Fonte: Jornal o Povo

A crise financeira norte-americana passa longe do Conjunto Palmeiras, na periferia de Fortaleza. Por lá, a comunidade parece mais preocupada em dar continuidade a um modelo exemplar de economia solidária, que tem como sede o Banco Palmas. Pensando coletivamente, a economia do local não pára. É João que compra de Maria que vende para Pedro, que pediu empréstimo ao Palmas e tem conseguido levar uma vida mais sossegada, honrando a importância do crédito. Melhor do que isso é o acesso que tanto João, quanto Maria e Pedro podem ter aos negócios desenvolvidos no banco do bairro, em uma espécie de controle social, onde o próprio consumo é pensado – e trabalhado – de uma forma diferenciada.

O POVO foi ao Conjunto Palmeiras ouvir o coordenador do Banco Palmas, Joaquim de Melo, que pensa economia de uma forma singular, distante dos números macroeconômicos do turbulento sistema financeiro mundial. Melo criticou a forma como os grandes bancos são administrados nos Estados Unidos e chama a atenção para a necessidade de uma punição aos responsáveis pelos desencadear da crise. O coordenador alerta também para a necessidade de um consumo consciente e dispara: “Os bancos comunitários se fortalecem com essa crise, na afirmação de que estamos no caminho certo”.

O Povo – Como é ver tudo o que está acontecendo com o mercado financeiro mundial pensando uma economia de uma forma diferenciada, como é o seu caso?

Joaquim de Melo – A base dessa crise tem muitas explicações que podem ser dadas. A explicação que para mim mais se aproxima da realidade é que a crise é baseada em um consumo desenfreado. O povo americano tem, de forma muito irresponsável, um consumismo exagerado. E aí já tem o rebate do nosso trabalho no Banco Palmas, que é incentivar o consumo consciente de produtos locais, ecológicos. Já os americanos foram incentivados a esse consumo desenfreado. Então, cada americano deve o que tem e o que não tem. Compram no cartão de crédito, no cheque, fazem hipotecas, duplicatas, o diabo que vem pela frente. E esse consumo desenfreado levou a um endividamento gigantesco da população que passou a não poder mais pagar suas dívidas e os bancos foram quebrando de forma irresponsável.

O Povo – E como o senhor vê o esfacelamento de alguns bancos, que quebraram, pediram concordata…

Melo – Uma coisa que me incomoda muito é a irresponsabilidade dos bancos. É que grandes bancos, controlados por seus bancos centrais, que até então eram sinônimos de credibilidade, sustentabilidade, solidez, foram irresponsáveis. Há que se questionar muito a seriedade desses bancos, a maneira como conseguiam crédito e a forma como tratam o dinheiro público. Daí a crise envolveu a credibilidade, o que é muito sério. As pessoas deixaram de confiar em seu sistema financeiro. Aí é onde há um afastamento violento do nosso trabalho no Palmas. A base do nosso banco é a credibilidade, organizado por pessoas da comunidade. E o Palmas tem credibilidade porque tem controle social, que é outra grande diferença entre nós e os bancos de lá, que agiram a seu bel-prazer, como queriam, não tinham controle do Estado, que nesse caso é bem precário, nem nem o controle da sociedade.

O Povo- E como se conquista esse controle social?

Melo – O controle social a gente conquista, mas também promove. Não é só uma conquista, não basta só as pessoas quererem ter mais controle. Os bancos precisam organizar os instrumentos de controle social. Aqui no Palmas, por exemplo, temos um fórum econômico todo mês para mostrar às pessoas o que saiu, o que não saiu, quem pagou, quem deixou de pagar, qual a taxa de juros cobrada, qual a taxa de administração…então a população controla aí, opina aí. Possivelmente a comunidade também se encarrega de corrigir certas anomalias. Temos também um jornal comunitário, O Banco Palmas na Rede, que se publica anualmente tudo que entrou e saiu do banco. Dessa forma organizamos instrumentos de controle social. Os bancos em geral não têm isso. Quem tem dinheiro no banco sabe onde esse dinheiro foi investido? Quem está devendo a esse banco? O que esse banco fez com o seu dinheiro? Os bancos, além de não terem controle social, não têm transparência. Isso sim é um problema gravíssimo.

