Fonte: Escrito por Fundação Lauro Campos

Dois importantes episódios marcaram de forma auspiciosa a vida da esquerda mundial neste fim de janeiro, começo de fevereiro de 2009. Em Belém do Pará, uma das mais importantes edições do Fórum Social Mundial (FSM). E, logo a seguir, em Paris, o congresso que encerrou a existência da Liga Comunista Revolucionária, passo inaugural do Novo Partido Anticapitalista (NPA), na França.

Esses dois eventos não são importantes isoladamente. Têm que ser vistos como fatos integrados, numa perspectiva de construção de alternativas para um mundo que se redesenha a partir dessa crise sistêmica do capitalismo neoliberal, ainda indefinida em sua profundidade e extensão.

O FSM é a expressão maior do congraçamento internacional dos movimentos políticos e sociais que, fora da vida partidária, fora da luta institucional e, principalmente, se auto-anunciando fora das batalhas eleitorais, lutam por um “outro mundo possível”. Um mundo a ser conquistado a partir de mobilizações e manifestações reivindicativas de cunho pontual.

Forçoso é reconhecer que, nesta perspectiva, suas lideranças mais tradicionais operam até com intenso preconceito despolitizante. Consideram os partidos políticos como estruturas inevitavelmente destinadas ao controle de burocracias imobilizantes, quando não corruptas e corruptoras, e jogam todo o esforço no sentido de impedir que o Fórum resulte em resoluções com propostas concretas para a geração desse “outro mundo possível”.

Quando nos limitamos ao cenário de países capitalistas desenvolvidos, não deixam de ter razão. Se é verdade que Ronald Reagan e Margareth Tatcher selaram a aliança transoceânica para a implantação do credo do “mercado livre” e do “Estado mínimo”, quem tornou o sonho realidade foram os partidos socialistas da Europa meridional – na Espanha, de Felipe Gonzales; na França, de Mitterrand, e na Itália, de Betino Craxi, principalmente.

Se mudamos a câmera para a América Latina, a decepção não poderia ser maior, quando focalizada no Brasil. A guinada ideológica de Luiz Inácio Lula da Silva e seu Partido dos Trabalhadores, após a chegada ao Palácio do Planalto, foi aporte importante ao manancial dos que vivem anunciando ser norma geral: todo partido político, independentemente de sua origem ideológica, corrompe-se com o poder. A substituição do socialismo petista pelo lulismo pragmático pode ter fascinado os extremos da pirâmide social – o grande capital, favorecido por uma perversa política macroeconômica voltada para o atendimento de rentistas e “agroindustriais”, e os marginalizados da não-inclusão, atendidos pela sobra residual da grande especulação financeira. Mas produziu um tsunami de despolitização da política, de ceticismo na ação militante, de desmobilização da sociedade civil organizada, que nunca parou de enfrentar esse programa macroeconômico de Lula quando posto em prática pelo mandarinato de FHC.

Mas alguém pode afirmar ser menos conspurcado o ambiente de convivência das chamadas entidades não-governamentais em que grande parte de tais movimentos políticos operam suas sustentações financeiras?

A punição às falácias do lulismo ficou por conta do Fórum de Belém. Ao promoverem o que terá sido o mais importante dos debates sobre alternativas para um novo mundo, as entidades realmente combativas dessa Feira heterogênea compuseram a mesa com os que, levados à Presidência de seus países, não traíram as esperanças dos que os elegeram. Pelo contrário; indo no rumo inverso do senso comum de busca da “governabilidade” que, no Brasil, representara composição com os partidos necessários à montagem de uma maioria fisiológica no Congresso, independentemente de suas visões programáticas e ideológicas, ou de um compromisso mínimo com o respeito à res pública, ousaram governar de acordo com o que representavam – tanto pelos setores sociais onde haviam obtido suas votações vitoriosas, quanto pela simbologia transformadora de suas vitórias eleitorais.

