Por Leonardo Boff

José Saramago se considerava ateu, mas de um ateismo muito particular. Entendia o “fator Deus” como vem veiculado pelas religiões e pelas Igrejas como forma de alienação das pessoas acerca dos graves problemas da humanidade. Seu ateismo era ético, negava aquele “Deus” que não produzia vida e não anunciava a libertação dos oprimidos.

Essa compreensão pude discuti-la pessoalmente num memorável encontro na noite do dia 5 de dezembro de 2001 em Estocolmo no Suécia. Ele viera à cidade para um encontro-celebração de todos os portadores do prêmio Nobel. Eu lá estava pois fora indicado para o prêmio “The Right Livelihood Award”, chamado de Nobel Alternativo da Paz. Nesta ocasião convidou a mim e à minha companheira Márcia para um jantar. Foi um festim de espiritualidade mais do que de literatura. Levei-lhe um livro de contos indígenas “O Casamento do Céu com a Terra” e para a sua esposa Pilar um outro, “Espiritualidade: caminho de realização”. Ele logo foi dizendo: “quero o livro de espiritualidade, pois pretendo me aprofundar neste tema”. E foi então que falamos longamente sobre religião, Deus e espiritualidade. Negava a religião, mas não a espiritualidade como sentimento do mistério do mundo, da profundidade humana e do amor aos oprimidos. Mostrou sua admiração pela Teologia da Libertação por fazer do “fator Deus” uma força de superação da miséria humana. A comunhão foi tão profunda que fomos madrugada adentro, já em seu quarto de hotel, como se fôssemos velhos amigos. Márcia estava lendo o seu Ensaio sobre a cegueira no qual lhe fez comovente dedicatória. O e-mail abaixo revela a experiência espiritual que juntos vivenciamos:

“Querido Leonardo, querida Márcia,

Para nós, o grande acontecimento em Estocolmo foi ter-vos conhecido. Não exageramos. O resto foi a pompa e a circunstância do costume, em que até mesmo o que é sincero e autêntico acaba por se perder no meio dos formalismos e dos artifícios. O tempo que estivemos juntos foi um banho para o espírito. Quem dera que em breve surja outra ocasião.

Os anos são todos terríveis para aqueles para quem a vida é terrível. Às vezes as coisas correm melhor no mundo e isso leva-nos a pensar que estamos em paz, mas o mesmo não poderiam dizer os milhões de seres humanos cujas opiniões contam tão pouco que praticamente não se dá por elas. E se de alguma maneira chegam a manifestar-se, os modos de as silenciar, não faltam. O vosso trabalho cria e reforça consciências livres ou em processo de libertação, precisamente o que anda a faltar no mundo. Não sois pessoas para ceder ao cansaço, e essa é uma característica dos que são imprescindíveis. Desejamo-vos o melhor, sabendo que o melhor para vós é que possa melhorar a vida àqueles a quem haveis consagrado a vossa.

Com todo o carinho Pilar e José Natal de 2001″. Ganhamos um amigo e a fé me diz que agora mergulhou naquele Mistério de amor que sempre buscou.

Artigo escrito para o jornal Estado de São Paulo, Caderno Sabático.