Fonte: Adital, por Ernesto Carmona *

O que mudou no Chile desde que o governo democraticamente eleito de Salvador Allende foi derrubado? Passaram-se 35 anos, 17 de ditadura militar e 18 de “transição à democracia”, conduzida por uma coalizão hegemonizada pelos partidos Socialista, Democrata Cristão e pela Democracia, seguidos por outros menores,, como o partido Radical, chamada Concertação de Partidos pela Democracia

A primeira observação é que a “transição” leva mais tempo do que a ditadura. Porém, as condições de vida do povo pioraram dramaticamente desde a época de Allende. E há pouco espaço para os protestos. Hoje existe uma democracia formal perversa que limita o acesso dos pobres à política e exclui qualquer participação à minoria comunista e a outros grupos de esquerda. Existe um sistema binomial de eleições que foi criado precisamente para que os grandes blocos, tal como ocorre com os democratas e os republicanos, nos Estados Unidos.

O fim da ditadura não foi somente o resultado da luta do povo, que deu generosamente seu sangue, instigado por aqueles que hoje governam o país, mas prevaleceu um acordo político impulsionado pelos mesmos fatores internacionais que provocaram a queda de Salvador Allende, isto é, EUA, a CIA, a USAID, o Fundo Nacional para a Democracia (NED, sua sigla em inglês) e as grandes corporações transnacionais, cujos negócios de exploração dos recursos naturais melhoraram notoriamente nesses últimos 18 anos, segundo todos os indicadores. Os setores que produzem os maiores lucros ao capital local e internacional são a mineração do cobre, que é 70% privada e a indústria de papel (celulose), que é extraído dos bosques do território indígena, entre muitos outros produtos.

Neodireita e “progressista”

A ditadura continua presente, porém, com outra aparência, no exitoso modelo de “desenvolvimento democrático” que o Chile padece e que exporta como imagem invejável para outros países. A Carta Magna da ditadura, que data de 1980, foi legitimada por sucessivas reformas constitucionais “de remendo”, concertadas pelo governo com a direita parlamentar. Cada vez que têm oportunidade, as organizações patronais da direita econômica manifestam sua satisfação pela marcha de seus negócios sob a administração concertacionista, particularmente sob o sexênio presidencial de Ricardo Lagos (2000-2006).

Nesses 18 anos de “transição à democracia”, a Concertação converteu-se em uma neodireita, com pintura socialista e social cristã, como aconteceu antes com os partidos “progressistas” na Europa e em outras latitudes, onde a social democracia imitou a democracia cristã como nova expressão partidária renovada da direita tradicional. O socialismo de hoje não é o mesmo dos tempos de Allende. O partido do presidente imolado que pretendeu realizar reformas sociais involuciona pelo mesmo caminho que antes seguiram seus colegas socialista da Espanha e da França, os laboristas do Reino Unido, o partido “trabalhista” do Brasil e tantos outros. No Chile de hoje pode-se transitar livremente; porém, por estradas privadas. Santiago tem uma rede de autopistas urbanas que cobram. As pessoas ficam tristes porque estão endividadas; apesar de que há trabalho, precário e “flexibilizado”. Os empregadores não se complicam com a segurança social de seus trabalhadores. A educação, a saúde e a previdência social foram privatizadas, convertendo-se em negócios ou “indústrias”.

Uma classe política de aparência “democrática e progressista” se incrustou na superestrutura do poder do Estado para administrar a exploração do povo chileno e de seus recursos naturais com maior “eficiência” que os militares e com poucos reclamos dos trabalhadores graças ao controle da Concertação sobre a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Essa classe política também pôs em marcha um processo de corrupção às custas dos fundos públicos sem precedentes na história política republicana do país.

Os rebeldes são jovens

Os dissidentes, centenas de milhares de esquerdistas allendistas, não têm lugar nessa democracia, porque o sistema eleitoral binominal bloqueia seu acesso ao Parlamento. Os jovens negam-se a inscrever-se voluntariamente nos registros eleitorais, ou seja, recusam-se a adquirir o direito ao voto. Uma vez inscritos, teriam a obrigação de votar com risco de severas sanções. Se o direito ao voto não é exercido no Chile, há castigo. O governo pretende legislar uma inscrição automática no momento em que cada jovem cumprir os 18 anos de idade, mantendo a obrigatoriedade do voto, no esforço desesperado por recuperar a representatividade perdida. Paradoxalmente, os que se opõem a essa medida totalitária são os próprios herdeiros políticos do pinochetismo, que agora jogam ao populismo eleitoral, no melhor estilo do Partido Popular espanhol.

