Artigo de Leonardo do Egito Coelho

Em resumidas considerações, alguns aspectos do que vem sendo proposto e discutido enquanto normas pelo governo federal, para institucionalizar a política nacional de economia solidária, observando o cenário legal e político atual, mas delimitando a análise sobre idéias relacionadas à proposta originariamente concebida como Estatuto da Economia Solidária. Esta iniciativa, apresentada como minuta de proposta de lei para institucionalizar política nacional de economia solidária, dispõe sobre a Política Nacional de Ecosol, cria o Sistema Nacional de Ecosol e o Fundo Nacional de Ecosol.

A proposta foi construída com base em conceitos próprios, que estabelecem um sistema organizado pelas correlações de força na proclamada economia solidária, ou ecosol como preferem alguns, além de fundo creditício para financiamento da(s) correspondente(s) política(s) pública(s). Esta iniciativa consolida não apenas uma política voltada para coletivos de trabalhadores, formais e/ou informais, mas convalida uma série de experiências que já vêm acontecendo no país mesmo antes de 2003, ano em que foi criada a SENAES, Secretaria Nacional da Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego.

Uma particularidade, no entanto, é bom registrar em relação à economia solidária, eis que esta perpassa em essência pelos demais movimentos sociais, atribuindo-lhe uma condição de transversalidade, apesar dos consagrados princípios da solidariedade e autogestão, que por si só já bastariam para garantir sua sólida condição enquanto movimento social autônomo e também como estratégia de desenvolvimento. A diversidade de práticas e experiências, por sua vez, traz a impressão de que outros sistemas se formam em torno destes princípios, de acordo com interesses comuns aos vários segmentos de produção e trabalho e na medida da sua realização. Esta caracterização dos empreendimentos de ecosol, baseada em valores ainda difusos, exigirá instrumentos que permitam cada vez mais uma melhor identificação e avaliação.

As ações de governo, diante das características encontradas na ecosol, assumem uma natureza sistêmica, na medida em que seus processos se relacionam entre si, visto o caso dos projetos de formação, comercialização e mapeamento das iniciativas de produção coletiva, atribuindo-lhes expressivo valor simbólico e sentido de complementariedade. Esta unidade, todavia, para muitos, em razão da transversalidade presumida, ainda não é suficiente para que a proposta de lei geral da economia solidária seja acolhida completamente, por estar centrada a idéia em torno de um sistema único, pré-constituído, nos moldes da política de segurança alimentar e do sistema nacional de habitação e interesse social. Sistema trata-se de conceito amplo, difuso e fundamental para o processo autogestionário, havendo sido destacado como um dos principais temas ao lado da economia solidária e da educação popular no conteúdo de programação do projeto formação da rede de agentes multiplicadores da ecosol, com ponto de partida na sistematização das experiências realizadas. Assim, convém evitar contradições nas proposições e práticas orgânicas.

Nesse sentido, há quem defenda uma lei geral fundada tão somente em conceitos, princípios, valores e diretrizes para a ecosol, que apontem instrumentos de avaliação, validação e fomento, conforme as experiências sistematizadas por segmentos produtivos, consideradas as proporções do empreendimento. Os sistemas, para estes, se formariam em decorrência dos arranjos produtivos locais, analisados em razão da sustentabilidade e direitos coletivos, por exemplo como o programa Brasil Local, mas construído com uma maior participação popular, para garantir não apenas acesso aos orçamentos públicos, mas também uma apropriação destes valores e princípios de uma prática orgânica.

Algumas idéias originárias do acúmulo de debates em torno do marco regulatório, como por exemplo os balanços sociais, ou as sociedades de capital e indústria, podem e devem ser (re)aproveitados na construção de um modelo ainda mais eficiente e orgânico, desde que integradas e adaptadas com as estruturas já constituídas, como o caso do Conselho Nacional de Economia Solidária – CNES, além de ultrapassadas algumas questões preliminares com alto grau de relevância, levantadas adiante.

