30 de janeiro de 2002”, recorda Walter.
Cooperação A meta agora é conseguir que o local seja tombado como patrimônio de Taguatinga, para garantir a produção cultural e escapar da especulação imobiliária. A ação mais polêmica foi a ocupação, em 7 de fevereiro, de alguns imóveis do terceiro pavimento, abandonados há anos. Artistas, artesãos e até moradores brigam na Justiça com os proprietários para que os locais, antes refúgios de moradores de rua, permaneçam sob os cuidados deles, que conseguiram uma liminar judicial para ficar Em troca, pagam água, luz e fazem reparos no prédio.
O educador Abder Paz, 27, entre idas e vindas, vive no local há oito anos. Ele conta que, com a ação de ocupação, foi possível criar um espaço gratuito de produção para artesãos que não têm oficina própria, além do Bicicentro, um local de empréstimo de bicicletas. “Há três anos, alugamos esses prédios por R$ 900. Éramos cinco grupos. Reformamos. De um ano para outro, eles passaram a nos cobrar cerca de R$ 1,3 mil. Não pudemos mais pagar e saímos. O resultado é que o local voltou a ficar abandonado. Segundo o Estatuto das Cidades, se a propriedade particular não cumpre sua função, pode ser desapropriada. É com isso que contamos”, explica.
Na visão do artesão Virgílio Mota, 64, o Governo do Distrito Federal deveria olhar para o Beco com mais atenção. Virgílio trabalha fazendo móveis, caixas e malas com papelões e sacos de cimento. Ele usa a água das máquinas de lavar da vizinhança para limpar a matéria-prima do trabalho. Além disso, criou diversas das ferramentas que usa no estabelecimento, e também faz a cenografia dos espetáculos do Invenção Brasileira. “Quando alguém precisa de um móvel novo, vem aqui e eu ensino a fazer. É uma oficina aberta. Se as crianças das escolas públicas viessem ao beco, teriam muito o que aprender. Posso ensinar matemática, geometria, física e química, por exemplo”, garante. “Gosto muito de viver no Mercado Sul. Aqui, se alguém tem um problema, não finge que está tudo bem. Todos nos ajudamos, dividimos. Vivemos em um local à parte”, destaca.
Apaixonada pela cultura, Raimunda da Rocha Falcão, 61, trocou o município de Cocos, na Bahia, pelo Mercado Sul. Ela faz roupas, que vende em um brechó no local, e também produz o figurino dos espetáculos do teatro. “Vim visitar meu filho e ele pediu que eu ficasse um tempo a mais. Nesse período, conheci os meninos da arte e me apaixonei”, revela.
As filmagens e os projetos gráficos de eventos culturais do Beco, da rádio on-line, que eles criaram para o local, ou de espetáculos do Invenção Brasileira, ficam a cargo do estúdio Gunga. O nome, incomum para alguns, remete ao berimbau — principal instrumento de uma roda de capoeira, que dá o ritmo da música. Uma das proprietárias do local, Nara Oliveira, 28, conta que a empresa também funciona em um esquema de economia solidária. Eles produzem documentários e animações, e usam programas de computadores livres para o trabalho. “Cada loja do Mercado Sul é um núcleo de produção de uma rede de apoio que criamos. Chamamos nosso serviço de made in Beco”, sorri.