Fonte: Portal Ibase (www.ibase.br)

A última década do século passado foi caracterizada por duas grandes tendências no mercado financeiro americano. Por um lado, a inflação doméstica era muito baixa, resultado das duras políticas monetárias adotadas nos anos 1980, que causaram uma séria recessão na economia americana no começo da década, mas que quebraram o ritmo de crescimento de preços, que se manteve moderado até o presente.

Por causa da inflação baixa, o banco central americano, o Federal Reserve, manteve taxas de juros básicas também baixas durante todos os anos 1990, de modo que os ganhos nas aplicações tradicionais dos bancos e financeiras daquele país, proporcionais à taxa de juros fixada pelo FED, mantiveram-se, geralmente, baixos. A outra tendência dominante foi a da intensa competição entre bancos e outras instituições financeiras em um quadro de desregulação financeira. A liberalização financeira iniciada nos anos 1980, no contexto da revolução conservadora liderada por Ronald Reagan e Margareth Thatcher, aumentou a liberdade das instituições financeiras de escolher onde e como operar, aí incluídos mercados que eram tradicionalmente reservados aos grandes bancos comerciais.

Desse modo, na década de 1990, o sistema financeiro foi marcado, por um lado, pela existência de fortes pressões competitivas, com financeiras invadindo o espaço de bancos e vice-versa, e, por outro, pelos ganhos relativamente baixos dos mercados tradicionais de empréstimos a firmas, consumidores e governos. Some-se a isso a chamada globalização financeira, o processo de alargamento da área de atuação das instituições financeiras para além das fronteiras nacionais, aumentando a competição nos mercados domésticos, especialmente o maior deles, o norte-americano.

Neste contexto, bancos e financeiras passaram a buscar novos mercados que prometessem maiores lucros. Esses mercados mais promissores, contudo, são também geralmente mercados de maior risco, onde se ganha mais quando se acerta, mas a chance de perda é também maior. Assim, novos instrumentos foram criados para evitar esses riscos (ou para dar a impressão de que evitavam os riscos mais importantes) e viabilizar a exploração desses segmentos.

Um dos mercados a serem explorados foi o dos países emergentes. Emprestar dinheiro a países emergentes foi muito apreciado nos anos 1990, mas a sucessão de crises de balanço de pagamentos iniciada com o México em 1994, e que prosseguiu pela Ásia, pela Rússia, pelo Brasil etc, mostrou que esses mercados poderiam se deteriorar rapidamente. Além disso, mercados emergentes não são grandes o suficiente para sustentar a lucratividade de um enorme sistema financeiro como o norte-americano. Países emergentes não seriam desprezados, é claro, mas era necessário encontrar outros mercados.

Financiamento imobiliário

Um mercado muito mais promissor era o mercado de financiamento imobiliário dos próprios Estados Unidos. O estoque de hipotecas nos Estados Unidos ronda a casa dos US$ 10 trilhões, metade dos quais conta com o suporte das empresas paraestatais conhecidas como Fannie Mae e Freddy Mac. Esse mercado, porém, é um mercado essencialmente maduro, de crescimento relativamente lento, especialmente depois que a população americana começou a envelhecer. Para instituições financeiras em busca de novas fronteiras, era preciso descobrir modos de ampliá-lo mais intensamente que o simples crescimento vegetativo da população.

O modo encontrado foi a abertura do mercado dos tomadores chamados de subprime. Contratos de financiamento de compra de residências, chamados de hipotecas residenciais, são contratos de longa duração, em que o próprio imóvel é dado em garantia do empréstimo. O comprador não se torna proprietário do imóvel até que o pagamento seja completado. Se o comprador der um calote, o financiador simplesmente retoma o imóvel, podendo então revendê-lo para recuperar seu prejuízo.