Como primeira preliminar, cumpre observar que a referida proposta de lei não supera uma questão básica, construída pelo antagonismo entre práticas cooperativistas e outras relacionadas ao trabalho associado, mais identificado com a ecosol. Interessante seria uma proposta que resgatasse a essência e a origem da Economia Solidária e do Cooperativismo e outras formas de Associativismo, como previsto na Constituição Federal. Não cabe aqui discorrer sobre os conflitos institucionais existentes pela hegemonia sobre os conceitos fundamentais e comuns, mas necessário destacar a importância do seu debate, sem esquecer que o cooperativismo e o associativismo, com todas as suas dúvidas e contradições, ainda são regidas pelo Código Civil e no caso das cooperativas a Lei nº 5.764/71, não esquecendo o polêmico artigo 442 da CLT.

Outra questão preliminar envolve a dimensão e relevância que a autoria do projeto de lei pode alcançar. Embora, seja louvável a iniciativa do Governo em apresentar uma proposta que, desde a criação da SENAES, vem sido idealizada como Estatuto da Economia Solidária, não se deve descuidar da estratégia em se adotar instrumento de iniciativa popular de lei para melhor executar os processos de formação dessa outra economia, enfatizando o processo de mobilização em maior escala. Um movimento para aprovação de um projeto de lei baseada em valores e princípios da economia solidária pode fazer acontecer de fato a criação de uma rede nacional de formadores. Outras questões quanto à autoria podem ser observadas, especialmente aquelas relacionadas com a criação de fundos, mas se tornam menores diante da grandeza e do impacto nesse processo de formação.

É possível, para não dizer provável, que a institucionalização do sistema aconteça por uma lei de iniciativa popular de lei, com instrumentos definidores de conceitos, valores e princípios, construindo diretrizes a partir de experiências realizadas. Convém estar atento, contudo, para uma outra ótica da institucionalização, esta praticada pelos movimentos sociais, que não se devem confundir com as ações do estado, mas que em muitas situações se apresentam como aparelhos estatais, colocando em risco a gênese da proposta ecosol.

Isto não quer dizer que não devam dialogar movimentos sociais e Estado, até porque seria incongruente negar que a realidade hoje existente aconteceu muito pelas ações do governo, mas é interessante, por exemplo, atualmente notar o alto grau da migração de militantes dos movimentos sociais para órgãos governamentais, na condição de gestores públicos, o que endossa os cuidados que se devem com as estruturas dos sistemas em relação à participação popular, especialmente no ambiente da economia solidária. Outra observação interessante de registrar é uma disputa, ainda que velada, entre as entidades de apoio em busca de editais para o fomento de políticas sociais, o que muitas vezes cria condições de insustentabilidade para os empreendimentos, pelo grau de dependência que permanece. O fato é que mesmo com as boas intenções do governo, ou até por isso mesmo, muitos movimentos sociais têm sido afetados em suas relações institucionais, não apenas com o estado, mas também com seus pares no chamado terceiro setor, gerando ambientes de desconfiança e disputas, totalmente contrários ao que deveria ser a prática orgânica da economia solidária.

Nunca é demais reforçar a necessidade contínua do debate conceitual, pois em nossa realidade plural, as palavras podem ser cada vez mais interpretadas conforme interesses nem sempre coletivos, daí a importância de uma discussão permanente sobre a concepção dos princípios elementares. O valor simbólico das coisas pode estar relacionado com o próprio significado da economia solidária e seus conceitos dela decorrentes, que muitas vezes são ditas sob as mais variadas interpretações e vulneráveis às mais diversas formas de dominação. A forte mutação como acontece a construção de conceitos a partir das experiências, mantém o debate conceitual ainda no centro das discussões. Assim, sustentam alguns, que uma lei com tamanho grau de importância, que sequer esgotou o debate conceitual, deveria restringir seus propósitos e objeto tão somente a valores e princípios que formam a concepção da economia solidária, tornando imprópria para esse momento, firmar estruturas em um sistema que vem gestando uma gama de outros sistemas revelados pelos segmentos de produção e trabalho.

