Autora: Ana Maria Muller*, texto disponível no site do IBASE

Neste mês de agosto/2009, comemoramos o 30º aniversário da assinatura da Lei de Anistia, de 1979. O movimento pela Anistia – ampla, geral e irrestrita – intensificou-se no início de 1978, liderado, essencialmente, por familiares de presos políticos, mortos e desaparecidos, exilados e banidos. Com o apoio de setores progressistas brasileiros, houve ampla repercussão internacional de denúncias de atrocidades praticadas por agentes do Estado contra opositores à ditadura militar.

Tais denúncias provocaram manifestações de várias organizações mundiais ligadas aos direitos humanos e, até mesmo, países que mantinham relações com o Brasil cobraram explicações, uma vez que nosso país era signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Com o surgimento de diversos comitês espalhados por todo o país e pelo exterior em favor da Anistia política no Brasil, o movimento ganhou visibilidade, ecoando em órgãos de imprensa, ocupando praças públicas, ruas, teatros, igrejas, sindicatos. Os parlamentares autênticos do MDB (até então, só havia dois partidos políticos no Brasil, criados pela própria ditadura) apoiaram a luta pela Anistia e, no Parlamento, travaram uma enorme batalha. No ano de 1979, um senador da Arena, partido da ditadura, incorporou essa luta também como sua.

O governo, tentando barrar o crescimento desse movimento, tomou a iniciativa de elaborar uma lei restritiva que não beneficiasse os presos da luta armada – chamados, na ocasião, de terroristas pela ditadura. Exatamente os presos que se encontravam nos diversos presídios espalhados por todo país, apenados, muitos deles, com penas de prisão perpétua, de 100 anos ou mais de reclusão. Eles eram expostos pela imprensa, de maneira geral, como assassinos, assaltantes e outras derivações, que “precisavam” ficar de fora de uma Lei de Anistia.

O Projeto de Lei encaminhado ao Congresso foi rechaçado pelo movimento de Anistia, que passou a exigir, no Brasil e no exterior, a sua ampliação, para abrigar todos, inclusive com a localização dos presos políticos desaparecidos e mortos pela repressão do Estado, e a punição dos agentes que cometeram tortura.

Ao tentar se antecipar à ampliação da luta pela Anistia, lançando um Projeto de Lei restritivo, o Estado ditatorial se deparou com uma ampla mobilização da sociedade, exigindo imediata solução para suas postulações políticas. Dessa forma, a ditadura criou mecanismos para que essa mobilização popular cessasse e fez manipulação da lei 6683, inserindo duas figuras jurídicas:

· a declaração de ausência para “opositores” que não estavam localizados (os presos assassinados e desaparecidos), ou seja, uma tentativa de ocultar os crimes cometidos pelos agentes do Estado e “legalizar” a situação dos desaparecidos;

· e a expressão crimes “conexos”, cuja interpretação é, ainda hoje, motivo de muito debate.

Reação

Os presos políticos entraram em greve de fome por tempo indeterminado, em protesto contra o anteprojeto de lei de Anistia acima indicado. A greve de fome comoveu a sociedade brasileira e ampliou o leque de solidariedade à luta pela Anistia.

Com a assinatura da Lei de Anistia, 28 de agosto de 1979, os presos políticos resolveram terminar a greve de fome, considerando-a vitoriosa sob o ponto de vista político, e denunciaram o caráter restritivo da lei aprovada.

A Lei de Segurança Nacional foi reformada, com a redução das penas dos presos políticos. Eles foram sendo, aos poucos, beneficiados com liberdade condicional, dando a falsa impressão que a Anistia os tinha alcançado. Qual nada: além dos direitos políticos cassados por 10 anos, esses presos foram obrigados a comparecer, semanalmente, nas auditorias militares para assinarem boletins de localização.

Passados 30 anos, posso citar que a Lei de 1979 foi importante em alguns aspectos.

· A Lei de Anistia foi conquistada na luta, na praça, com a garra de um povo que, mesmo com medo, saiu às ruas para gritar por liberdade.

· Houve o retorno de um grande contingente de exilados políticos espalhados pelo mundo afora, muitos deles de imenso valor intelectual e político, que chegavam para contribuir e se somar à luta pela democratização do país.