Nesses dias, o Congresso discute mais leis repressivas. Por exemplo, uma que castiga com prisão e multas a quem agredir com palavras a um policial. E quem será o ministro de fé de tal agressão? Simplesmente o próprio policial. Outra lei sob aprovação criminaliza os jovens que apareçam em manifestações com o rosto coberto. Precisamente os que escondem o rosto o fazem para impedir sua identificação através da televisão, que no Chile colabora abertamente com todas as polícias. É usual que os repórteres que saem para coberturas noturnas com alguma das polícias, proporcionam os meios, por tanto, a polícia já não necessita de um departamento de propaganda próprio, com câmeras e equipamentos porque têm à sua disposição praticamente todos os grandes meios de comunicação, incluindo o canal do Estado.

Os meios e os policiais expressaram surpresa no dia 4 de setembro quando se cumpriam 38 anos da eleição de Salvador Allende nas urnas, em 1970, porque houve jovens menores de 20 anos que, em diferentes comunas pobres, realizaram atos em memória do presidente derrocado pelas três ramas das Forças Armadas e pela polícia militarizada dos Carabineros. E o fizeram à sua maneira, com barricadas, fogueiras, pedras e insultos aos Carabineros, que sempre sabem onde está acontecendo uma manifestação pública. Como já é usual, os chefes de polícia que apareceram na televisão, colocaram a culpa nos pais. E já existem propostas para penalizar e castigar os progenitores. “Não entendo como esses jovens que não conheceram Allende saiam a manifestar-se”, disse pela televisão um porta-voz dos Carabineros. E é incrível que depois de ter tido a figura de Allende guardada por mais de 30 anos em um armário do esquecimento e, sendo apenas mencionado pelos grandes meios atualmente, os jovens rendam culto à sua memória, tanto os que nasceram nos 17 anos de ditadura quanto os que nasceram nos 18 anos dessa “democracia” tutelada pelo Exército e pela Constituição de Pinochet.

Quando alguns sindicatos que não estão sob o controle da Concertação e certos setores da sociedade chilena manifestam seu descontentamento com o novo modelo político-econômico que favorece aos ricos são brutalmente reprimidos pelo governo nominalmente “socialista”, em nome do sagrado sistema legal herdado da ditadura garantida pela exploração neoliberal. Os mais afetados têm sido os sindicatos de trabalhadores sub-contratados ou terceirizados com emprego precário e “flexível”, os estudantes e a etnia mapuche, cujo território permanece ocupado militarmente durante anos, sem nada que invejar à Palestina, pois igual que Israel, o Chile se omite das recomendações dos organismos de direitos humanos das Nações Unidas. A região mapuche, com seus habitantes em extrema pobreza perpétua, é um território ocupado pelos Carabineros, sob permanente estado de sítio, enquanto suas terras são exploradas pelas indústrias madeireiras dos grupos econômicos mais ricos do Chile.

O governo da socialista Michele Bachelet elegeu o caminho da repressão com até 1.500 detenções de jovens estudantes no mês de julho de 2008. A polícia militarizada de Carabineros exerce uma brutalidade sem restrições, inclusive com detenções irregulares ordenadas por algum tribunal. O falecimento do chefe de polícia em um acidente aéreo no Panamá, enquanto fazia compras com sua família e achegados foi convertido em tragédia nacional pelo governo e os meios de comunicação, com luto oficial e um exagero propagandístico que elevou o defunto à categoria de santo.

O papel dos meios

Tudo isso acontece enquanto existe uma crescente criminalização do protesto civil, que começou reduzindo a 14 anos a responsabilidade penal dos jovens. Os estudantes que protestam nas ruas correm o risco de ser processados como autores de crimes, não de desordens públicas, como já acontece em países como El Salvador, que adotou a lei antiterrorista dos EUA, a Patriot Act. No entanto, quando um estudante de quinze anos detido e surrado com cacetete por Carabineros nas ruas de qualquer cidade, deve permanecer detido até que seus pais o resgatem na comissária. Isto é, há um duplo padrão entre os direitos dos cidadãos e a responsabilidade penal que sempre opera contra os jovens.

