Fonte: Secretaria ANA (secretaria.ana@agroecologia.org.br)
O Brasil corre um enorme risco de se posicionar na contramão da história se o texto que altera o código florestal, aprovado na câmara dos deputados, for aprovado no senado e sancionado pela Presidenta Dilma. E justamente no momento em que o Brasil vai sediar, em 2012, a Rio+20, e as atenções internacionais estarão voltadas ao nosso país.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) produziram um relatório posicionando-se negativamente sobre a proposta de mudança do Código Florestal Brasileiro. O relatório destaca que o processo histórico de ocupação do território brasileiro resultou em aumento das pressões sobre o meio ambiente, em processos erosivos, na perda de biodiversidade, na contaminação ambiental e em desequilíbrios sociais. Os diagnósticos realizados demonstram que existe um passivo da ordem de 83 milhões de hectares de áreas de preservação ocupadas irregularmente, de acordo com a legislação ambiental em vigor. É preciso repensar essa ocupação e promover uma adequação ambiental e social da atividade rural.
A maior parte deste passivo sem sombra de dúvidas pode ser creditada à agricultura patronal, o chamado agronegócio, não só pela dimensão da área ocupada pelas grandes propriedades como pelo modelo de produção em monoculturas, intensivo no uso de máquinas, adubos químicos e agrotóxicos. A agricultura familiar camponesa, agroextrativistas, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais adotam, predominantemente, um modelo que alia produção agrícola e conservação dos recursos naturais (solo, água e biodiversidade),
A mudança do Código Florestal, portanto, interessa em primeiro lugar ao agronegócio, que sempre ignorou a existência desta legislação e considera a sua implementação efetiva como uma ameaça à continuidade e expansão de seu modelo predatório de produção e acumulação de riquezas.
Entendemos que a legislação atual traz restrições para a permanência da agricultura familiar no campo, quando consideramos, por exemplo, casos de pequenas propriedades que utilizam áreas previstas em lei para preservação. Isso quer dizer que há a necessidade de aperfeiçoamento na legislação, levando-se em consideração as especificidades da agricultura familiar.
No entanto, diversas leis e decretos ou medidas infralegais, como resoluções e instruções normativas, publicadas nos últimos anos procuram contemplar estas especificidades. Como exemplo, a recente Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, número 425, de maio de 2010, dispõe sobre critérios para a caracterização de atividades e empreendimentos agropecuários sustentáveis do agricultor familiar, empreendedor rural familiar, e dos povos e comunidades tradicionais como de interesse social para fins de produção, intervenção e recuperação de Áreas de Preservação Permanente e outras de uso limitado.
O que faltou nestes 46 anos de vigência do Código Florestal foi principalmente a formulação de propostas de políticas públicas que viabilizassem a sua efetiva implementação. Pelo contrário, o que se viu foi a adoção de políticas que incentivavam o desmatamento, colocado como condição para o acesso ao crédito, por exemplo.
Portanto, não se trata de revogar o código e sim criar condições e políticas públicas para o seu aperfeiçoamento e implementação. Nos próprios quadros técnicos de órgãos ambientais e de assistência técnica e extensão rural governamentais pode-se verificar um grande desconhecimento sobre o Código Florestal e das medidas infralegais que buscaram aperfeiçoá-lo nos últimos anos.
Percebemos que o atual debate sobre as alterações no código florestal está sendo feito de forma oportunista e irresponsável pelas lideranças ruralistas, que cooptaram setores importantes do governo e do legislativo. O texto aprovado na câmara significa um retrocesso que beneficia os setores mais retrógrados do campo, premiando com anistias aqueles que mais dilapidaram e usurparam os recursos naturais e abrindo caminho para um aumento colossal do desmatamento em nosso país e da violência contra os povos do campo e da floresta. A sinalização de “liberou geral”, dada pelo debate na Câmara desde o começo do ano, já tem como conseqüências práticas o aumento impressionante de 473% no desmatamento em Mato Grosso, na comparação com os mesmos meses do ano passado, e o claro aumento do tom e da quantidade de ameaças que lideranças ambientalistas da Amazônia vêm recebendo, que culminaram com os assassinatos de José Cláudio Ribeiro da Silva, Maria do Espírito Santo da Silva e Adelino Ramos.
Portanto, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) se posiciona contra as mudanças propostas para o Código Florestal Brasileiro, e reforça a necessidade de fortalecer a agricultura familiar camponesa, agroextrativistas, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, com a valorização e incentivo a práticas sustentáveis, especialmente na promoção da Agroecologia.
