Fonte: http://camp.org.br Por Talita Jabs Eger
Ocorreu, no início de abril deste ano, a Conferência Temática de Finanças Solidárias intitulada “Economia e Democracia: Políticas de Financiamento, Finanças Solidárias e Ambiente Institucional para a Economia Solidária”, e é a partir dos debates que alimentaram esta conferência, principalmente em torno dos eixos “democracia” e “finanças solidárias”, que eu gostaria de pautar a discussão que vou empreender aqui³.
O que tem a ver finanças solidárias com democracia, em seu sentido mais amplo? Ou, em outros termos, qual a relação direta que podemos estabelecer entre as experiências de finanças solidárias, em toda sua diversidade e complexidade, com a noção que temos de democracia (ou com a expectativa que temos em relação a ela)? Quando nos detemos, por exemplo, sobre números como aqueles apresentados pela Oxfam⁴ que apontam para o fato de que a renda conjunta de 3,5 bilhões de pessoas representa o mesmo que a renda das 85 pessoas mais ricas do planeta, confirmamos, ou melhor, reafirmamos o que nossa experiência diária nos mostra: o caráter excludente do sistema capitalista. Sistema esse, responsável pelo acúmulo de riquezas, pelo uso irresponsável de recursos, por originar uma lacuna econômica e social intransponível entre os seres humanos – entre os assim chamados, “ricos” e “pobres”. Trata-se aqui de pontuar o que caracteriza, em termos gerais, a pobreza. Segundo o teórico premiado, Deepa Narayan:
Pobreza é fome, é falta de abrigo. Pobreza é estar doente e não poder ir ao médico. Pobreza é não poder ir à escola e não saber ler; pobreza é não ter emprego, é temer o futuro, é viver um dia de cada vez. Pobreza é perder o seu filho para uma doença trazida pela água não tratada. Pobreza é falta de poder, falta de representação e liberdade. (NARAYAN, 2000)⁵.
Me atreveria a resumir dizendo apenas: capitalismo é pobreza. Por mais que essa afirmação pareça precipitada e incoerente com os números que acabo de apresentar (que indicam uma riqueza, em termos de capital financeiro, bastante exacerbada), é a própria forma de organização do sistema capitalista, que possibilita a concentração de riqueza nas mãos de poucos, a grande responsável por constituir um cenário em que coexistem inúmeras modalidades de pobreza. Assim, quando falamos em concentração de riqueza, estamos falando também em concentração de poder. Poder sobre a riqueza produzida através das mãos de milhares de trabalhadores e trabalhadoras e deles e delas expropriada, poder sobre os processos e meios de produção, poder, em última instância, sobre a vida e sobre a morte. Desta forma, parece-me inviável discutirmos sobre democracia sem pautarmos a lógica do modelo econômico vigente.
É contra tudo isso que se ergue uma outra forma de organização do trabalho, da comercialização, das finanças, das relações entre humanos e não humanos. Esta outra economia, que aqui chamamos de Economia Solidária, é a grande responsável por fortalecer, através do protagonismo das iniciativas populares, ações que almejam transformar as relações de poder existentes e avançar no processo de efetiva democratização, pautado na centralidade da autogestão e da solidariedade. Deste modo, gostaria de avançar para o tema específico que nos reúne aqui: as finanças solidárias. Quando falamos em finanças solidárias, estamos apontando para ferramentas financeiras vinculadas às noções de desenvolvimento territorial, dinâmicas locais e organização comunitária. Estamos falando de experiências responsáveis desde a década de 70 pelo fomento às atividades produtivas em comunidades “pobres” e, mais especificamente, experiências responsáveis pelo fomento de outras iniciativas de economia solidária. Pobres aqui, no sentido de excluídas tanto do mercado de trabalho quanto do sistema financeiro. Pobres no que diz respeito ao acesso e as condições básicas de sobrevivência.
