Fonte: Revista Fórum
O processo de redemocratização brasileiro parece ainda não ter chegado ao fim. É o que apontam os artigos reunidos no livro O que resta da ditadura (Boitempo Editorial), organizado pelo filósofo Edson Teles e pelo historiador Vladimir Safatle, que apresenta análises de cada setor da vida brasileira em que resquícios do período da ditadura militar ainda se mantêm.
A obra é resultado de um seminário realizado na Universidade de São Paulo (USP) e seu lançamento vem a calhar com a discussão ainda viva sobre a criação de uma Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos pelo Estado durante o período da ditadura.
Um dos principais legados apontados no livro é a prática ainda constante e crescente da tortura nos presídios brasileiros. “O Brasil é o único país em que a tortura aumentou depois do regime ditatorial”, diz Safatle. O historiador lembra de outros legados culturais, como a “dificuldade de distinguir em que situações se está dentro e qual esta fora da lei”.
“No Chile, até mesmo as Forças Armadas do país se colocaram contra a ditadura de anos atrás”, afirma, criticando as Forças Armadas brasileiras, que quando não se abstém na questão das violações dos direitos humanos durante o regime autoritário, chegam a defender aspectos daquela época. Mas acredita que não só as Forças Armadas devem repensar o papel que tiveram na época: “há setores que nunca fizeram uma autocrítica na sua participação no regime militar”.
O livro será lançado na próxima sexta-feira, 19, na Livraria da Vila, às 19h. Na quinta-feira, 18, a Boitempo Editorial organiza dois debates na USP: um às 17h, com Edson Teles, Fábio Konder Comparato e Glenda Mezarobba, sobre a criação da Comissão da Verdade, e outro às 19h com Paulo Arantes, Paulo Vanucchi e Vladimir Safatle sobre políticas da verdade e da memória, ambos no anfiteatro do prédio da História.
Leia abaixo a íntegra da entrevista que Vladimir Safatle sobre os temas do livro.
Fórum – Um dos destaques do livro sobre os resquícios da ditadura é a violência do Estado contra civis. Onde mais podemos enxergar legados da ditadura em nossas vida?
Vladimir Safatle – Além da questão do aparato policial, que a ditadura montou e não foi desmontado e que faz com que várias práticas sejam empregadas de maneira sistemática; estudos demonstram que o Brasil é o único país em que a tortura aumentou depois do regime ditatorial.
Na Constituição, permanecem estruturas herdadas da Carta de 1977, em especial as relativas à segurança nacional. Existe um artigo que de maneira bastante peculiar permite a intervenção das Forças Armadas na vida nacional, o que também pode legitimar constitucionalmente um golpe de Estado. Nele diz-se que as Forças Armadas têm papel de guardiã da democracia, mas não explicita quem pode chamá-las para cumprir esse papel. Isso abre a possibilidade de leitura de que qualquer poder tem o direito de chamar as Forças Armadas, como o presidente do Senado, sem quebra da lei constitucional.
Mas tem duas questões importantes. A primeira é sobre como os operadores políticos se relacionam com a lei. A grande peculiaridade da nossa ditadura foi a aparência de legalidade. Nós tínhamos um Estado que assinava acordos internacionais contra a tortura ao mesmo tempo em que ela era prática política comum. Tinha um Estado que permitia que tivesse nas bancas livros de Marx, de Celso Furtado, permitia canções de protesto, mas todos sabiam que isso podia de mudar do dia pra noite. A ditadura conseguir criar uma aparência de normalidade para esconder a mais crassa anomia e criou a dificuldade de distinguir em que situações se está dentro e em quais se está fora.
Outro legado é de como a ditadura sela o destino que a memória tem na vida nacional. Há um trabalho de apagamento da memória, de uma impossibilidade crônica de se olhar para trás e conseguir, a partir dos impasses que foram deixados, pensar nos problemas presentes. Longe de ser uma simples questão de reparação dos que tiveram violados os direitos, é uma questão profunda, ligada à maneira como lidamos com nossos problemas presentes.
Fórum – No Brasil, muitos militares referem-se à ditadura com orgulho. Qual o significado disso? Isso influencia na perpetuação dos legados da ditadura?
Vladimir – O significado é simplesmente aterrador. Acho amedrontador esse tipo de postura de vários círculos militares no que diz respeito ao legado da ditadura. Indica um risco crônico à democracia nacional e uma incapacidade do exército e das Forças Armadas de se tomar distância do tipo de prática adotada na ditadura, ao contrário de outras experiências na América Latina. No Chile, até mesmo as Forças Armadas do país se colocaram contra a ditadura de anos atrás. Que não tenhamos isso no Brasil demonstra que há um risco inerente de subordinação como ocorreu em alguns casos nos últimos anos, a exemplo da dificuldade de se estabelecer a Comissão da Verdade.
Fórum – Grande parte do apoio do regime militar veio da população civil. Hoje algumas pesquisas apontam que a sociedade brasileira até aceitaria um regime não democrático caso tivesse condições econômicas melhores. A sociedade brasileira aceitaria um novo regime anti-democrático, apesar da experiência recente?
Vladimir – De fato há pesquisas que mostram que o engajamento em relação à democracia na população brasileira é bastante mitigado. Mas temos que lembrar que quando alguém responde à pergunta “se você acredita na democracia”, ela responde sobre a democracia tal como ela a vê hoje. Hoje vivemos num regime de semidemocracia. Boa parte do que aparece nessas pesquisas é um desconforto com o regime brasileiro.
Uma coisa é certa: a sociedade brasileira sempre foi dividida sobre o legado da ditadura militar e há setores que nunca fizeram uma autocrítica na sua participação. Esse tipo de questão é muito importante, não é possível um país permitir que setores da sociedade que tiveram participação tão forte não coloquem em marcha um processo de autocrítica.
Fórum – É possível dizer que o Brasil é o país que mais carrega legados da ditadura com relação a outros países da América Latina?
Vladimir – Nossa situação é a mais problemática e vexatória. Todos os outros países, em maior ou menor grau, fizeram uma justiça de transição. Desmontaram os aparatos jurídicos em que crimes da ditadura não eram julgados. Mesmo no Uruguai, chegou-se a fazer um plebiscito a esse respeito, colocaram essa questão em discussão nacional. A gente conseguiu, durante 25 anos, expulsar esse debate da política. Isso é feito em nome de uma espécie de possibilidade de ignorar o que foi o passado devido à nossa obrigação de olhar pra frente. Mas o que é recalcado no passado, volta no futuro. O que é expulso do universo simbólico volta pra vida real. Nenhum país consegue estabelecer o mínimo de solidez sem acertar contas com o passado. Se nós realmente temos apreço não pela atual democracia, mas pela possibilidade da vida nacional de uma vida democrática mais efetiva, isso é central.