Por Leonardo do Egito Coelho

Alguns aspectos do projeto de lei 865 que altera a lei 10.683/03 merecem ser analisados, pela forte resistência que vem encontrando no universo da economia solidária.

A resistência maior advém da sua propositura ser de base governista, não ser apoiada por todos os segmentos que hoje compõem a estrutura da economia solidária dentro do estado e na sociedade, não transmitindo segurança jurídica para esta política pública. Assim, existe um cenário de rupturas e fissuras que justificam pelo menos o sobrestamento para aprovação de um ato normativo com tamanho impacto como este projeto de lei.

Este projeto tem por objetivo principal no âmbito da Presidência da República a criação da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, com competências relativas dentre outras ao cooperativismo, associativismo e arranjos produtivos locais, que suscitam aspectos contraditórios, comprometendo políticas já alcançadas para a economia solidária. A lei 10.683/03 trata da organização da presidência e dos ministérios, não tratando no mérito dos aspectos socioeconômicos de empreendimentos e trabalho associados, assuntos abordados por leis específicas, como a lei 5764/71 que trata das cooperativas e o estatuto das microempresas estabelecido pela lei complentar 123, que só poderia ser afetada por nova lei complementar, apenas para mencionar alguns dos instrumentos que despertariam polêmica por seu antagônismo.

Uma primeira observação contundente é que uma Lei Ordinária não pode alterar uma Lei Complementar, como propõe o projeto, isto porque a LC tem quorum qualificado, ou seja, é preciso o voto favorável de 2/3 dos votantes para aprovação, ao passo que a LO o quorum é simples, ou seja, maioria + um. Veja que no art. 5º do Projeto de Lei há uma “ilegalidade”, visto que o referido artigo 5º do PL propõe alteração do § 5º, do artigo 2º da Lei Complementar nº 123, determinando que a Secretaria da Micro e Pequena Empresa será o órgão responsável pelas políticas de desenvolvimento das micro e pequenas empresas. Sendo assim, difícil o PL passar na CCJ da Câmara, a não ser que se altere a redação deste artigo 5º, que é claramente inconstitucional.

Vale observar como é profícuo o cenário do marco legal que está posto atualmente para a economia solidária. O estatuto da ecosol, apresentado através de iniciativa popular de lei, com apoio da SENAES, CNAES, FBES. O projeto de lei alternativo da lei 5764/71. Projeto de lei complementar sobre o ato cooperativo. Projeto de lei das cooperativas de trabalho. Os projetos de lei estaduais e municipais, com respectivos conselhos, que se multiplicam propagando o antagonismo cooperativismo e a economia solidária, apresentando-se sob matizes diferentes, mas disputando em regra o mesmo orçamento. Projeto de lei do artesão. O empreendedorismo individual e o social. A agricultura familiar e a agroecologia. Os catadores de resíduos sólidos. São muitos protagonistas e prismas das discussões jurídicas.

A discussão sobre o marco legal da economia solidária está muito fragmentada ao mesmo tempo em que podem se destacar alguns aspectos e protagonistas que tornam o ambiente favorável para uma intervenção de natureza ergológica com fins de identificar e (re)normatizar as cadeias produtivas, a partir da análise de um trabalho melhor desenvolvido. Cabe a discussão de índole conceitual e principiológica, quando poderiam ser tratadas outras formas de abordagem da economia solidária no governo, repartida entre os que pugnam por um ministério sem levar em consideração a primazia da sustentabilidade para realização desta política, que impõe mudanças estruturais que merecem ser observadas por um governo que se diz socialista e dos trabalhadores. É importante perceber o impacto que a ruptura deste processo de direito econômico que vem se construindo, sem haver consolidado ainda alicerces de base conceitual, poderá gerar confusão e comprometer propósitos da política pública. Isto clareia a importância abre espaço para a regulamentação dos segmentos econômicos, especialmente por causa dos efeitos da última geração de leis da era lula correspondentes aos novos direitos, onde situa-se a economia solidária, mas que tem como principal alicerce a sustentabilidade.

Profundas mudanças na legislação que causam forte impacto para o desenvolvimento da política pública, como especialmente a nova redação do artigo 3 da Lei de Licitações, dada pela lei 12.349/10, que dispõe que as contratações públicas de serviços e aquisição de bens deveriam estar alinhadas às políticas de sustentabilidade do governo federal, apontam para mudanças significativas nas ações do governo.

Novas leis de descartes de resíduos sólidos bem como as da coleta seletiva do lixo reciclável são igualmente importantes. Este cenário aponta para múltiplas possibilidades de atuação das cooperativas e associações, como também das pequenas e micro empresas, um novo mercado no qual, segundo cálculos do próprio governo, para os próximos 10 anos serão investidos mais de R$ 15 bilhões (fonte www.comprasnet.gov.br)

As razões que se fizeram no pl 865 estão visíveis na história recente do país, mas o referido projeto de lei encaminhado ao congresso nacional alterando a lei 10683 criando a secretaria da micro e pequena empresa, transferindo competências hoje atribuídas a SENAES, não levou em consideração aspectos históricos crônicos que não resolvem os imbróglios, muito ao contrário.