O Povo – E como essas informações poderiam, no caso dos grandes bancos, chegar com eficiência, com uma linguagem simples, a todos os correntistas?

Melo – Tem que fazer a informação chegar. E o balancete precisa ser mais transparente. Qual a prioridade dos bancos? A quem emprestou? Os grandes bancos captam recursos no lado pobre do Brasil, que é o Norte e Nordeste, e investem na avenida Paulista que é mais lucrativo e teoricamente seguro para eles. Mas quem decide isso? Ele investe que dinheiro? É o dinheiro público que está lá. Quais chances eu tenho, já que prefiro que esses bancos invistam no Nordeste, no semi-árido? E o que o banco fez com meu dinheiro? Não sei. Então não são só balancetes, mas as estratégias dos bancos, a metodologia que precisa mudar. É informar e dar condições da população também decidir.

O Povo- Como o banco Palmas monitora o crédito? Quem merece crédito?

Melo – Aqui no Banco Palmas temos a filosofia que diz que ‘se a gente dá crédito a uma pessoa e essa pessoa falhar, não puder pagar, metade da culpa é dela e a outra metade do banco’. O banco tem que ter tanto juízo quanto essa pessoa que quer crédito. Tem que orientar essa pessoa, ver se tem condições de pagar. Então, a responsabilidade é também do banco que empresta. Isso fazemos através de estudos de produção e de consumo para que a pessoa saiba exatamente o que pode pagar. A gente estuda a renda dela, analisa o crédito, acompanha o dia-a-dia, vai na casa. Quando atrasa dois dias, a pessoa já recebe uma visita do analista de crédito para ver o que está acontecendo, se for o caso renegocia a dívida. É o que chamamos de crédito orientado. Tem toda uma orientação e acompanhamento de forma responsável. Não é só emprestar o dinheiro. Para outros bancos, o importante é o cliente pagar de qualquer jeito. Se pagou, não importa se foi a falência, se ficou pior de vida… Mas para um banco comunitário, de desenvolvimento local, não é emprestar dinheiro para ganhar dinheiro. É pensar no desenvolmento do bairro, local, territorial. Nesse sentido, é impossível uma crise aqui no Palmas por conta de empréstimo irresponsável. Você pode aqui e ali errar na avaliação, mas não em uma proporção que comprometa o sistema do banco. Não é o caso de dezenas, milhares de créditos mal feitos. Se é que no caso dos EUA esses empréstimos foram mesmo mal feitos, ou houve uma má intenção nisso aí. Como não tem controle social, como o banqueiro não foi responsável, nem o governo, aí a crise estourou. Pior do que dar um crédito mal feito é estimular as pessoas a fazerem uma dívida que não podem pagar. Isso é criminoso.

O Povo – E que lição um banco comunitário pode tirar da crise?

Melo – Os bancos comunitários, populares, se fortalecem com essa crise, na afirmação de que estamos no caminho certo.

O Povo – O Banco do Brasil empresta ao Palmas. E tudo se mantém como antes ou algo se altera com a crise?

Melo – Não, trabalhamos com recursos dos Programa Nacional do Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO). O Governo reduziu o empréstimo compulsório, mas não mexeu no microcrédito. Até porque, de certa forma, essa crise ainda não atingiu o Brasil. Outra coisa importante em meio a essa crise é a irresponsabilidade das empresas nas Bolsas de Valores. As grandes corporações mundiais retiraram dinheiro das Bolsas para pressionar os governos para que colocassem o dinheiro do contribuinte para salvar bancos.

O Povo – Você consegue enxergar outra maneira diferente para contornar a crise do que injetar dinheiro nos mercados, como os bancos centrais mundo afora estão fazendo?

