Por Luiz Carlos Fabbri*

São Paulo, 1o de janeiro de 2011

1. A débâcle do socialismo realmente existente, e do sistema que havia criado, tornou o horizonte da esquerda e do PT repentinamente nebuloso e problemático. Ficamos com medo da luta de classes e da sua desventurosa dialética. Sem o socialismo, como farol visível e reconhecível, fomos caindo no pragmatismo político e perdendo o sentido da construção histórica coletiva e persistente.

2. Embora o ideal socialista ainda precise ser reconstruído, nós não podemos perder de vista alguns dos princípios estratégicos que dele fazem parte, inexoravelmente. O desafio que a esquerda pode aceitar hoje não é o da criação de um novo modelo, como ocorria nos primórdios da luta revolucionária e, posteriormente, no interior do campo socialista. Pelo contrário, temos que manter os olhos bem abertos e procurar apreender os processos de mudança em curso, à luz de alguns atributos do socialismo que fazem parte de nosso legado histórico.

3. Dois desses princípios estratégicos, que não tem recebido suficiente atenção, deveriam, no meu modo de ver, iluminar o nosso caminho nos albores do governo da Presidente Dilma. O primeiro deles diz respeito ao aprofundamento da democracia política no Brasil, em resposta à emergência de novos sujeitos históricos, e o segundo, conjugado, a emancipação econômica das camadas mais pobres e excluídas da sociedade no rumo de uma sociedade igualitária.

4. O debate no Partido e no campo da esquerda tem-se concentrado nos aspectos institucionais do aprimoramento democrático. As nossas formulações em torno da reforma política não tomam na devida conta que a organização autônoma dos trabalhadores e da sociedade civil deveria ser o cerne de qualquer mudança no padrão de dominação política no Brasil. Além das formas de representação popular que conformam o nosso sistema político, nosso legado socialista deveria nos conduzir a dar maior peso à construção das formas de representação e participação direta. Para o PT, a contracorrente do pensamento político convencional, este alargamento da democracia política, com foco nas camadas sociais emergentes, que configuram o chamado lulismo, deveria ser uma de nossas principais bandeiras, na perspectiva da construção de uma nova hegemonia.

5. O governo do Presidente Lula foi um marco na instituição de formas de participação política direta. O respeito às instituições da democracia representativa, às competências dos poderes públicos e aos processos eleitorais se combinou com a realização de dezenas de conferências setoriais e a criação ou fortalecimento de um grande número de conselhos. No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer para a construção formas de representação direta e para a sua incorporação num sistema político brasileiro renovado.

6. As conferências e os conselhos setoriais não foram ainda efetivamente incorporados como método de governo. Embora houvesse a intenção de dar-lhes um arcabouço legal antes do término do mandato do Presidente Lula, isso não veio a ocorrer. Com este escopo, algumas diretrizes deveriam ser observadas:

a. As conferências deveriam tornar-se obrigatórias em todos os setores de atividade, sem exceção, independentemente dos partidos ou orientações políticas de seus titulares, ou de considerações de ordem corporativa.

b. A maioria de delegados às conferências deveria estar constituída por organizações da sociedade civil, diretamente implicadas em cada um dos setores.

c. Os conselhos eleitos pelas conferências deveriam funcionar regularmente, dispondo de um secretariado em Brasília, co-presidido por um representante do governo e outro da sociedade civil.

d. Deve-se perseguir em cada setor um debate de abrangência nacional, escalonada por municípios e Estados, procurando promover a continuidade de funcionamento dos Conselhos estaduais e municipais.

e. Deveria haver normas claras e acordadas sobre matérias de cunho deliberativo e consultivo, obrigando, caso a caso, à inscrição das propostas no Plano Plurianual (PPA) e no Orçamento Geral da União (OGU).

7. Os projetos de lei de iniciativa popular e as formas de consulta direta à população não têm sido promovidos e nem favorecidos como formas de exercício do poder político, embora estejam asseguradas pela Constituição. A sua regulamentação inexiste ou é inadequada, tornando a sua prática problemática, complexa e desestimulante. Algumas leis de iniciativa popular, meritórias, foram aprovadas após longo processo de mobilizações e articulações, envolvendo inclusive a necessidade da apresentação dos projetos por parlamentares, que assumiram a sua autoria. À parte o inglório plebiscito sobre a comercialização de armas de fogo, a prática tem-se limitado à realização de campanhas por parte de organizações da sociedade civil. Os referendos revogatórios de mandatos ou decisões políticas, cujo potencial de conscientização popular é inegável, nunca foram tentados no Brasil. No entanto, plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular são formas de democracia direta por excelência, cuja promoção deveria possuir um caráter estratégico no projeto político do PT, pois possibilitam a organização autônoma da sociedade civil e o alargamento dos espaços democráticos, abrindo novos horizontes para uma nova construção hegemônica.

8. Nós vivemos uma época de revolução nas comunicações, que continua a nos surpreender pela avalanche de inovações tecnológicas. As chamadas novas mídias estão modificando as nossas noções de espaço e tempo, possibilitando formas diretas de interação humana e provocando a emergência de novos direitos, como o direito à comunicação. O PT não foi capaz ainda de apropriar-se do potencial emancipador dessas novas tecnologias para a prática política transformadora. No entanto, algumas experiências de cunho municipal, como o Orçamento Participativo Digital de Belo Horizonte são prenhes de ensinamentos, referentes às possibilidades de massificação, de acompanhamento e de aprendizado oferecidos pela internet. Há um novo mundo a ser conquistado em termos de processos diretos de discussão e de tomada de decisões, tanto para servir de suporte a conferências e conselhos, como em termos de participação direta em decisões sobre investimentos, diretrizes de políticas públicas ou novas leis. De forma coerente com nosso projeto político, e antes de sermos devorados, temos que apreender o caráter estratégico da revolução em curso, o seu ritmo acelerado e a novidade que ela traz para infundir novo ímpeto ao ideal socialista.