Está em curso um processo de relações sistêmicas que irá permitir experimentações a partir dessas novas relações sociais, econômicas e culturais, contudo, ainda são necessários alguns instrumentos que avaliem e validem situações declaradas com fé pública. É importante que uma lei de diretrizes da economia solidária crie esses instrumentos, como balanços sociais, por exemplo, que permitam identificar e avaliar, baseados em critérios de valores e princípios da ecosol, empreendimentos autosustentáveis, assim como novas cadeias produtivas. Tão importante como revelar e sistematizar os segmentos produtivos, é inaugurar processos autoavaliativos dos atores sociais envolvidos com a ecosol, tendo em vista as tecnologias sociais existentes e o simples fato desta já constar na pauta dos principais movimentos sociais.

Discutir formas de balanços sociais juntamente com as informações do mapeamento pode criar um ambiente favorável à identificação dos atores da ecosol, ou validação como queiram alguns, fugindo dos rigores imaginários que nos trazem a idéia de certificação, mesmo com exemplos como do PRONAF na identificação da agricultura familiar. O modelo de sociedade capital e indústria, ainda permanece em vigor na nossa legislação, embora tenha caído em desuso pela sua forma inadequada de responsabilidade social, mas pode se tornar uma opção interessante no propósito de organizar um sistema para os trabalhadores informais. No modelo atual os sócios capitalistas respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais.

As questões sobre o CNES merecem ser (re)discutidas, posto que sua importância está mais identificada com o papel que se pretende atribuir aos sistemas. Uma série de programas desenvolvidos pelo atual governo sobre ecosol serviram e servem de base para um plano integrado de desenvolvimento, sistematizado, o que legitima funções para esse conselho de, por exemplo, validar, como é feito no mapeamento, os atores com seus direitos e compromissos sociais. Há quem perceba razões para a competência da CNES abranger validação dos empreendimentos da economia solidária, o que demandaria envolvimento do Ministério Publico do Trabalho, assim como intervenções voltadas para os rearranjamentos locais produtivos.

O panorama político da ecosol em nível nacional atualmente aponta, além dos programas desenvolvidos atualmente pelo governo, para um cenário legal quase inexistente, com exceção para a criação da SENAES e do Conselho Nacional de Economia Solidária – CNES. Há, contudo, uma diversidade de propostas e projetos de lei em curso que não têm asseguradas sua aprovação, muito menos sua implementação, pelas mais variadas razões, seja pela complexidade nas suas formulações ou por colisão dos direitos já tratados em preliminar, por exemplo.

Existiriam, como existem, diversos aspectos jurídicos que poderiam desde já ser apontados na proposta originária, contudo, por sustentarmos neste artigo uma reforma estrutural na proposta, nos ateremos a conduzir a discussão somente entre a proposta do governo de projeto nacional de lei, sem considerar outros pontos hoje considerados essenciais para o marco regulatório da economia solidária, como o PL 3/2007 iniciado no Senado Federal, que dispõe sobre as sociedades cooperativas, em substituição à Lei 5.764/71; PL 386 do ato cooperativo; PL 131 do senado, sobre cooperativas de trabalho; PL 3723 sobre tributação de cooperativas; PL 93 sobre o segmento de finanças solidárias. Todas as propostas consideradas de difícil aprovação, realçando, pelos mais variados motivos que não cabem neste momento aqui comentar. Fora da esfera federal, o que existe é uma gama de leis e de projetos de lei para políticas estaduais e municipais de economia solidária que replicam país a fora, com os mesmos lapsos da proposta apresentada pelo governo, objeto desta análise. Esses projetos em andamento, pelas mesmas razões não parecem factíveis de acontecer.

Por fim, antes de arriscar uma resposta conclusiva sobre qual direito queremos, devemos antes respeitar o tempo estabelecido pelos e para cada um dos empreendimentos que autogestionariamente buscam sua sustentação, construindo uma outra economia que queremos. Somente com o andar se faz o caminho e nesse sentido os empreendedores amadurecem enquanto os deixam e se deixam amadurecer. Há que se vislumbrar no horizonte um futuro promissor a partir de nossas ações afirmativas pela ecosol. São algumas considerações preliminares sobre a Proposta de lei para institucionalização da política nacional de ecosol, para assim, podermos concluir dizendo que os direitos da economia solidária são aqueles decorrentes da luta dos movimentos contra as situações de injustiça social. O trabalho associado validado por formas criativas de constituir provas da sua existência é o caminho do mapa para utilizar-se das políticas públicas.