Os sistemas de produção baseados na Agroecologia demonstram grande potencial para o enfrentamento da crise civilizatória que vivemos (incluídas aí as crises econômica, socioambiental, energética e alimentar) e dos problemas do modelo de desenvolvimento hoje dominante no País.
Estudos recentes, realizados nos biomas Mata Atlântica e Amazônia, com apoio do Ministério do Meio Ambiente (MMA), apontam para a importância dos chamados Sistemas Agroflorestais (SAFs) para a produção de alimentos e conservação da biodiversidade, solos e água. Alguns sistemas chegam a abrigar mais de trinta espécies endêmicas de árvores e arbustos desses biomas, e a sequestrar cerca de 150 toneladas de CO2 equivalente em um período de 15 anos. Outro papel importante dos SAFs refere-se à manutenção de conectividade funcional entre áreas de fragmentos florestais. Pesquisas conduzidas no sul do Brasil demonstram que a proporção de espécies da fauna típica de ambientes florestais é maior em plantios complexos e multidiversos do que em sistemas de monocultivo. Pesquisas na Zona da Mata de Minas Gerais demonstram que a biodiversidade associada nos SAFs é responsável por vários serviços ambientais, como polinização, melhoria da qualidade do solo e controle de insetos indesejáveis; regula processos-chave no funcionamento dos agroecossistemas, tais como a decomposição da matéria orgânica, o controle natural de insetos-praga e patógenos e a ciclagem de nutrientes, contribuindo em grande parte para a resiliência (capacidade de suportar estresses ambientais) do sistema de produção.
A importância da agricultura familiar e, principalmente, dos sistemas de produção com base agroecológica para combater a pobreza, para a promoção de segurança alimentar e da sustentabilidade ambiental é referendada pelo maior estudo realizado até o momento sobre o estado da arte da agricultura mundial. O chamado relatório da Avaliação Internacional do Papel dos Conhecimentos e da Tecnologia no Desenvolvimento Agrícola (International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development – IAASTD), elaborado por centenas de cientistas de todo o mundo e organizado com apoio de vários organismos das Nações Unidas, dentre eles o Banco Mundial, a Organização para Agricultura e Alimentação – FAO, e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD é taxativo em afirmar que políticas públicas e arranjos institucionais deverão priorizar o uso de abordagens de manejo agroecológico para a promoção do desenvolvimento sustentável. O Professor Olivier de Schutter, relator especial da ONU, sobre “os direitos à alimentação”, baseado em vários estudos também foi categórico ao afirmar que as política públicas devem apoiar a agroecologia (ONU, A/HRC/16/49).
O Projeto de Lei na forma em que foi aprovado na Câmara dos Deputados é absolutamente prejudicial para o desenvolvimento sustentável do país, além de criar dificuldades para que o Brasil cumpra os acordos estabelecidos internacionalmente. O substitutivo apresentado pelo deputado Aldo Rebelo e aprovado na câmara favorece apenas aos interesses do agronegócio, anistia crimes ambientais cometidos por produtores rurais, desobriga a recomposição das áreas consolidadas, permite a compensação de Reserva Legal fora da região ou bioma e desobriga a recomposição da Reserva Legal em propriedades de até 4 módulos fiscais, sem diferenciar o agronegócio da agricultura familiar camponesa, agroextrativistas, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. Os deputados ainda aprovaram a desastrosa emenda 164, que atribui aos estados responsabilidades que pertencem à Lei Federal. A flexibilização dessa legislação poderá desencadear desdobramentos com sérias conseqüências para o meio ambiente. Resta saber como os deputados pensam em substituir os serviços ambientais que poderão ser eliminados com esta nova legislação e que só as florestas nos podem garantir, como: a produção de água, a regulação dos ciclos das chuvas e dos recursos hídricos, a proteção da biodiversidade, a polinização, a reprodução de muitas espécies, o equilíbrio das cadeias tróficas, o controle do assoreamento dos rios e barragens e o equilíbrio do clima, alguns dos sustentáculos básicos da vida neste planeta. Conclamamos todos os parlamentares, o governo federal e a sociedade brasileira a se posicionarem e agirem com responsabilidade histórica e a atuarem firmemente contra o retrocesso que significa a aprovação do relatório aprovado na câmara dos deputados. Caso contrário, as consequências para o futuro serão desastrosas, nós já a sentiremos, e muito mais ainda nossos filhos e netos. Conclamamos a todos a agirem em defesa da vida e do futuro do nosso país e do planeta Terra.