O banco financiador da hipoteca normalmente não deseja retomar o imóvel. Quando isso acontece, não apenas o banco perde a receita de juros sobre o empréstimo, como ainda tem que cobrir as despesas de conservação do imóvel, de revenda para terceiros etc. No entanto, quando o comprador pára de pagar o empréstimo, a retomada do imóvel é uma forma de reduzir os prejuízos.

Para reduzir as chances de ter de retomar o imóvel, o banco que empresta a hipoteca, tradicionalmente, fazia uma análise detalhada da ficha de crédito do candidato a financiamento, examinando renda, crédito na praça, perspectivas profissionais etc, de modo a reduzir a chance de fazer um empréstimo a alguém que não pudesse pagar o dinheiro tomado. Os tomadores que não preenchessem essas condições não receberiam empréstimos.

O termo sub-prime, que se tornou tão conhecido em todo o mundo, identifica precisamente os indivíduos que não teriam renda, garantias ou história de crédito que justificassem a concessão do empréstimo. Em outras palavras, essas eram as pessoas que ficavam de fora do mercado de financiamento de imóveis, por falta de qualificações suficientes para convencer as instituições financeiras de que eram um risco aceitável.

Mesmo em uma economia desenvolvida como a americana, essas pessoas formam um enorme contingente da população e, portanto, representavam um enorme mercado potencial para financiamentos imobiliários. Além disso, não apenas representavam uma grande reserva de possíveis tomadores de empréstimos, como deveriam ser muito lucrativos, já que, sendo mais arriscados, teriam de pagar taxas maiores que as do mercado “normal”, ou prime, para conseguir um empréstimo.

Mas havia uma razão pela qual essa população era segregada: sem renda, sem emprego fixo, sem ativos para dar como garantia, sem historia de crédito para provar confiabilidade, como poderiam ser integrados no mercado?

Isso foi conseguido por dois caminhos. Por um lado, passou-se a usar, cada vez, mais modelos estatísticos na análise de crédito, em vez do juízo mais subjetivo do analista bancário. Esses modelos são alimentados com informações quantitativas (séries temporais, como são chamadas) e permitem calcular a probabilidade de sucesso de um empréstimo, se tudo continuar como no presente. A cláusula é importante porque se o mundo mudar, os cálculos baseados no passado pouco servirão para projetar o futuro.

A economia americana, do fim dos anos 1980 até praticamente 2006, passou por um período de sustentada prosperidade. Apenas duas recessões leves e rápidas interromperam o crescimento da economia nesse intervalo. Um dos resultados disso é que o emprego se manteve crescente ou estável na maior parte do tempo. Assim, pessoas sem emprego fixo, com empregos informais, que seriam no passado consideradas de alto risco, apareciam nas estatísticas com uma renda estável, sem um emprego fixo, mas com trabalho todo o tempo, e assim por diante.

Ou seja, os modelos estatísticos de análise de crédito sugeriam que, como essas pessoas conseguiram trabalho no passado, elas continuariam conseguindo no futuro, ou, em outras palavras, como a economia americana foi bem no passado, ela iria bem para sempre. Assim, o risco de perda do empréstimo foi subestimado pelos bancos e financeiras envolvidos no processo.

Disfarce das hipotecas

Ainda assim, era sabido que esse segmento tinha sido deixado de fora do mercado por alguma razão. O que os bancos e financeiras fizeram foi disfarçar as hipotecas subprime, usando-as em um processo chamado de securitização. O modo como isso é feito é relativamente complicado, mas o conceito é simples.

Toma-se um certo número de contratos de hipotecas, que prometem pagar uma determinada taxa de juros, para usar como base ou lastro de um título financeiro (cuja remuneração é baseada nos juros pagos pelo tomador da hipoteca). Esse título é, então, vendido para fundos de investimento, famílias ricas, empresas com dinheiro para aplicar, bancos etc. Uma das vantagens é que o comprador desse papel em geral não tem muita noção do risco que está comprando, porque ele não vê as hipotecas que lhe servem de lastro.

