Por Brasil de Fato (José Coutinho Júnior)
Tiarajú Pablo D´Andrea, membro da Unidos da Lona Preta, fala sobre a criação, o funcionamento e o contraponto que a escola de samba faz ao carnaval mercantilizado
A Unidos da Lona Preta, escola de samba que surgiu em 2005 no MST, tem como principais objetivos contribuir com a formação política de seus membros, mostrar que um modelo coletivo de escola de samba é possível, e levar através do samba muita alegria.
Confira a entrevista com o o sociólogo e músico Tiarajú Pablo D´Andrea, do setor de cultura do MST e membro da Unidos da Lona Preta, sobre a criação da escola, seu funcionamento e o contraponto que ela faz ao carnaval mercantilizado:
MST – Como se criou a Unidos da Lona Preta?
A Unidos da Lona Preta foi fundada em 2005 por militantes assentados de São Paulo. A ideia principal visava a formação e a inserção da juventude em atividades do movimento, tanto por meio da música quanto da politização que é possível extrair daí. São Paulo possui assentamentos em zonas de transição entre o rural e o urbano. Muitos dos assentados tiveram experiências de vida em periferias urbanas, onde o samba de roda, o partido alto e as batucadas se fazem presente de maneira marcante.
Por outro lado, uma característica do samba paulistano é ele ter sido historicamente cultivado no interior do estado e muitas vezes em zonas rurais. Tanto no campo como na cidade, essa expressão cultural sempre representou as classes subalternas, os trabalhadores, os pobres. Logo, cantar samba afirma a identidade de classe, ao mesmo tempo em que evoca uma raíz cultural na história social e na história do indivíduo. A criação da Unidos da Lona Preta levou em consideração todos esses elementos.
Quem faz parte da escola?
A maior parte da escola é formada por assentados da Grande São Paulo. Também fazem parte da escola representantes do Movimento Passe Livre, o grupo de artes Dolores Boca Aberta, companheiros da fábrica Flaskô e trabalhadores dispersos e não organizados, mas que viram na Unidos um espaço de formação, diversão e se politizam através do processo. A Unidos parte do MST, mas agrega coletivos e trabalhadores não organizados. Creio que essa diversidade é sua maior riqueza e uma das questões que dá vida ao processo.
Quantas pessoas existem hoje participando da escola?
No total são trinta e cinco ritmistas que tocam na batucada, que seria o núcleo do processo. Também existem os apoiadores, os que ajudam garantir a infra-estrutura, os que fazem trabalhos com as crianças, entre outras funções. Podemos dizer que o processo todo envolve ao redor de sessenta pessoas.
Por que a Unidos se considera como escola de samba, e não como um bloco de carnaval, por exemplo?
A princípio, uma Escola de Samba é um local onde se ensina samba. Essa é a acepção mais básica e primeira do termo. Com o tempo, essa acepção foi mudando e passou a significar também um local com muito luxo, dinheiro e profissionalização. Talvez esta acepção seja a hegemônica hoje. Para identificar-se como algo mais espontâneo, pobre e cujo objetivo é a mais pura e simples diversão, várias agrupações carnavalescas se denominam blocos, muitas vezes para se contrapor à essa ideia de escola de samba.
A Unidos da Lona Preta quer disputar o conceito. Sendo assim, se auto-define como escola de samba, porque faz formação sobre o samba, tanto musicalmente quanto teoricamente. Por outro lado, é uma escola porque pensa e faz formação política, formação artística e formação humana. Esses são os pressupostos.
Tiarajú Pablo D´Andrea, do setor de cultura do MST
e membro da Unidos da Lona Preta.
Como a Unidos faz a crítica social por meio do carnaval?
Historicamente, o carnaval é um momento de inversão da ordem. Pensar a possibilidade do diferente já é algo provocador em qualquer ordem estabelecida. No carnaval, as pessoas ocupam as ruas cantando e alegres.
Em um país com um histórico escravocrata, ditatorial e segregacionista como o Brasil, ocupar as ruas é uma transgressão e ser alegre, uma afronta. Pois bem, os elementos de inversão da ordem e de provocação já estão dados. No entanto, o caráter espontaneísta de sair às ruas sem organicidade por si só não configura algo transformador das estruturas. Como elaborar uma crítica por meio da estrutura carnavalesca sem matar o caráter de diversão próprio do carnaval ?