Esta ação parlamentar, aparentemente contraditória, promovida pelo governo, sem aprofundar o mérito, sugere condições favoráveis para reconstrução do ambiente de “concertação” nacional, enquanto universo de convergências, que se perdeu pelo meio ao final da gestão anterior.

Bom esclarecer que o conceito de “concertação”, embora novo e ainda pouco explorado, mas por ser um instituto com princípios próprios que podem servir para discussão de normas e valores da atividade humana, é de fundamental importância para o debate que se abre com este novo projeto de lei, considerando, ainda, que a “concertação” também é parte do conceito de “ergologia”, outro conceito fundamental para a tomada de consciência da economia solidária, e ambos podem e devem ser aplicados à economia solidária, especialmente na construção de cadeias produtivas e processos de certificação.

A Ergologia apresenta-se como um conjunto de procedimentos metodológicos que pode servir como uma oficina permanente de produção de discussão e produção de métodos, de forma participativa com os trabalhadores, para uma cada vez melhor compreensão sobre a atividade de trabalho, o que revela o seu caráter essencialmente educativo em uma proposta nova de assessoria a empreendimentos econômicos solidários: a ergodialogia do trabalho, sendo ergon traduzida por ‘atividade’ e dialogia entendida por ‘processo de investigação através do diálogo entre diferentes saberes’.

Este momento favorável à “concertação” de soluções jurídicas mais criativas em razão da interpretação do que vem sendo reconhecido como novos direitos ou quarta geração de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, conhecida como plataforma DHESCA, torna os ambientes próprios para o exercício pleno da ergodialogia.

Sendo a atividade de trabalho dos empreendimentos econômicos solidários tomada como objeto de um trabalho educativo com base na Ergologia, os instrumentos do balanço social e da discussão sobre comercialização e consumo éticos, justos, solidários e sustentáveis integram o diálogo ergológico sobre a atividade de trabalho, uma vez que tais temas, assim como qualquer parte da vida de um empreendimento, guardam relações íntimas com a atividade laboral situada. Neste sentido, para o enriquecimento da compreensão sobre o trabalho dos mesmos empreendimentos solidários, bem como para os melhoramentos em todo este processo, a Ergologia pode funcionar como um instrumento fértil.

A proposta ergológica se comunica com a economia solidária, na medida em que o propósito comum é a transformação do trabalho e de cadeias produtivas a partir da sua compreensão. É certo que as formas de trabalho estão em declínio, mas novas formas de trabalho aparecem de matriz coletiva, razão porque se torna oportuna esta discussão em alçada de concertação e por um manifesto de ergoengajamento na economia solidária. A aposta na proposta ergológica realizada dentro de um ambiente de concertação, na medida em que os valores e princípios da economia solidária não se sustentam por uma política voltada para o microempreendedorismo, pelos múltiplos aspectos às vezes contraditórios na economia de mercado. São os estudos ergonômicos especialmente na renormatização das cadeias produtivas que se estará agindo conforme os princípios da economia solidária. Existem sistemas de acreditação capazes de movimentar negócios sociais a partir de instrumentos como balanços sociais e processos de certificação conforme as diretrizes do INMETRO e dentro dos padrões do comércio internacional justo e solidário.

O Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário – SNCJ é uma proposta que surgiu a partir de um grupo de trabalho criado em audiência pública do MTE em abril de 2006 e composto por representações do governo e sociedade civil. INMETRO é o orgão de acreditação de organismos de avaliação da conformidade reconhecido pelo Governo Brasileiro. A proposta do SNCJ prevista no termo de referência apresentado pela SENAES prevê como mecanismos de avaliação de conformidade a garantia de terceira parte, conforme instrumental disponibilizado pelo INMETRO, a garantia solidária, correspondentes aos sistemas participativos de garantias (SPG’s) e a garantia relacional, dada diretamente pelos envolvidos na relação comercial através de declaração do EES.

A proposta do SNCJ não comporta transformações radicais em sua estrutura ainda frágil, que vem sendo moldada na esfera de competência do ministério do trabalho, também pouco aproveitando a base de dados do Sistema de Informações de Economia Solidária – SIES, especialmente no que foi desenvolvido na terceira e última edição ainda não finalizada, de forma que acontece muitas vezes sobreposição de projetos, o que compromete em tantos casos o resultado esperados e fundados na sustentabilidade.

Neste sentido, cabe registrar que resultados parciais identificados em trabalho cartográfico, realizado por remanescentes do CTE responsável pelo mapeamento SIES/RJ/2010, reunidos no grupo denominado MANDALA e autodeclarado como empreendimento (EES), não se comunicam com resultados apresentados no Rio de Janeiro pelo NEATES. Esta discrepância demonstra, por exemplo, uma inclinação para sobreposição de projetos, comprometendo a política pública e justificando medidas como a retomada dos movimentos de concertação, com o cuidado de não se distanciar dos princípios e valores da institucionalização. Os valores da economia solidária se depreciam na medida em que são tratados sem condições necessárias para o estabelecimento de um sistema de acreditação, que comporte exigências metodológicas formadas em princípios, muitas vezes escapando ao alcance do que se pratica como economia solidária sem que haja uma observação real e verdadeira do que foi mapeado.

“Liberdade de consciência é poder de renovação”