Estas experiências, justamente por surgirem em contextos específicos e a partir de dinâmicas e necessidades locais, assumem várias expressões em todo o país. Se atentarmos para apenas três destes atores que compõem o campo de atuação das finanças solidárias – os Bancos Comunitários de Desenvolvimento, as Cooperativas de Crédito Solidário e os Fundos Rotativos Solidários – já conseguiremos visualizar a complexidade de suas ações e de sua incidência e importância para a Economia Solidária. O trecho que segue é um recorte do documento de referência da Conferência Temática de Finanças Solidárias que procura caracterizar cada uma destas iniciativas (trago-o na íntegra):
Os Bancos Comunitários de Desenvolvimento têm como principal objetivo a reorganização das economias locais, a apropriação dos meios de produção e financeiros através do crédito, e a autogestão na produção do desenvolvimento de determinado território. Os Fundos Rotativos Solidários organizam poupanças comunitárias geridas coletivamente e que proporcionam apoio tanto aos seus membros, quanto ao desenvolvimento da comunidade. As Cooperativas de Crédito Solidário, em grande medida rurais, apoiam não apenas os produtores associados locais, mas ao gerirem as poupanças e riquezas locais, promovem a socialização dos ganhos ao reinvestirem essas poupanças localmente.
É, partindo desta riqueza de experiências e de acúmulos nas mais diversas áreas e contextos, que se almeja, neste momento, a constituição de um Sistema de Finanças Solidárias. A lógica por trás do desenho de “sistema” nos permite entender melhor o papel de cada um destes atores, facilita a articulação entre eles e possibilita a construção de ações nas quais cada um destes segmentos possua um papel específico e complementar. Isso significa que, em última instância, estas experiências não são, de forma alguma, excludentes. Ao contrário. Importa ainda ressaltar que o Sistema de Finanças Solidárias, não tem finalidade especulativa, ele é um meio para viabilizar a Economia Solidária.
Contudo, para que o Sistema de Finanças Solidárias se concretize, é necessário avançarmos em relação ao marco legal para as finanças solidárias, por exemplo. Enquanto as Cooperativas de Crédito possuem legislação específica que define e legitima suas ações, os Bancos Comunitários de Desenvolvimento, apesar de se enquadrarem na lei de OSCIPs e no decreto que regulamenta estas instituições com finalidade creditícia, por não serem considerados instituições financeiras e não serem regulados pelo Banco Central, não podem captar poupança e nem criar seus próprios serviços bancários e financeiros. Do mesmo modo, as moedas sociais não possuem reconhecimento legal.
Em relação aos Fundos Rotativos Solidários, o cenário é ainda mais desafiador. Pela lógica de sua organização, pela metodologia que fundamenta suas ações e, complementarmente, por não possuir um marco legal que reconheça em alguma medida sua legitimidade, os Fundos Rotativos Solidários encontram dificuldades em acessar e captar recursos de fontes públicas.
Encerro, propondo como provocação para o debate que seguirá, pelo menos dois duas questões desafiadoras que, segundo avaliamos na conferência temática de finanças solidárias, estão horizonte da Economia Solidária: por um lado, que mudanças nas leis e regulamentos precisamos para viabilizar a construção e consolidação do sistema de finanças solidárias e, por outro, que fontes de recursos poderiam ser acessadas para viabilizar o sistema de finanças solidárias e, do mesmo modo, quais novos instrumentos e mecanismos de financiamento precisam ser criados?
1 Texto apresentado na III Conferência Regional de Economia Solidária/Metropolitano, RS, realizada em Porto Alegre, no dia 29 de abril de 2014.
2 Coordenadora de Projetos Sociais e Educadora Popular no CAMP/ Projeto Fundos Solidários Região Sul.
3 A redação deste texto se baseia fundamentalmente no documento de referência da Conferência Temática de Finanças Solidárias. Disponível em: http://pt.slideshare.net/blublai/conferncia-temtica-economia-e-democracia-texto-de-referncia
4 FUENTES-NIEVA, Ricardo; GALASSO Nicholas. Working for the few: political capture and economic inequality. In: Oxfam Briefing Paper, 20 janeiro de 2014. Disponível em: http://www.oxfam.org/en/policy/working-for-the-few-economic-inequality
5 NARAYAN, D. Voices of the poor – Can anyone hear us? Washington, D.C.: The World Bank, Oxford University Press, 2000.