Fonte: Agência Carta Maior

Somos todos keynesianos? A questão foi qualificada no debate sobre o papel do estado brasileiro frente à crise. De um lado, a aposta no PAC, Territórios da Cidadania e programas de garantia do emprego via BNDES. De outro, o alerta de que a atração de investimentos externos via juros anômalos não será suficiente para o país proteger-se da crise. Transferência de renda do público para o privado – os bancos – tem marcado um keynesianismo de matiz conservadora que desafia o Brasil.

Somos todos keynesianos? Com essa questão Tânia Bacelar, professora de economia da UFPE abriu o painel O Papel do Estado no mundo pós-crise e os desafios do estado brasileiro do seminário do CDES, na tarde do dia 5. A questão foi qualificada por seus colegas de debate, que vêem na crise econômica a oportunidade e a necessidade de se superar o modelo de desenvolvimento capitalista-fordista, impondo ao Brasil e ao mundo não apenas um novo modelo econômico mas, nas palavras do pesquisador Ignacy Sachs, “um novo modelo civilizatório.”

Estaríamos, segundo o professor Sachs, no limiar de uma nova revolução tecnológica, que encerraria o “hiato” de alguns séculos de utilização de combustíveis fósseis, equiparando-se em importância às revoluções neolítica e industrial. Apenas através de “avanços nessa direção, via sistemas integrados adaptados aos biomas e voltados para a agricultura familiar” é que se poderá superar a crise econômica – e, de quebra, as crises sistêmicas que a precederam, do emprego e da segurança alimentar. Para o professor Sachs, os países tropicais levariam uma vantagem natural nesse novo modelo, devido à maior incidência de luz solar.

O presidente do IPEA, Márcio Pochman, também falou da necessidade de se adotar um novo modelo econômico, adaptado às novas realidades tecnológicas e ambientais. Segundo ele, nesse novo modelo, o cidadão começaria a trabalhar aos vinte e cinco anos (uma realidade já conhecida entre os filhos dos ricos no Brasil), permaneceria no local de trabalho por 16 horas por semana, e viveria até os 100 anos. Esses números, segundo ele, parecem radicais, mesmo utópicos, mas apenas do mesmo modo como os atuais – de oito horas por dia de trabalho, começar a trabalhar aos 18, e viver até os 75 anos – pareceriam utópicos numa reunião realizada em 1850, quando a tecnologia já permitia a situação atual, mas a sociedade ainda se pautava pelo paradigma agrário, de trabalho começando na infância, se extendendo ao longo do dia, e expectativa de vida de 35 anos. Porém, para que sejam alcançados, esses índices demandarão o aumento dos recursos estatais, que de 5% do PIB na era agrária passaram para 35 a 55% do PIB na era industrial e, agora, deveriam passar para pelo menos 2/3 do PIB – uma decisão política radical, que talvez a própria crise torne possível.

Voltando à descrição da crise econômica, Sachs notou que, após a crise de 29 o intervencionismo estatal suscitou três respostas, todas calcadas no planejamento estatal: o keynesianismo, o socialismo real, e o fascismo; com a derrota deste último, os dois primeiros disputaram uma corrida econômica no pós-guerra, que ficou conhecida depois, nos países centrais, como a “era de ouro” (nos EUA) ou os “trinta [anos] gloriosos” (França). O liberalismo somente voltou à cena com o declínio e eventual queda dos regimes do socialismo real – e se impôs, com sua ideologia da supremacia do livre mercado a tal ponto que, como notou o professor James Galbraith, um período de supremacia liberal na qual o sentimento de abdicação de controle do estado sobre o sistema capitalista chegou a tal ponto que um membro da SEC (a CVM americana) se fez filmar destruindo com uma motosserra o cartapácio de leis e regulamentos que ele mesmo deveria aplicar.

Sachs e Galbraith notaram, ainda, que assim como no começo dos anos 30 o enfrentamento da crise de 29 pelos governantes inicialmente tinha a meta de “regressar à prosperidade dos anos 20,” hoje os liberais, tornados keynesianos, se perguntam quanto tempo até voltarmos ao crescimento do começo do século. Mas Roosevelt, ao pôr em marcha o New Deal, não pretendia uma volta aos anos 20, mas uma garantia de segurança social, e foi apenas deste modo que a crise pôde ser efetivamente enfrentada e um novo modelo criado. Hoje, mencionou Galbraith, os governos jogam dinheiro sobre os bancos, como se o problema fosse de uma escassez de crédito, e não de uma escassez de confiança nos bancos e no próprio sistema, plenamente justificada depois que esses mesmos bancos “justificaram, celebraram e recompensaram” os instrumentos de mercado arriscados e/ou criminosos empregados pelo sistema financeiro.

Menos radical que Pochman e Sachs, Galbraith não se arriscou a indicar ou prever um novo modelo após a superação da crise, limitando-se a frisar o papel da segurança social no enfrentamento das dificuldades econômicas, e a necessidade da cooperação internacional para resolver uma crise que não se prende a nenhum país em particular.

A nota de pessimismo do painel foi dada pelo analista Jan Kregel, que alertou para o que chama de vício brasileiro: “Em quase qualquer crise internacional, a resposta inicial brasileira é de que o Brasil é muito forte, de que não poderia ser afetado. O Brasil será afetado, e mais do que geralmente se reconhece.” Segundo Jan Kregel, as respostas à crise tomadas até agora pelo Estado brasileiro vão no sentido de tentar preservar a situação anômala dos altos juros e atração de investimento externo, o que é insustentável no médio prazo e não será o suficiente para se proteger da crise global.

Kregel afirmou que o país tem, de fato, uma resposta eficaz para a crise em seus programas de governo, que está nos programas de médio prazo – o PAC, os territórios da cidadania, o PDE, o estímulo às empresas de pequeno e médio porte – mas estas respostas têm sido sacrificadas, ou pelo menos competido com a política de curto prazo de estabilidade macroeconômica à custa de altos juros. Alguns dos fatores apontados como forças positivas do Brasil frente à crise, na verdade, são a consequência inesperada dessa política danosa – por exemplo, os bancos brasileiros nunca precisaram investir em instrumentos exóticos como os derivativos de hipotecas americanos, simplesmente porque o rendimento fornecido pelo estado, a transferência de renda do público aos bancos, era mais lucrativa ainda. No mesmo sentido, Pochman demonstrou que a transferência de renda ao setor financeiro no período 1998-2003 foi superior à totalidade do PIB, muito acima das transferências sendo feitas hoje nos países desenvolvidos.

Encerrando o painel, o diretor do BNDES Luciano Coutinho traçou uma visão mais otimista, segundo a qual o Brasil, através do Estado cujo papel de indutor e planejador do crescimento foi reconstruído desde 2003, está se não imune pelo menos mais bem aparelhado para enfrentar a crise do que a maioria dos países. Comparou o PAC ao pacote de estímulo do Congresso americano, que segundo ele “de 800bn, quase um trilhão, menos de 200bn poderão ser gastos este ano, porque não há planejamento, experiência, licenças locais, nada,” enquanto no Brasil o programa de incentivo econômico já vinha se estruturando desde antes da crise. A única alteração mencionada aos planos pré-crise do BNDES, fora o simples aumento do capital e empréstimos do banco, foi o interesse demonstrado por programas de garantia de emprego, mencionados por Sachs e Kregel, no qual o estado ofereceria a garantia de um emprego por salário mínimo em obras de infraestrutura e em obras locais, o que também implicaria na manutenção da qualificação da mão de obra durante a crise.

Por Tiago Thuin