Fonte: Folha de S?o Paulo Por Eleonora de Lucena, 28-08-2012.

Ela se define como “educadora popular” marxista-leninista. Chilena, foi disc?pula do fil?sofo Louis Althusser, l?der estudantil cat?lica e integrante do governo socialista de Salvador Allende. Casou-se com um dos comandantes da revolu??o cubana (Manuel Pi?eiro, o Barba Roja) e nos anos 2000 virou conselheira de Hugo Ch?vez.

Marta Harnecker conta que escreveu mais de 80 livros. O mais conhecido, “Conceitos Elementares do Materialismo Hist?rico”, dos anos 1960, vendeu mais de 1 milh?o de exemplares e est? na 67? edi??o. Aos 75 anos, viaja pela Am?rica Latina e se diz otimista: os EUA j? n?o fazem o querem na regi?o e o conceito de soberania cresceu.

Hoje morando em Vancouver (Canad?), ela considera Ch?vez um “l?der revolucion?rio fundamental”, mas uma “pessoa contradit?ria”: “Ele ? um militar que cr? na participa??o popular. O importante ? ver o fruto dessa coisa”. A Venezuela ? o pa?s menos desigual do continente. Eis a entrevista. Como a sra. avalia a situa??o pol?tica na Am?rica Latina?

Sou muito otimista. Quando Ch?vez ganhou estava sozinho e o panorama hoje mudou muito. Considero que as situa??es mais avan?adas est?o na Venezuela, Bol?via e Equador. Meu ?ltimo livro foi sobre o Equador e se chama “A Esquerda em Busca da Vida em Plenitude“. A concep??o desses governos ? de uma sociedade alternativa ao capitalismo, em que a pessoa humana tenha um pleno desenvolvimento.

N?o demos import?ncia a isso no passado. E hoje em dia ? fundamental: uma sociedade constru?da pelas pessoas, de baixo para cima. N?o ? fazer com que o povo seja um mendigo que recebe presentes do Estado. N?o ? o que queremos nem o que est? sendo feito. O parteiro desse processo foi o neoliberalismo, que provocou contradi??es e os povos come?aram a resistir e come?aram a entender que tem que participar da pol?tica e criar instrumentos pol?ticos. Foi o caso do Equador, da Bol?via e da Venezuela. L? houve press?es populares nos anos 1980 que est?o na origem do triunfo de Ch?vez.

H? uma crise estrutural do Estado. As pessoas j? n?o confiam na pol?tica e nos pol?ticos e querem coisas novas. Est?o cansadas de promessas n?o cumpridas. Surgem esses governos e, contra os progn?sticos de alguns, inclusive de intelectuais brasileiros, o processo se seguiu. Houve quem achasse que se tinha atingido um topo e iria diminuir. Mas n?o foi assim.

Mas temos o imp?rio presente. S?o os casos de Manuel Zelaya e de Fernando Lugo. Eles tinham processos mais d?beis internamente, com organiza??es populares mais fracas, sem partidos. Os dois vinham de partidos da burguesia. N?o h? o que copiar na Am?rica Latina. Alguns se entusiasmam com o processo da Venezuela e acham que se pode fazer em todos os pa?ses a mesma coisa. O processo no continente ? completamente diferenciado. O que os une ? o processo social. Na Bol?via e no Equador, por exemplo, os ind?genas s?o grupos importantes; na Venezuela, n?o.

O desempenho de Ch?vez n?o est? muito ligado ao petr?leo?

O petr?leo j? estava nacionalizado quando Ch?vez chegou ao poder. Mas n?o estava nas m?os do governo. Estava sendo gerenciado pelos grupos ligados ? oposi??o. Como consequ?ncia do golpe de 2002 se recupera a gest?o para o governo. Os excedentes do petr?leo passam a servir para as miss?es sociais internas e para apoiar outros processos na Am?rica Latina. H? depend?ncia, mas eles t?m clareza de que ela precisa ser superada.

O governo est? investindo em projetos de industrializa??o, pois o neoliberalismo desindustrializou os nossos pa?ses. Estrat?gia ? depender cada vez menos do petr?leo.

O governo Morales enfrenta oposi??o de movimentos populares na Bol?via. Como explicar isso?

S?o as contradi??es que vivem os processos. Esses s?o muito diferentes dos processos revolucion?rios dos anos 1920, da Revolu??o Russa. Nesses casos s? se consegue chegar ao governo. Em muitos deles, com uma correla??o de for?as no parlamento, nos governos locais, nos meios de comunica??o e no poder econ?mico que permanecem nas m?os de quem dominava antes.