A Unidos se propôs a discutir essa questão, e tenta aliar as duas coisas. Voltando à história do samba-enredo, evidentemente que todas as temáticas foram abordadas pelas escolas de samba. Existem sambas-enredos conservadores, de direita, mercantilizados, etc. Claro que sim, mas observe que os que fizeram história no gênero foram os críticos, os celebrativos e por vezes até os dolentes. Essa é a matriz da Unidos da Lona Preta e os nossos sambas refletem isso também.
Outras evidentes matrizes musicais da Unidos são o samba rural paulista, mais pesado ritmicamente e, surpreendentemente, o rap, que influenciou pelo apelo que tem na juventude assentada e pela forma direta de enunciar a crítica, que encontrou na escola um terreno fértil para se expressar. Por essas e outras, a Unidos alguma vez teorizou que não faz samba-festinha, faz samba-luta. Ou seja, o samba não é um mero passatempo ou um objeto de contemplação para ser consumido como arte pela burguesia, a Unidos é compromisso. É diversão visando a emancipação humana, a politização e o fortalecimento das relações interpessoais.
Isso não quer dizer que a Unidos seja contra blocos, sátiras, marchinhas etc. Muito pelo contrário, a Unidos apoia todas essas expressões. No entanto, pelo fato de se organizar dentro de um movimento social, pelas características militantes de seus participantes, pelos condicionamentos históricos e por algumas escolhas conscientes, preferiu criar uma postura de luta e esse é seu pressuposto. Isso não impede a alegria e a felicidade.
Como a escola se prepara para o carnaval?
Nas escolas de samba tradicionais, escolhe-se o tema por meio de uma direção de carnaval e muitas vezes de acordo com as exigências dos patrocinadores. O carnavalesco elabora uma sinopse, que é distribuída aos compositores, que fazem seus sambas-enredos a partir das informações ali presentes. O samba-enredo do desfile é escolhido dentro da escola de samba por meio das chamadas eliminatórias de samba-enredo, onde vários sambas disputam internamente até um sair vencedor, por meio da votação de jurados escolhidos pela escola.
Com o samba escolhido, passa-se aos ensaios até o carnaval. Muitos dos que participam do dia a dia da escola por vezes não apreendem a totalidade do processo do desfile e nem a criação artística ali retratada. Esse processo de alienação é mais incisivo nos casos dos foliões que vão à escola, compram sua fantasia e vão desfilar no dia do carnaval. Não há nenhum conhecimento do processo, sendo este totalmente alienado para grandes parcelas dos que desfilam em uma escola de samba.
A Unidos observou esse processo e resolveu fazer diferente. São três os pressupostos formativos da Unidos da Lona Preta: a formação política, a formação musical e a formação poética. As três formações se imbrincam no meio do processo, que começa a ocorrer entre os meses de setembro e novembro e vai até o carnaval.
O tema é escolhido por meio de debates do coletivo, que escolhe algo dentro das linhas políticas do MST. Escolhido o tema, pensa-se em nomes de assessores que possam contribuir discutindo com o coletivo e com quem quiser participar sobre o tema escolhido. São as formações políticas.
Pede-se que os participantes do coletivo anotem as partes mais importantes da fala do assessor. Essa anotação pode ser em forma de verso ou de prosa. Para que essas anotações tenham riqueza poética, são realizadas concomitantes às formações políticas, debates com letras de samba-enredo, discutindo temas, métrica, rimas, conteúdo e outros elementos da poesia. É a formação poética.
Ao final das formações, se discute coletivamente quais versos serão utilizados. Por fim, um coletivo mais reduzido, composto por músicos mas não só, dá o acabamento musical, melódico, poético e harmônico à obra. Eis que o samba-enredo está pronto. Um samba-enredo sem autor, dado que todos contribuíram para sua feitura.
Após o samba-enredo estar pronto, passa-se a ensaiar com a batucada. Pensam-se arranjos percussivos de acordo com o material melódico e poético que o samba-enredo apresenta. Inventam-se paradinhas, breques, passagens, e tudo o mais de tão delicioso que uma batucada de escola de samba nos oferece. É a formação musical. Todo este processo visa garantir que quem participa do desfile tenha a noção do que está sendo cantado, mostrado e tocado. Busca-se, enfim, o fim da alienação do membro da escola de samba.