Melo – Nós jamais, por uma questão ética, faríamos como esses bancos fizeram. Mas partindo de uma situação hipotética do Banco Palmas quebrar por algum motivo, o banco está amparado pelo controle social. A população iria se movimentar para socorrer o banco. Se fosse um caso de devedores, a própria população iria ajudar o banco a cobrar esses devedores. Esse é o pacto social que nós temos. Não tem jeito de um banco quebrar, já que ele recebe numa ponta e empresta na outra. O lucro fica no meio e é aí que o banco ganha dinheiro. O banco só quebra por dois motivos: má administração ou roubo, na linguagem popular. No caso dos EUA, a população foi que se lascou, na verdade. Nem digo que o governo não deve ajudar, não dá também para ficar assistindo de camarote, mas precisa haver uma punição. E o patrimônio dos banqueiros serão confiscados? Vai ter gente punida, presa, processada? Temos que ver o que acontece.

O Povo – E como você vê a intervenção dos governos nos bancos, como se fosse uma estatização?

Melo – Quando falam que vão estatizar os bancos, não tenho nada contra a essa estatização. Os mercados provaram que não se regulam sozinhos, e só se regulam a favor deles próprios. O que houve nessa crise é que os bancos quebraram, os empresários chantagearam os governos parando o mundo por mais de uma semana, o governo cedeu e a população pagou o pato. Esse é o cenário. Se o Palmas tivesse em crise, temos os moradores para proteger, temos os empreendimentos que criamos, as pequenas empresas, os comerciantes. Eles iriam fazer um pacto para resolver e não só cobrar do Governo.

O Povo – E o papel do povo norte-americano? Eles até protestaram contra a ajuda aos bancos quebrados, mas não teve muito efeito…

Melo – A diferença aí está na propriedade do coletivo. O dinheiro do banco é da população também. A população não se sentiu responsável pelo que aconteceu. A palavra mágica é compromisso, solidariedade. Existe um tripé que é população, empresa e bancos. Quando estourou a crise, ao contrário do que acontece na economia solidária, cada um quis garantir o seu. E a população foi sábia nesse sentido, não quis se responsabilizar por um treco que não era dela. Ela não opinou antes da crise. Na economia solidária é diferente, o que se vê é a participação das pessoas.

O Povo – O senhor acredita em uma espécie de redesenho do sistema financeiro?

Melo – Eu não percebo nessa crise os governos mais atuantes, mais fortes, propondo fazer uma regulação mais forte. Vejo, na verdade, governos acuados tentando salvar o sistema financeiro, pressionado pelas grandes corporações. Eu gostaria de ver o cenário de uma maior regulação do sistema financeiro, controle do governo sobre juros, lucro dos bancos, distribuir mais a riqueza. Agora não vejo o governo nessa proatividade. Espero muito que tenha uma nova regulação, mas não vejo um horizonte favorável nesse sentido. Tenho a impressão que a crise vai aos poucos se desfazendo e os bancos e grandes corporações se acomodando, enquanto os governos vão continuar passivos nessa história. A diferença do Brasil é que temos um sistema financeiro mais organizado, mas o controle político e econômico do Governo brasileiro e do americano são os mesmos. A crise alertou várias coisas, trouxe os governos para a berlinda, mas vejo o Governo muito mais como um refém da crise do que como protagonista de um novo controle. Não sou advogado do pessimismo, sou otimista, mas não vi ninguém falar em punir responsáveis.

O Povo – E as atitudes do Governo brasileiro diante da crise, você tem achado eficiente?

Melo – Acho que o Governo brasileiro jogou bem diante do cenário, no que diz respeito à proteção da economia caminhou bem e fez as coisas que deveriam ter sido feitas. Não sou economista, não entendo tanto de macroeconomia, mas acho que o Governo tomou as medidas necessárias como injetar dólar no mercado, tentar controlar as Bolsas… Mas acho que o Governo brasileiro tem que avançar não só no controle dos bancos, mas na democratização do sistema financeiro.