?lvaro Li?era [vice-presidente da Bol?via] reflete as contradi??es que vive o pa?s. Entre um governo, que tem que ser executivo, tomar decis?es, resolver problemas de todo o pa?s, e os movimentos sociais, que t?m um ritmo de discuss?o democr?tica etc. No processo boliviano, o povo ? diverso e tem contradi??es. Fica unido em torno de bandeiras como, por exemplo, a do Estado plurinacional. Mas as contradi??es se agudizam e o governo tem que entender isso e olhar democraticamente as partes. ? muito complicado. O povo quer que o Estado resolva o problema. ? uma esp?cie de paternalismo. Quando chegam esses governos, querem solu??es imediatas, n?o sabem de pol?tica nem de correla??o de for?as. Al?m disso, prima a vis?o localista, sem uma vis?o de conjunto.

? preciso um processo de educa??o popular para que uma comunidade entenda que para o pa?s e para outras comunidades ? negativo n?o fazer uma estrada. Li?era reconhece que existem e haver? contradi??es e que ? preciso o governante saber lidar com elas.

Como a sra. analisa a situa??o do Brasil, da Argentina e do Uruguai?

S?o diferentes. S?o governos muito mais moderados, mas que est?o tomando medidas de soberania. Porque a primeira coisa que precisamos conseguir ? a soberania perante os EUA. Temos feito reuni?es deixando de fora os EUA; n?o vem o Departamento de Estado dizer o que devemos fazer. Na maioria dos governos da regi?o, a soberania ? um valor. ? um ?xito que tenham constitu?do a Unasul e que nela estejam o Chile, o M?xico, a Col?mbia.

O poder dos EUA diminuiu na regi?o?

Os Estados Unidos j? n?o podem fazer o que querem. Mas claro que o seu poder ? imenso. H? uma contraofensiva dos EUA que se reflete em casos como o de Zelaya, e na tentativa contra Correa. Houve o golpe contra Lugo. Est?o tentado refazer um golpe na Bol?via, com setores da oposi??o se aproveitando das contradi??es no interior do povo. Em Santa Cruz e em outros lugares est?o tentando fazer alian?as com os setores do povo descontentes. A inten??o de separatismo foi vencida gra?as ? organiza??o popular. Agora n?o h? um perigo iminente, mas essas for?as est?o se reconstituindo.

N?o temos um caminho f?cil. S?o processos que n?o se definem de um dia para outro. A melhor defesa ? ter um povo organizado. Ch?vez entendeu muito bem. Ele sempre insiste em dizer que n?o podemos resolver o problema da pobreza se n?o dermos poder ao povo. Ch?vez ? um tipo que sente o popular, ? muito humano. Fiz um livro com ele que se chama “Um Homem, um Povo”. N?o digo que n?o haja defeitos do homem Ch?vez e que n?o haja contradi??o entre o seu discurso e o que se faz. Vivemos processos humanos, n?o de deuses puros.

Poderia haver um modelo comum entre os pa?ses latino-americanos na sua vis?o?

Sou chilena. No Chile se consolidou a contrarevolu??o burguesa, com Pinochet e os seguintes. A Concerta??o segue as pol?ticas neoliberais com algumas pol?ticas sociais. Houve um neoliberalismo exitoso, pelo aumento do PIB, a constru??o de estradas. Mas o Chile, que era um dos pa?ses mais igualit?rios da Am?rica Latina, ? hoje um dos com maiores diferen?as entre os pobres e os ricos. No Chile n?o existiam muros nas casas da grande burguesia. N?o se pode medir o resultado do neoliberalismo apenas pelo lado econ?mico. Conheci um casal de arquitetos chilenos que trabalha 14 horas por dia. Vivem para trabalhar; n?o trabalham para viver.

Pessoas da pequena burguesia conseguem alguma coisa, mas h? muita competi??o, est?o sempre correndo, nunca t?m tranquilidade no trabalho. No Brasil tamb?m se consolidou a contrarevolu??o burguesa.

Como assim? O governo do PT significa a contrarevolu??o burguesa?

Os setores dominantes se consolidaram, o agroneg?cio. O PT est? buscando fazer outra coisa. N?o se pode comparar com a Venezuela ou a Bol?via, por causa da correla??o de for?as da vit?ria de Lula. Num pa?s que ? a sexta economia do mundo, o capital financeiro e as transnacionais t?m um poder enorme. Ent?o o capitalismo se consolida, mas h? aten??o aos setores populares. Tiram pessoas da pobreza.