Restava, naturalmente, convencer as pessoas a tomar esses empréstimos. Muitos artifícios foram usados, até mesmo o de cobrar taxas de juros muito baixas nos primeiros anos do empréstimo, aumentando-as dramaticamente depois de algum tempo. Com isso, muitas famílias aceitaram se endividar porque parecia que daria para pagar os juros dessa dívida até que descobriam que a conta subia rapidamente depois de algum tempo. Na verdade, foi exatamente isso que iniciou a crise no fim de 2006.

Um valor astronômico de empréstimos foi feito em hipotecas subprime. Tudo ia bem até que algumas dessas hipotecas chegaram ao ponto em que os juros seriam reajustados ao mesmo tempo que a economia americana já não se mostrava tão vigorosa, ao fim de 2006. Algumas pessoas ficaram sem renda suficiente para pagar os juros sobre suas hipotecas; outras viram sua conta de juros subir muito de uma hora para outra.

O calote foi inevitável e serviu para advertir os financiadores de que o risco de crédito, isto é, o risco de calote, era talvez maior do que se esperava. Talvez tivessem sido feitos empréstimos com base numa visão otimista demais da capacidade de pagamento desses segmentos da população que compunham o subprime. A percepção de que era preciso talvez reavaliar o risco de inadimplência levaria a que financiadores repensassem sua decisão de aplicar neste setor, diminuindo a oferta de crédito.

Mas essa era apenas a primeira fase da crise. Quando os tomadores de hipotecas ficam inadimplentes e param de pagar os juros, aqueles investidores que compraram títulos baseados nessas hipotecas percebem que poderão não receber o retorno que esperavam. Quando essa percepção se espalha, aqueles outros investidores e instituições que compraram títulos parecidos começam a se perguntar se não é melhor se livrarem deles enquanto é tempo. Quando, porém, tentam vender esses papéis, percebem que não há muitos compradores, já que todos têm os mesmos temores. Com isso, os investidores concluem que têm um mico nas mãos, um papel cujo valor no mercado é muito menor que esperavam. Em termos técnicos, esses investidores descobrem que estavam expostos a um risco de liqüidez (isto é, de impossibilidade de revenda sem prejuízo de um ativo qualquer) maior do que esperavam.

Entre o pânico e a loucura

O que acontece daqui para a frente varia de caso a caso. Nesta crise, caminhou-se para o pior cenário. Os detentores dos papéis lastreados em hipotecas perceberam que não só, provavelmente, não receberiam os juros que esperavam como também sequer conseguiriam repassar esses papéis para outros sem sofrer um pesado prejuízo. A tentativa de se livrar deles, de qualquer forma, foi o suficiente para fazer com que o valor desses papéis no mercado caísse vertiginosamente. Na verdade, a desconfiança passou a atingir também outros papéis semelhantes aos subprime, contagiando outros segmentos do mercado de capitais. Na dúvida, é melhor tentar vender todos esses papéis antes que outros o façam. Os preços de todos os títulos vão desabando, um a um. Por causa disso, entramos na terceira fase da crise, que marca a travessia para uma região cada vez mais perigosa.

O que marca essa fase é a crise patrimonial. Como qualquer empresa, bancos e financeiras têm obrigações a pagar (chamados de passivos) e direitos a receber (chamados de ativos). Uma empresa saudável tem mais ativos a receber do que direitos a pagar (a diferença entre eles é o capital da empresa, e uma empresa saudável tem, portanto, um capital positivo). Quando o valor dos ativos, porém, cai por baixo do valor das obrigações, o capital se torna negativo, o que significa que a empresa é insolvente, está falida, não adianta continuar funcionando porque as receitas que ela vai receber não chegam sequer a cobrir os pagamentos que tem de fazer.