9. O segundo princípio estratégico que nos propusemos examinar é o da necessária emancipação econômica das camadas mais pobres e excluídas da sociedade, no rumo de uma sociedade igualitária. O desafio está colocado de maneira contundente, no bojo do sucesso da política de crescimento com distribuição de renda executada pelo governo Lula e da prioridade enunciada pela Presidente Dilma de erradicar a miséria até o final do seu mandato. O combate à pobreza e à miséria possui, no entanto, uma dimensão política própria, na medida em que não se trata de uma mera questão de melhoria de indicadores econômicos, porém da superação de uma situação de privação de direitos, que está no cerne da desigualdade social no país.

10. No entanto, examinando à primeira vista os primeiros pronunciamentos e a estrutura do novo governo, o foco da luta contra a pobreza parece residir na expansão da economia formal. Ora, imaginar que possamos eliminar a situação de extrema pobreza, em que se encontram 13 milhões de pessoas e avançar na redução da pobreza de 40 milhões de pessoas (Ver Ipea data em www.ipea.gov.br, dados de 2009. O cadastro único do Bolsa Família inclui por sua vez, 19 milhões de famílias.), ou seja, 1/5 da população brasileira, mediante a criação de emprego formal, com carteira assinada, é uma triste ilusão. A realidade do emprego no Brasil é que quase metade da população vive em situação de informalidade, enquanto que as baixas taxas de desemprego, sem dúvida uma conquista notável do governo Lula, incidem somente sobre as pessoas que se encontram à procura de uma ocupação remunerada, ou seja, aqueles que fazem parte da chamada população economicamente ativa. É bastante provável, contudo, que uma boa parte dos pobres esteja fora do mercado de trabalho e que os miseráveis jamais tenham procurado emprego formal.

11.A criação do Ministério da Microempresa, anunciada para fevereiro, não somente não trará nenhuma solução substantiva ao problema da miséria, como poderá representar uma temeridade e um imperdoável irrealismo. Pretender que os miseráveis possam tornar-se microempresários é desconhecer o nível de carência e prostração das pessoas vivendo em extrema pobreza no Brasil. Os programas de transferência de renda certamente trouxeram para eles um novo alento e os programas de qualificação estão abrindo novas possibilidades, porém isso não basta. A sua incorporação plena à cidadania, na escala requerida, aquilo que se chamou de “porta de entrada”, requer uma ação concentrada, talvez ao nível de uma secretaria especial, que associe a conquista de dignidade humana a alternativas de geração de trabalho e renda, necessariamente coletivas e emancipatórias nesta fase.

12.Os programas de transferência de renda, e o Bolsa Família em particular, foram reconhecidamente uma das principais realizações do governo Lula, estando na base do chamado Lulismo e da vitória da Presidente Dilma nas eleições de 2010. Uma grande ênfase foi colocada pelo governo na gestão dos programas sociais, na criação do cadastro único, no controle das chamadas condicionalidades. Resta, porém, um importante caminho para que os benefícios daí advindos se tornem princípios e normas de políticas públicas e para que a própria percepção dos beneficiários se torne a de usufruto de um direito. Para que isso suceda, é necessário que o sursis representado, por exemplo, pelo Programa Bolsa Família, seja acompanhado de um processo de mobilização e organização autônoma dos beneficiários envolvendo formas de controle social, programas de alfabetização e educação de adultos e, de maneira geral, de organização na luta por direitos.

13.Se o combate à pobreza e a erradicação da miséria são momentos de uma luta por uma sociedade mais igualitária e, portanto, possuem uma dimensão política incontornável de conquista de direitos e de cidadania, há que politizar a pobreza e os pobres, promovendo no dizer do saudoso Eder Sader a “entrada em cena desses novos personagens”. Isso não pode ocorrer obviamente sem o fortalecimento do PT e da esquerda em geral. Tanto o aprofundamento da democracia política e a ampliação de suas formas diretas como a luta contra a pobreza, entendida como um processo de conquista de direitos e de emancipação de sujeitos históricos exigem, concomitantemente, um retorno às formas de organização pela base e um reequilíbrio do modelo de organização partidária articulado em torno das lutas sociais. Com efeito, prosseguir na supremacia da organização em mandatos poderá fazer-nos soçobrar naquilo que Marx designava como “cretinismo parlamentar”.

14.Por menor que seja a nossa clareza atual sobre o projeto socialista, uma visão excessivamente pragmática e sem princípios, fazendo tabula rasa de nosso legado histórico, talvez possa levar-nos à modernização do Brasil, tornando-o talvez um país de classe média, menos injusto e desigual. Porém seria imperdoável para nossa geração se não nos revelássemos capazes, no tempo presente, de favorecer uma ascensão do movimento social e uma mudança na correlação de forças que nos empurrasse rumo a uma nova hegemonia e à construção socialista.

*Economista com pós-graduação em economia internacional, gestão de projetos e organização de empresas. Foi Secretário em Guarulhos, Chefe da Assessoria Internacional no Ministério das Cidades e Diretor de Programas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Milita nas áreas de direitos humanos e relações internacionais.