Por Associação Brasileira de Agroecologia

Prezado Diretor de Redação,

Referentemente à matéria de Veja, da edição de 04 de janeiro/2012, sobre o tema dos agrotóxicos, chamou-nos primeiramente a atenção o tratamento parcial e tendencioso dado ao assunto, uma vez que se trata de um tema controverso, mesmo nos meios científicos, e que recebeu apenas o veredito de profissionais com legitimidade e isenção questionáveis, considerando que é possível que alguns representem, eles próprios, um comprometimento com a indústria de agrotóxicos, a qual é, obviamente, parte interessada na venda desses produtos. Segundo, soa como prepotente, para dizer o mínimo, a Revista tentar apresentar-se como dona da verdade em um tema sensível e controverso como esse. Por uma questão de imparcialidade e ética, o que se esperaria é que a matéria desse também amplo espaço para o contraditório.

Da mesma forma, foi visível a falta de senso crítico das jornalistas, que não questionaram os “conceitos” que alguns entrevistados convenientemente tentaram afirmar como sendo “modernos”, como ocorreu, já no início da matéria, em relação ao nome “Defensivos Agrícolas” em vez de agrotóxicos. Cabe esclarecer que o termo agrotóxico é definido de acordo com a LEI No 7.802, DE 11 DE JULHO DE 1989, que considera “agrotóxicos e afins: a) os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos; b) substâncias e produtos, empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento.” Fica claro que o termo adequado, definido por lei, para referir-se a quaisquer dos produtos acima mencionados é agrotóxico, ainda que a indústria e as entidades que representam seus interesses insistam em usar, eufemisticamente, o termo defensivos agrícolas.

Inseticidas, fungicidas, herbicidas, formicidas, etc, já carregam em seus nomes o princípio básico de sua ação: a função “cida”, sufixo originário do latim, caedere que significa matar. Não é toa que quase todos levam em seus rótulos uma CAVEIRA com as tíbias cruzadas e a inscrição “VENENO”.

Sobre a afirmação de que “o Brasil é um dos países mais rigorosos no processo de registro de agrotóxicos” e que “os produtos disponíveis no mercado são seguros”, não é isso que se constata na prática, uma vez que existem diversos casos em que formulações de agrotóxicos que são proibidos em dezenas de países, permanecem, no entanto, com seu uso liberado no Brasil, como é o caso do Endossulfan, do Metamidofós e do Acefato, encontrados pela Anvisa em vários alimentos, como o pepino, pimentão, tomate, alface, cebola e cenoura. Cabe registrar e reconhecer o esforço realizado pela Anvisa para monitorar os resíduos de agrotóxicos nos alimentos, além de fiscalizar os abusos cometidos na comercialização e uso desses produtos.

No caso do Endossulfan, trata-se de um princípio ativo proibido em mais de 50 países, inclusive nos 27 da Comunidade Européia, na qual está proibido desde dezembro de 2005 e continua sendo comercializado livremente no Brasil (embora tenha tido sua fabricação proibida recentemente no Brasil desde 12-09-2010, a sua comercialização está permitida até 2012). A proibição de seu uso nos outros países deve-se ao fato do mesmo apresentar graves riscos ao meio ambiente e à saúde humana, podendo causar, entre outros, efeitos carcinogênicos, imunotoxidade e neurotoxidade. Além destas, outros produtos são causadores de patologias de pele, teratogênese, desregulação endócrina, efeitos na reprodução humana e no sistema imunológico.

A reportagem afirma, de forma irresponsável, que “não existe comprovação científica de que o consumo a longo prazo … provoque problemas graves em seres humanos”. Segundo Faria et al. (2007) [Ciência & Saúde Coletiva, 12(1):25-38, 2007.], publicações da Organização Internacional do Trabalho/ Organização Mundial da Saúde (OIT/OMS) estimam que, entre trabalhadores de países em desenvolvimento, os agrotóxicos causam anualmente 70 mil intoxicações agudas e crônicas que evoluem para óbito, e pelo menos 7 milhões de casos com doenças agudas e crônicas não-fatais. Isso representa, sem dúvida, elevados custos para a saúde humana e ambiental. Segundo Rigotto (2011) [Raquel Rigotto, entrevista a Caros amigos, dezembro de 2011], ainda segundo a OMS, para cada caso de intoxicação por agrotóxicos diagnosticado e notificado existem pelo menos 50 casos não notificados.

Apesar de vários produtos serem proibidos em diversos países, há fortes pressões do agronegócio para mantê-los autorizados no Brasil e, embora estejam em reavaliação, continuam sendo importados em larga escala pelo país.

A questão do estabelecimento de limites permitidos de resíduos de agrotóxicos em alimentos é bastante complexa. Sabemos que o estabelecimento de “níveis seguros” de venenos que poderíamos ingerir todos os dias é uma falácia. Nenhum estudo laboratorial pode comprovrar com toda certeza que determinado nível de veneno é inócuo para a saúde das pessoas. Estudos feitos com cobaias sugerem que certos níveis de resíduo parecem não produzir efeitos colaterais, até que o surgimento de técnicas mais modernas ou novas evidências científicas provem o contrário. Para alguns especialistas, a determinação de limites aceitáveis de resíduos representa, na verdade, a “legalização da contaminação”.