No caso dos bancos e financeiras que compraram aqueles papéis lastreados em hipotecas subprime, quando o valor destes caiu verticalmente por conta da sua desvalorização no mercado, muitos se tornaram insolventes, falidos, outros chegaram muito perto disso. Como quase todas as instituições financeiras americanas fizeram esse tipo de investimento, todas se viram expostas em algum grau. Na melhor das hipóteses, o seu capital, ainda que continuasse positivo, diminuiu bastante por causa da desvalorização de seus direitos a receber.

Neste ponto, duas situações acontecem. A primeira é que bancos e financeiros falidos, com ativos valendo menos que passivos, têm de ser fechados, sofrer intervenção ou ser vendidos a outras instituições, que, também com problemas, relutam em fazer essas aquisições se não forem pressionadas pelo governo ou favorecidas com algum adoçante, como aconteceu com o Bear Stearns, a Merrill Lynch, a AIG, a Fannie Mae e o Freddy Mac etc. A seqüência de falências, intervenções e vendas sob estresse tende a espalhar a desconfiança e o medo não só no mercado financeiro, mas entre a sociedade em geral, que passa a temer por suas economias, já que nunca se sabe qual vai ser a bola da vez até que ela caia na caçapa.

A segunda é que mesmo as instituições sobreviventes se retraem. Em parte, porque compartilham o clima de temor e desconfiança; em parte porque sua capacidade de empréstimo diminui quando seu capital se contrai. O resultado é que os bancos e financeiras passam a emprestar menos e empresas se vêem sem capital de giro para produzir, consumidores deixam de adquirir bens duráveis porque não há crédito etc. A economia real começa a esfriar, o crescimento econômico se desacelera ou se transforma em contração, o desemprego cresce, e o risco de uma recessão séria se instala.

É neste ponto os Estados Unidos estão. O Plano Paulson, que passou a duras penas pelo Congresso, avalia que a economia está no estágio da crise patrimonial causada pela desvalorização dos ativos das instituições financeiras. Assim, o que o governo americano propôs foi a compra daqueles ativos que as financeiras não conseguem vender nos mercados, de modo a estabilizar o seu valor, deter as falências e, se tudo der certo, permitir que os bancos e financeiras se capitalizem e voltem a emprestar, evitando uma recessão mais profunda da economia americana.

O comportamento do mercado financeiro americano, depois da passagem do plano, mostra que o efeito sobre a confiança da sociedade foi muito pequeno. Todos continuam tentando vender seus ativos a qualquer preço, os empréstimos continuam paralisados e a economia americana continua descendo a ladeira. Além disso, a percepção de que a crise é muito mais grave e intratável do que se imaginava está chegando ao resto do mundo, primeiro à Inglaterra, depois ao continente europeu, à Ásia e a países emergentes mais importantes, como a Rússia e o Brasil. É um momento de extrema gravidade, porque a meta mais importante de políticas e planos é deter o pânico, restaurar um módico de normalidade e confiança para começar a tomar as medidas mais duráveis de reforma e re-regulação financeira que coíbam, no futuro, a repetição dos excessos da liberalização financeira dos anos 1980.

No final do século XIX, foi publicado um livro na Inglaterra chamado Lombard Street, em que se discutiu, pela primeira vez, o que fazer no caso de crises bancárias. Seu autor, Walter Bagehot, escreveu que uma crise como essa passa por três fases: o alarme, quando o público percebe que uma ou outra instituição está fragilizada e pode quebrar; o pânico, quando se desconfia que todo ou quase todo o sistema financeiro pode estar abalado; e a loucura, quando cada um se convence que não há mais salvação e é o salve-se quem puder. Nesse esquema, os Estados Unidos, e, a partir dali, o mundo todo, podem estar no limiar entre o pânico e a loucura. Há muito tempo, não se vivia uma situação tão perigosa e de desdobramento tão incerto.

Texto de Fernando Cardim de Carvalho, Economista, integrante do Instituto de Economia da UFRJ.

Publicado em 10/10/2008.