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Imagine que você está chegando em uma comunidade ribeirinha no coração da floresta amazônica, sem acesso a telefone, energia elétrica e onde o rio é quase a única estrada trafegável. Agora imagine jovens dessas comunidades produzindo jornais impressos, programas de rádio e vídeo e conteúdos para a internet. Pois é exatamente o que faz a Rede Mocoronga de Comunicação Popular.

A rua larga de terra, cercada pelos terreiros onde fazem sombra as seringueiras e as palmeiras de tucumã, não precisa ser tão longa para fazer caber as mais de 80 casas de Suruacá, comunidade ribeirinha às margens do rio Tapajós e a três horas de barco de Santarém (Pará). Embora as primeiras construções de alvenaria pontilhem a paisagem, sobrevivem ainda as casas de chão de terra batida, teto sem forro para entrar a “fresca”, paredes de taipa que não chegam ao teto para aliviar o calor úmido da floresta. As janelas também são de palha de babaçu, catadas nos quintais e nas trilhas mata adentro, como se fazia desde a fundação da comunidade no século XIX. Lá não há telefone nem rede de energia elétrica, mas quem chega logo encontra a sala com equipamentos básicos de som, editoração e vídeo, além de computadores movidos por energia solar com acesso via satélite à internet.

É de lá que os jovens de Suruacá, com cerca de 500 habitantes, se comunicam com o mundo e com colegas de outras 33 comunidades localizadas às margens dos rios Amazonas, Tapajós e Arapiuns – nos municípios de Santarém e Belterra (Pará). Organizados a partir de sucursais, mais de 250 jovens repórteres destas comunidades são capacitados a cada ano em oficinas de educomunicação para produzir e veicular jornais impressos, programas de rádio e de vídeo e conteúdos para a internet. Trata-se da Rede Mocoronga de Comunicação Popular, uma das mais abrangentes redes de comunicação comunitária da região amazônica.

A experiência é resultado do trabalho do Projeto Saúde & Alegria (PSA), uma organização não-governamental que atua desde 1987 na região com programas de desenvolvimento comunitário nas áreas de saúde, organização comunitária, educação, cultura e comunicação. “Muito se fala da biodiversidade e dos problemas da Amazônia, mas poucas iniciativas permitem que a Amazônia seja apresentada pelos próprios moradores da região”, explica Fábio Pena, coordenador de Eduçação, Cultura e Comunicação do PSA.

As comunidades envolvidas no projeto, diz, são formadas majoritariamente por povos tradicionais, em sua maioria caboclos – descendentes de índios – que produzem para subsistência e praticam extrativismo ou agricultura itinerante. Vivem ainda da pesca artesanal, da coleta de produtos da floresta e da caça. Nas comunidades que participam do programa, os jovens com até 15 anos representam nada menos que 47% dos habitantes. “Nosso objetivo não é formar repórteres. É uma experiência de educação para que eles possam ter acesso ao mundo reafirmando suas próprias culturas”, explica.

Estrutura

Na prática, a rede é estruturada por sucursais comunitárias formadas por grupos locais de jovens repórteres, que ganham nomes e formas de gestão próprios com o apoio pedagógico dos professores da região. Em cada comunidade, estes grupos animam uma rádio local (rádio-poste) com matérias ao vivo ou pré-gravadas, mantendo uma programação conforme as demandas de cada local. A Central, situada na sede do PSA em Santarém, organiza o intercâmbio dos materiais e mantém um programa semanal na Rádio Rural de Santarém, difundindo campanhas educativas e as produções comunitárias para toda a região norte do país.

Já a TV Mocoronga produz regularmente o programa de variedades “Mexe com Tudo”, que é roteirizado, gravado, editado e exibido nas próprias comunidades. Nas seis comunidades que já dispõem de Telecentros – em 2009 serão 11 – estão sendo formados também núcleos de cineclube e produção de vídeos participativos. Toda a produção é exibida por meio de telões em mostras e circuitos intercomunitários de exibição ou em TVs parceiras, que exibem também documentários e vídeo-temas educativos produzidos e editados pelos próprios jovens.

Isso sem falar na produção impressa, já que cada sucursal produz um jornal comunitário para a distribuição local e os repórteres enviam regularmente uma cópia de cada edição para a central, que efetua reproduções e as distribui para as demais localidades da rede. “Nunca imaginava que eu aprenderia computação aqui no meio do coração da Amazônia, longe de tudo e todos. Às vezes estou exausto, mas quase nunca deixo de fazer os deveres. Tenho sempre uma força que me inspira e não me deixa parar no meio do caminho”, diz Jardson Melo, de 23 anos, membro do grupo que produz o Jornal Comunitário de Suruacá – o Japiim – e monitor do Telecentro Cultural da comunidade desde sua implantação, em 2003.

Como tantos outros jovens, Jardson também quer conhecer o mundo. Um primeiro passo foi a viagem que fez este ano até São Paulo para receber um prêmio da comunicação em nome da Rede Mocoronga. “Quando cheguei parei para pensar e falei para mim mesmo: ‘caracas, estou em São Paulo, na maior cidade do Brasil e um dos maiores pólos econômicos e industriais do mundo’”, conta. De lá ele lembra do tempo úmido e frio, das pessoas “sempre com roupas apropriadas” e da fumaça que tomava conta dos céus da cidade. Mais do que isso, garante, a viagem lhe fez lembrar também das próprias raízes. “Durante o percurso de ida observei o quanto o a Amazônia é desmatada. Da janela do avião, parecia que a maior mata tropical do mundo era feita de buracos e crateras”, critica.