O lobby das empresas produtoras de agrotóxicos é evidente, como se pode perceber pelo gritante exemplo da alteração do limite permitido de resíduos de glifosato para que a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) pudesse liberar a soja transgênica no Brasil. Em 1998 a Anvisa alterou o limite permitido de resíduos de glifosato em soja, aumentando-o em 10 vezes! Ele passou de 0,2 ppm (partes por milhão) para 2,0 ppm. Mas em 2004 o limite do veneno na soja aumentou ainda mais: foi para 10 ppm, ou seja, 50 vezes maior que o limite inicialmente permitido.

Os níveis de contaminação por agrotóxicos vão muito além dos registros de resíduos em alimentos. As águas dos rios e aquíferos estão contaminadas por venenos agrícolas. Na Chapada do Apodi no Ceará, a água que sai das torneiras tem até 12 tipos de veneno. O aquífero Jandaíra, localizado sob parte do Ceará e do Rio Grande do Norte está sendo contaminado pelos venenos utilizados na produção de banana e abacaxi. O famoso aquífero Guarani está também sendo contaminado por agrotóxicos.Os alimentos, o ar, as chuvas e até mesmo o leite materno estão contaminados de venenos provenientes das aplicações maciças nas regiões onde o agronegócio impera, como ficou constatado no Mato Grosso. Em março de 2011 foi divulgada amplamente a contaminação em leite materno com agrotóxicos, no município de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, região dominada pela produção de soja e do milho transgênicos [Fonte: LONDRES, F. e MONTEIRO, D. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. RJ, 2011]. A reportagem também erroneamente afirma: “período de carência é o intervalo mínimo entre o uso do pesticida e a colheita”, no entanto, a definição correta de período de carência ou intervalo de tempo, em dias, é o tempo que deve ser observado entre a aplicação do agrotóxico e a colheita do produto agrícola para que o alimento colhido não possua resíduos dos agrotóxicos em níveis superiores aos limites máximos estabelecidos pela ANVISA. Continua a reportagem: “tempo em que o defensivo se degrada e perde sua toxicidade para os seres humanos”. Isto é uma inverdade. A pressuposta degradação ou ausência de agrotóxicos nos alimentos não significa que os problemas tenham desaparecido, pois existem os metabólitos que podem estar presentes. As conseqüências ambientais e para a saúde, em função de uma aplicação que deixou residual, podem permanecer por muito tempo. Segundo Spadotto & Gomes [Em Agência de Informação Embrapa, Agricultura e Meio Ambiente. Qualidade Dinâmica e Riscos de Contaminação] “determinados produtos químicos são rapidamente decompostos no solo, enquanto outros não são degradados tão facilmente. Algumas moléculas são moderadamente persistentes e seus resíduos podem permanecer no solo durante um ano inteiro, outras podem persistir por mais tempo. No ambiente aquático, além da hidrólise e da fotólise, os agrotóxicos podem também sofrer a degradação biológica e, ainda, a bioacumulação e a biomagnificação (bioacumulação em níveis elevados da cadeia trófica), diferenciando apenas os microrganismos nesse ambiente em relação àqueles presentes no solo”. E mais, advertem que além dos riscos da molécula original, os metabólitos ou produtos de degradação dos agrotóxicos apresentam toxicidade e ecotoxicidade com enormes diferenças em relação à molécula-mãe. Alguns destes produtos de degradação podem ser inclusive muito mais tóxicos que o ingrediente-ativo original. A título de exemplo, pode ser citado o glifosato, que produz o ácido aminometil fosfônico (AMPA) como primeiro metabólito, que por sua vez produz outros que ainda não são investigados e que podem ser mais tóxicos para a cadeia trófica. Além desse, há o exemplo clássico do DDT que ao perder uma molécula de HCl, por degradação biológica ou ambiental, forma o metabólito conhecido como DDE, que é ainda mais resistente às degradações que o DDT.

Cabe lembrar que não é por acaso que o Brasil é considerado o campeão mundial de consumo de agrotóxicos, atingindo a incrível marca de 5,7 litros por habitante/ano. Esse dado foi, estranhamente, esquecido ou, o que é mais grave, ignorado intencionalmente pelas jornalistas, que conseguiram fazer uma matéria que destacou apenas um lado da questão, o dos “benefícios” supostamente decorrentes do uso de agrotóxicos. Lamentamos essa postura, profundamente comprometedora para uma revista que se pretende séria e, ironicamente, se intitula como “indispensável”. Perdem com isso os leitores da revista e perde, ainda mais, a sociedade brasileira, pelo nível superficial, pouco sério e, sobretudo, tendencioso como um tema tão importante como esse foi tratado na referida matéria.

Atenciosamente,

Associação Brasileira de Agroecologia