Por que a Unidos não participa de concursos ou ligas de escolas de samba?
Qual seria o sentido de entrar em uma liga de escola de samba ? receber dinheiro público ? pautar-se pela competição ? introjetar para dentro da escola de samba valores produtivistas calcados na eficiência e na produtividade, com o intuito de superar a escola concorrente, que também faz samba como a tua escola ? Não é esse o pressuposto da Unidos. Nosso princípio não é o da competição, é o da cooperação.
A Unidos é uma das principais articuladoras de um incipiente e promissor movimento de agremiações que se pautam pelo carnaval popular, de luta e contra-hegemônico. Deste processo fazem parte o Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué, a Bloco Unidos da Madrugada, o Bloco Saci do Bixiga e o Bloco da Abolição. Todos se auto-denominam “batucada do povo brasileiro”.
Ou seja, cada um possui uma especificidade, uma forma de fazer e pensar o carnaval. Uns mais satíricos, outros boêmios, outros radicalmente críticos, mas todos pensam em um carnaval que paute as lutas populares. Assim sendo, quanto mais batucadas no Brasil, melhor. Serão mais pessoas querendo aprender sobre o samba, buscando na história a tradição de luta de nosso povo, fazendo o combate ideológico contra formas pasteurizadas de produção de arte e largamente disseminadas pela indústria cultural. Logo, por que haveríamos de querer colocar em competição todas estas batucadas ?
É possível pensar a arte, no caso o samba, como forma de luta política?
Em toda a sua história, a Unidos da Lona Preta foi composta por sambistas-militantes ou militantes-sambistas, como queiram chamar. São pessoas dispostas a dar um salto politizador para além da expressão de resistência que o samba já apresenta por si só. Disso decorreu uma outra máxima da Unidos da Lona Preta : “a luta fazendo o samba, o samba fazendo a luta”.
Uma batucada é um excelente instrumento para ações políticas como manifestações e ocupações. Desde sempre, cantar e fazer música coletivamente fez parte de rituais de guerra e preparou a alma e o coração para ações. É uma mística que levanta a moral da tropa, além de fazer o combate ideológico e propor novas formas estéticas.
Organizar uma batucada por si só é organizar o povo. A batucada possui elementos internos e organizativos que se entrelaçam com a própria dinâmica organizativa do movimento social.
Para trinta e cinco pessoas tocarem juntas instrumentos de percussão, é necessário estabelecer uma relação entre o indivíduo e a totalidade. O indivíduo é responsável por seu instrumento. Só ele o toca, só ele o executa e existe uma particiularidade nisso. Mas essa subjetividade deve levar em consideração o coletivo, e tocar seu instrumento levando em consideração o que os outros instrumentos estão fazendo, para que a massa sonora tenha algum sentido em comum.
Se cada um tocar seu instrumento sem levar em consideração os demais, nós podemos ter muito barulho, mas não teremos uma batucada. Essa organização à princípio musical possui evidentes pressupostos políticos.
Que discussão se faz na Unidos sobre o carnaval mercantil?
A Unidos não pretende reforçar a estética burguesa dominante. Pensar um carnaval com luxo e riqueza seria fazer um trabalho de graça para o inimigo. Em boa medida, as escolas de samba atuais reproduzem esses padrões, e a Unidos se coloca contra a mercantilização, a privatização, a financeirização e a industrialização do carnaval. No entanto, uma escola de samba é algo muito mais complexo do que se pode supor.
Muitas vezes setores progressistas da sociedade fazem uma crítica burra e preguiçosa às escolas de samba em frases do tipo : “Mercantilizou, não presta!” Sim, as grandes escolas de samba se mercantilizaram. Mas internamente às escolas de samba, existem processos muito interessantes e variados que a crítica preguiçosa não quer ver.
Existem comunidades atuantes, pessoas sendo formadas com determinados valores, a defesa de uma ancestralidade africana, a afirmação do samba, é um espetáculo artístico de altíssima criatividade, e todo ano surgem alguns sambas com crítica social inteligente, que poderiam servir de material de agitação e propaganda em qualquer organização política. São esses ensinamentos que se aprende das escolas de samba.
A Unidos mantém uma relação de profundo respeito e admiração por todas as escolas de samba, verdadeiros patrimônios da cultura brasileira, mas não concorda com os rumos que os desfiles tomaram atualmente.