· Foi iniciada a apuração do que aconteceu com os presos políticos mortos e desaparecidos, assassinados de maneira cruel e covarde.

A sociedade brasileira contabilizou muitas perdas durante a ditadura militar: a censura imposta durante 20 anos, com o povo brasileiro vivendo em uma ilha da fantasia à margem de qualquer contribuição no sentido do avanço e do desenvolvimento do país; o desconhecimento da capacidade de reação e mobilização popular, pela falta de sonhos e perspectivas; e, a pior delas, a instituição da tortura como prática diária e a impunidade dos agentes do Estado, o que reflete, hoje, nos presos comuns que são amontoados nas prisões e delegacias nesse imenso país.

Brasil comparado a outras nações

Na América, os exemplos de anistias foram diversificados. Algumas foram promovidas após a tomada do poder por revoluções vitoriosas, como o caso da Nicarágua. Nesses casos, os torturadores foram julgados pela Justiça e seus nomes e rostos expostos à população.

No chamado Cone Sul – Brasil, Uruguai, Argentina e Chile –, o processo tem avançado gradualmente. O envolvimento popular na luta, na Argentina, por exemplo, tem proporção infinitamente maior do que no Brasil, o que se reflete nas decisões tomadas por governantes e pela Justiça, que redundam nas recentes punições de torturadores e até mesmo no fechamento da Justiça Militar. Mas lá, como aqui, ainda há muito a caminhar.

No Brasil, existem inúmeras publicações nas quais se vê nomes de torturadores. Vários livros e filmes foram produzidos ao longo desses 30 anos, tornando inequívoca a denúncia da existência da tortura e dos torturadores como política oficial do Estado.

A importância da abertura dos arquivos

A verdade dos fatos só surgirá com a abertura dos arquivos. Eles trarão ao conhecimento público não só o esclarecimento sobre a morte e o desaparecimento de prisioneiros políticos, como também as perseguições impostas aos opositores, suas famílias, bem como os vilões que se escondiam atrás dos serviços de segurança. A cultura de ocultar o nome de quem pratica atrocidades é um estímulo à impunidade que leva ao arbítrio e que deve ser rechaçada com vigor.

Reparação

A reparação de atingidos e perseguidos pela ditadura vem sendo aperfeiçoada, tendo sido inserida no art.8º das disposições transitórias da Constituição de 1988 e normatizada pela lei 10559/02, que determina a forma de reparar atingidos. Essa lei determina a competência da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para análise e concessão das reparações.

Os atingidos que se enquadram nas situações previstas na lei podem ingressar com seus requerimentos que, após analisados, são encaminhados aos conselheiros que emitirão pareceres em forma de julgamento, em sessões previamente publicadas no Diário Oficial da União. Nem sempre as decisões contemplam a expectativa do requerente. Todos os requerimentos, independentemente da influência política as pessoas atingidas, serão apreciados.

O Estado Democrático Brasileiro, por meio dessa Comissão, tem se esforçado no sentido de acelerar a resolução desses requerimentos e faz parte, nos requerimentos aprovados, o pedido oficial de desculpas pelo sofrimento causado pelos agentes do Estado ditatorial.

Essa Comissão, acusada sistematicamente de “distribuir bolsas-ditadura”, na verdade decide sobre a reparação àqueles que foram perseguidos, presos e torturados, banidos e exilados. No máximo se pode dizer que essa é uma “bolsa democracia”.

“Bolsa ditadura” recebem os torturadores e seus acólitos, até hoje impunes, recebendo, todos esses anos, salários, gratificações e promoções que se eternizam nos seus familiares.

É significativo para todos nós que participamos da construção da luta pela Anistia que, neste 30º aniversário da Lei de Anistia/79, a comemoração tenha sido promovida pelo governo brasileiro, por meio do Ministério da Justiça. Esse é mais um passo que fortalece a luta pela democracia plena. Mas só conquistaremos essa democracia quando os crimes até hoje impunes forem conhecidos pela população do país, para que não ocorram nunca mais.

* Advogada reconhecida pela luta a favor dos direitos humanos.