Evo Morales, Rafael Correa, Hugo Chavez e Fernando Lugo foram os atores dessa aula magna. Os governos da Bolívia, Equador, Venezuela e Paraguai eram os convidados de honra para o baile onde o governo brasileiro era barrado.

O que há de importante nesse fato, que inclusive nos conduz à avaliação do lançamento do Novo Partido Anticapitalista, na França?

O importante é que, a despeito de todas os preconceitos negativos que possam existir do chamado movimentismo em relação aos partidos políticos, estavam ali quatro presidentes eleitos em processos eleitorais institucionais, sobre os quais as forças do capital sempre exerceram hegemonia absoluta. Hegemonia que exerciam tanto por meios legais – principalmente, o controle absoluto sobre os meios de comunicação privados –, quanto pelos ilegais – compra de votos e distorção dos resultados reais.

É aqui que entra o NPA , cujo congresso foi adiado por uma semana para que seus líderes pudessem comparecer ao Fórum.

Sob que bandeiras nasce o partido que substitui o comunismo revolucionário pelo anticapitalismo na sua legenda? Negando as que portava quando LCR? Nem pensar, A partir das intervenções de seus principais porta-vozes – Olivier Bensancenot, em destaque – nenhuma alteração nos princípios que norteavam a Liga Comunista Revolucionária foi anunciada. O que se tornou público do I Congresso foi a reafirmação da concepção de partido revolucionário, voltado para a desconstrução do capitalismo predador, e de sua substituição por um regime socialista libertário. Nenhuma hesitação quanto à necessidade de manter viva a mobilização dos movimentos sociais; do mundo do trabalho – na expressão mais explícita da luta de classes – aos libertários em áreas-alvo das mais distintas discriminações.

Mas se não foi para alterar a visão programática e doutrinária, para que mudar a legenda?

A resposta parece evidente. Sem aceitar alianças com quem proponha uma coligação contra a direita, compondo-se com o Partido Socialista – naquela visão de salvar o mal menor –, o Novo Partido Anticapitalista aposta nos altos índices de Olivier Besanconet para participar, em força, do próximo pleito presidencial. Isto mesmo. O que os “movimentistas” qualificam como eleitoralismo, na verdade começa a ser visto – e aí não é de pouca monta o que ocorre na América Latina, a partir dos presidentes que não se renderam nem se venderam ao grande capital – como caminho possível de fazer avançar um processo de transformações anticapitalistas, de cunho revolucionário.

Ou seja, numa sociedade fragmentada, altamente influenciada pela opinião publicada de cunho conservador, a campanha presidencial pode se apresentar como caminho alternativo realmente decisivo, do ponto de vista de câmbio de hegemonia, do que mobilizações conjunturais. Porque a campanha eleitoral é um espaço privilegiado da universalização da luta política, condição dificilmente encontrada na mobilização conjuntural, no mais das vezes pontual, dos movimentos. Para além da luta, localizada, por justos salários, ou por melhores condições de trabalho, ou por mais verbas para o ensino público, ou pela legalização do aborto, ou pelo fim da discriminação racial na vida quotidiana, é a campanha presidencial quem abre o espaço para a discussão sobre modelo de sociedade. Espaço, enfim, para uma visão universalizada da luta política e social. Em que todos os itens conjunturais são discutidos à luz da transformação qualitativa da estrutura social no seu conjunto. Da substituição do capitalismo por um modelo superior. Um modelo socialista libertário.

Que isto nos sirva de lição.

Tendo em vista a campanha presidencial já se avizinhando, que as agendas dos movimentos – independentemente de sua real expressão representativa – não se pautem pela exclusão preliminar da representação partidária. O PSOL, o PSTU e o PCB não necessitam de mais essa barreira censora em sua dura e difícil luta contra as iniqüidades que assolam nossa realidade político-social.

Milton Temer é jornalista e presidente da Fundação Lauro Campos.