No Brasil, falta o governo facilitar mais o processo de organiza??o popular. Temos uma esquerda que esteve na oposi??o. O governo tem que executar, resolver e n?o pode esperar a discuss?o do partido. Vai se dando um distanciamento entre partido e governo. Quadros do setor popular passam a ter postos no governo. Num Estado como o brasileiro precisa ser muito firme para n?o se transformar em outra coisa. Um trabalhador que chega a ser senador ou deputado muda a sua vida. Como ensina o marxismo, as condi??es materiais influem. Creio que h? provavelmente a deforma??o de muitos dirigentes, que deixam de representar os interesses populares.

H? muitas cr?ticas da esquerda a Lula e Dilma que s?o feitas sem entender a correla??o de for?as que existe. N?o quer dizer que n?o possam fazer mais do que t?m feito.

Ent?o n?o h? um modelo comum para a Am?rica Latina?

N?o. Cada situa??o na Am?rica Latina ? distinta. ? preciso estudar cada lugar, suas origens hist?ricas, as correla??es de for?as.

Sou estudiosa de L?nin. ? preciso fazer a an?lise concreta das for?as, escolher a estrat?gia e a t?tica. H? um horizonte que ? o socialismo do s?culo XXI, a sociedade do bem viver. N?o queremos um socialismo como o sovi?tico, estatista, totalit?rio, de partido ?nico, ateu, que usou os movimentos sociais como correia de transmiss?o. ? preciso ler os cl?ssicos, Marx e Engels. A meta ? uma sociedade solid?ria, que n?o hajam exploradores e explorados, em que cada um encontre o que fazer, que respeite as diferen?as. ? uma meta ut?pica. Mediria os governos com perguntas: 1. Esses governos t?m conquistas em rela??o ? soberania nacional?; 2. Consolidam, aumentam a organiza??o do povo? 3. Fazem um desenvolvimento que respeite a natureza?

Como a sra. analisa a crise econ?mica mundial?

? uma crise estrutural importante. N?o ? terminal, porque o capitalismo se recomp?e. As condi??es objetivas est?o mais adiantadas do que as condi??es subjetivas. Valorizo movimentos como o dos indignados. A rebeldia ? um passo inicial, mas ? preciso fazer com que isso vire uma for?a. “Reconstruindo a Esquerda” ? um livro meu em que digo que ? preciso um instrumento de articula??o que n?o s?o os partidos tradicionais. O neoliberalismo fragmenta a popula??o.

Como assim?

A pol?tica n?o ? a arte do poss?vel. Isso ? diplomacia. Escrevi um livro sobre isso. O pol?tico revolucion?rio precisa entender que para lograr seu objetivo tem que criar uma correla??o de for?as. Construir for?as sociais para ter for?a pol?tica para buscar o seu objetivo. Se constr?i for?a social com protagonismo popular. O Estado n?o pode criar o que n?o existe, mas pode criar condi??es para que as for?as se fortale?am.

Os partidos pol?ticos n?o seriam esse instrumento? N?o h? diferen?as?

Partidos pol?ticos n?o compreendem a pol?tica como a arte de construir for?as sociais. Mas entendem a pol?tica como forma de ganhar postos no governo, ter mais deputados, mais for?a. N?o ? a ideia. Muitas vezes a pol?tica fica muito desprestigiada. A direita se apropriou da linguagem da esquerda. A esquerda muitas vezes faz uma pr?tica pol?tica igual ? direita: clientelismo, personalismo, carreirismo pol?tico, ?s vezes at? corrup??o. O povo v? discursos iguais, v? pr?ticas iguais, se decepciona.

Por exemplo?

Sem exemplos. O diagn?stico faz cada um. Mas est? claro. ? preciso ser muito coerente entre o que diz e o que faz. ? preciso que se trabalhe para construir for?a social, e n?o se dedicar a pelejas institucionais. O socialismo requer uma grande maioria, uma hegemonia, convencer o m?ximo de gente pelo projeto, sendo muito pluralista e respeitando as diferen?as.

Tenho um livro que faz uma an?lise dos erros que cometeu a esquerda. Quando uma pessoa conhece o valor da solidariedade, come?a a entender que ? mais importante ser do que ter. Essa ? a luta contra o consumismo. H? uma democracia desmobilizadora. As pessoas ent?o endividadas. Os trabalhadores est?o desmobilizados porque podem perder o trabalho e n?o est?o t?o protegidos como antes. Quando os partidos de esquerda conseguem ganhar algum espa?o, muitas vezes os dirigentes deixam de ser dirigentes revolucion?rios. O perigo ? muito grande. Um membro pol?tico que se mete no aparato burgu?s tem que ter algum tipo de estrutura, um grupo de pessoas de controle, de consulta. Que pergunte ao dirigente porque ele est? comparando um carro que n?o tem necessidade. ? f?cil fazer a coopta??o, pela ideologia e pela cultura, de um sujeito solit?rio.