O debate parlamentar se realiza entre quatro paredes, quase igual que nos tempos da ditadura; somente que agora a sala é maior e há mais protagonistas da classe política desfrutando de um salário que “todos os chilenos pagam”. Tampouco existe debate público democrático nos meios de comunicação onde há acesso para todas as opiniões, nem existe lugar para os críticos e dissidentes. Os grandes meios de comunicação -cuja propriedade está superconcentrada- apóiam as medidas repressivas e demais políticas do governo que são do agrado dos grupos econômicos e dos poderes atuais. Os meios praticam um jogo duplo de apoio e de crítica apesar de que as manchetes mais populares se dedicam a temas banais. Dois empresários controlam a imprensa escrita no país, Agustín Edwards e Álvaro Saieh, através de seus diários El Mercurio e La Tercera. A televisão exibe o mesmo signo ideológico, estigmatiza os protestos sociais, cultiva a banalidade e criminaliza pejorativamente seus protagonistas através de todos os canis. O candidato presidencial Sebastián Piñera, que é a versão local de Silvio Berlusconi, tem seu próprio canal de televisão enquanto o outro transmite o Vaticano; um terceiro pertence ao multimilionário Ricardo Claro, do Opus Dei, outros dois pertencem ao magnata mexicano Ángel González e o canal do Estado é co-governado pelos interesses comuns de um diretório acordado em quotas entre a direita e a Concertação.

Deputados “eleitos” a dedo

Resulta impossível descrever a través de uma simples crônica o Chile de hoje a 35 anos da morte de Salvador Allende. Há múltiplos traços para pintar essa situação. Por exemplo, nesses dias os chilenos se inteiraram da posse de um novo deputado que jamais foi submetido ao voto popular. Trata-se do substituto socialista do falecido Juan Bustos, presidente da Câmara. A lei permitiu que o sucessor fosse designado a dedo pelo partido do defunto. O prêmio recaiu em Marcelo Schilling, que se tornou célebre como organizador de “La Oficina”, uma instância de espionagem interna criada por Patricio Aylwin (2000-2004) que Ricardo Lagos converteu em Agência Nacional de Inteligência (ANI), para vigiar aos dissidentes domésticos.

Os empresários exportadores de produtos primários como uvas, maçãs e peras levam anos queixando-se da desvalorização do dólar, que é um fenômeno mundial, não chileno. Com dinheiro proveniente das vendas de 30% do cobre que o Estado continua possuindo (Allende nacionalizou 100% desse recurso), o Banco Central destinou 8 bilhões de dólares para comprar dólares durante todo 2008, fazendo subir artificialmente o preço da divisa estrangeira no mercado interno a fim de beneficiar os exportadores. Com essa medida, desatou-se uma inflação que eleva dramaticamente o custo da vida e da energia, que é basicamente importada como o gás, da Argentina. Foi violada uma das sagradas normas da economia neoliberal, ao manipular “a mão livre do mercado”; porém, isso não importa aos diários como El Mercurio, que defendem a sangue e fogo o neoliberalismo. O ministro da Fazenda, Andrés Velasco, chegou a dizer que as últimas cifras de aumento do desemprego são boas porque indicam que existe mais gente buscando trabalho (sic).

…E levaram a meu vizinho…

Chile foi o país mais golpeado pelo retrógrado experimento neoliberal mundial que começou nos anos 70. Precisamente para esse experimento com o povo atado, encarcerado, sem capacidade de reclamar, estabeleceu-se uma ditadura militar. Hoje suas cifras macroeconômicas são boas, mostram-se como exemplares para outros países; porém, os números beneficiam exclusivamente os que já são ricos e ao capital estrangeiro. Os grandes empresários costumam dizer pela televisão que agora sim o país vai pelo “caminho correto” do crescimento. Porém, crescimento para onde? Em que direção?… Cada vez que vou comprar algo no supermercado de meu bairro, em Ñuñoa, Santiago, vejo que os guardiões privados e a polícia prenderam alguém que foi surpreendido roubando alimentos. Enquanto eu escrevia esse artigo nessa manhã de segunda, veio a polícia, um tribunal e a força policial para desalojar e jogar na rua o meu vizinho de classe média porque não havia pago seu apartamento… Como diria Bertold Brecht, quando virão por mim?