“Sempre é complicado deixar um lugar e ir para outro com climas, ambiente e culturas diferentes. Quando isso acontecer estarei sempre com a minha comunidade no lado esquerdo peito. Meus pensamentos sempre me erguem para o lado positivo de continuar, eu não quero parar depois de meio caminho andado”, diz. O difícil, explica, vai ser deixar a tranqüilidade de Suruacá. “Moramos na zona rural e não temos muita preocupação com violência, exploração sexual, drogas. Temos orientações sobre esses assuntos e ninguém procura abusar. Todo mundo se conhece, quase todos são parentes, nesse caso para que ignorar o respeito ao próximo se moramos em comunidade?”, pergunta.

Inovação

Não é só de internet e comunicação popular que são feitas as inovações em Suruacá. Além de cada casa ter já instalada uma “pedra sanitária”, com piso de cimento para impermeabilizar corretamente as fossas, os baldes e as cabaças usados para buscar água às margens do rio já foram substituídos pela torneira, onde a água agora é potável e disponível em todas as residências.

O novo sistema de abastecimento de água, inaugurado no ano passado, faz de Suruacá exceção diante de um paradoxo do tamanho da Amazônia: apesar de dispor dos maiores mananciais de água doce do mundo, a região norte do país é de longe a que tem menos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, com condições de saneamento piores que as de países africanos como Somália, República Democrática do Congo, Burkina Faso e Libéria.

De acordo com informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sintetizadas pelo IBGE, apenas 5% dos domicílios no Amapá e 5,1% em Rondônia, por exemplo, são adequados do ponto de vista do saneamento. Esses índices são inferiores aos de todas as nações pesquisadas em estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo cruzamento realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). No relatório, as piores condições foram encontradas na Etiópia (6%).

No Brasil, 64,1% dos domicílios se enquadram no que o IBGE classifica de saneamento adequado – ou seja, com abastecimento de água com canalização interna proveniente de rede, esgoto por meio de rede coletora e/ou fossa séptica e lixo coletado. Por trás dessa média, há uma desigualdade que inclui desde índices inferiores a 10%, em estados no Norte, até os 91,9% em São Paulo. O desempenho do Norte (11,5%), aliás, equivale ao de países como Burkina Faso (12%), Níger (12%) e Guiné (13%). A falta emite seus sinais na saúde das crianças. Segundo levantamento realizado pela ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA) em mais de 130 comunidades ribeirinhas em que atua na região do Médio Amazonas, 15,7% das mortes são de crianças com até um ano de idade, quase o dobro da média nacional. A maioria delas morre em função da diarréia.

Implementada em conjunto com a comunidade, com parceria do PSA e recursos da Agência de Cooperação Americana (Usaid) e do Comando Militar Sul dos Estados Unidos, a tecnologia de abastecimento de água de Suruacá é inovadora na Amazônia. O mecanismo é movido à energia solar, com um dispositivo que aciona automaticamente a bomba d’água sobre um poço de 60 metros, dispensando o uso do óleo diesel que vem de longas e custosas viagens de barco. O sistema é complementar à primeira caixa-d’água da localidade, instalada há 13 anos com recursos da Fundação alemã Konrad Adenauer. Pela água encanada, cada família pagava R$ 15 mensais, embutidos aí os custos do diesel usado no gerador antigo. Com a nova tecnologia, a conta ficou ainda mais barata.

“Nossa preocupação é que as pessoas tenham acesso a uma água saudável, boa e pura, até porque a maioria dos casos de mortalidade infantil da região ainda é de doenças de veiculação hídrica como diarréia e verminose”, explica o diretor do PSA Paulo Roberto Sposito de Oliveira, conhecido na região pela alcunha de Magnólio. A implantação do sistema, como lembra, não dispensa outros hábitos simples já incorporados pela comunidade, como o uso de filtros e de hipoclorito para tratar a água de beber, fabricado no local com ajuda de células solares.

Dona Martinha, batizada Marta Colares Bentes Faria, celebra a chegada do novo sistema. Dona de 73 anos vividos em Suruacá, ela perdeu três dos dez filhos que teve vítimas de diarréia. Os gêmeos Tiago e Marivaldo morreram, aos sete anos, numa mesma tarde de chuva. No raiar do dia seguinte, foi a vez da filha Maria, de três anos, não suportar a diarréia e morrer. “Foram três filhos no tempo de um dia. Não dá pra botar medida nessa dor”, lamenta a avó de 25 netos: “Tenho para mim a esperança de que essas crianças não vão ter nunca mais nada disso com essa água maravilhosa que tem aqui”, conta.

Dona Martinha lembra também as dificuldades do inverno amazônico, entre junho e setembro, quando desce o volume do rio e formam-se praias naturais com até um quilômetro de extensão. O cenário, que alegra os turistas, fazia o tempo despendido por dia para a coleta de água chegar a mais de duas horas. As crianças, diz, também iam ao rio tomar banho com cabaças em punho, levando à casa quase a mesma água que lhes servia para lavar o corpo. “Os homens e as mulheres têm que se esforçar bastante para levar esse trabalho em frente, não fracassar. É preciso trabalhar com vontade, com esforço de querer conseguir aquilo que não se tem”, exige.