A sra. foi casada com um dirigente da revolu??o cubana e morou muitos anos na ilha. Como v? a situa??o do pa?s?

Cuba foi minha segunda p?tria. Tenho uma filha cubana que mora l?. Cuba mostrou ? Am?rica Latina a dignidade, a capacidade de defender a soberania, de resist?ncia a todos os males. A economia ? muito complicada.

Como avalia as mudan?as em curso na economia?

Precisava haver mudan?as. As pessoas precisam de espa?o para desenvolver sua capacidade produtiva. ? certo. Creio que a participa??o dos trabalhadores em cooperativas seria um caminho que deveria ser explorado.

A sra. foi disc?pula de Louis Althusser (1918-1990). Como foi essa experi?ncia?

Estudei psicologia na Universidade Cat?lica do Chile. Como dirigente da a??o cat?lica universit?ria visitei Cuba e fiquei fascinada. Eu era cat?lica e comecei a discutir com crist?os marxistas. Fui ? Fran?a e conheci Althusser, que tamb?m havia sido cat?lico. Li suas obras estabeleci uma rela??o de disc?pula. Vivia a poucos metros da casa dele e o via tr?s vezes por dia. Ele me dizia o que ler. N?o segui psicologia. Isso foi entre 1963 e 1968. Trabalhei tamb?m com Paul Ricoeur (1913-2005). Voltei ao Chile pensando em ensinar franc?s.

Deliberadamente eu n?o tinha t?tulo. Eu tinha escrito um livro ?-“Conceitos Elementares do Materialismo Hist?rico”– com as notas que tinha feito de um curso para haitianos e mexicanos no ultimo ano que estive em Paris. Esse livro vendeu mais de um milh?o de exemplares. Est? agora na 67? edi??o e foi traduzido para v?rias l?nguas. No Brasil circulou em edi??es clandestinas. Por causa do livro, fui ser professora da Universidade do Chile, com Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini. Virei diretora da revista pol?tica da Unidade Popular, a “Chile Hoy”. Transformava artigos de intelectuais, tornando-os acess?veis para a popula??o. Foi quando me apaixonei pelo jornalismo. Fazia cartilhas de forma??o e cursos para oper?rios e camponeses. S? a? fiz doze cadernos de educa??o popular.

Tenho mais de 80 livros publicados. Alguns s?o livros de testemunhos, com experi?ncias de v?rios pa?ses – El Salvador, Equador, Bol?via, Paraguai, Venezuela. Tenho um livro sobre o PT que est? pendente. No Chile fazia parte do Partido Socialista e fiquei fascinada pela educa??o popular. Para mim, a maior satisfa??o ? criar um texto que todos entendam. Que n?o seja acad?mico. N?o sou doutora. Sou educadora popular: ? a minha autodefini??o. Depois do golpe no Chile, fui para Cuba, quando consolido minha rela??o com o comandante Manuel Pi?eiro, o Barba Roja (1933-1998). Fiquei em Cuba at? 2003. Fui entrevistar Hugo Ch?vez, na Venezuela. Recolhi as criticas de esquerda, as d?vidas sobre o governo. Ele gostou muito que eu lhe transmitisse as cr?ticas e me convidou para trabalhar no pal?cio. N?o quis sal?rio. Pagavam um apartamento e a comida, s?.

Que cr?ticas eram?

Que tal minist?rio n?o estava fazendo tal coisa, que tinha um discurso demasiado autorit?rio, tudo. Vivi seis anos da Venezuela.

Hoje a sra acha que Ch?vez ? uma pessoa autorit?ria?

Ch?vez ? um militar. Que cr? na participa??o popular e quer promov?-la. E que como pessoa ? contradit?ria. E tem que se respeitar essa contradi??o. Quer?amos que n?o fosse t?o autorit?rio, mas entendemos. Eu mesma tenho um car?ter muito complicado. Muitas vezes quis mudar e n?o ? t?o f?cil. O importante ? ver o fruto dessa coisa. Se comparamos a Venezuela do primeiro ano com a hoje, temos gente com personalidade, que critica, que cresceu como ser humano. E ? isso que buscamos. Eu o saturava com cr?ticas.

E hoje a sra. ainda mora na Venezuela?

Moro em Vancouver, no Canad?, com o meu companheiro Michael Lebowitz.

Como avalia a sucess?o de Ch?vez?

N?o tem ningu?m na altura de Ch?vez