Fonte: Informações enviadas por Adriana Bezerra (adriana@cedacnet.org.br)
A actual onda massiva de investimentos na produção de energia baseada no cultivo e processamento industrial de matérias vegetais como o milho, a soja, a palma azeiteira, a cana de açúcar, etc., não resolverá nem a crise climática, nem a energética. Trará, pelo contrário, consequências sociais e ambientais desastrosas. Cria uma ameaça muito séria à produção de alimentos, feita por pequenos camponeses e o ganho da soberania alimentar da população mundial.
Durante os últimos vinte anos, as políticas neoliberais adoptadas globalmente falharam na resposta às necessidades básicas das pessoas. As promessas da FAO na Cimeira Mundial sobre Alimentação de 1996 e os Objectivos do Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas, de tirar as pessoas da pobreza, não se cumpriram. Muito mais pessoas estão a sofrer de fome.
Afirma-se que os agrocombustíveis ajudarão na mudança climática. Na realidade acontece o contrário. As novas plantações de monocultivos necessárias para produzir agrocombustíveis estão a aumentar as emissões de gazes com efeito de estufa, devido a massiva desflorestação, por fragmentação das terras comunais e pela drenagem das zonas húmidas que isso implica. Se tivermos em conta o próprio ciclo de produção, transformação e distribuição de agrocombustíveis, não se produzem menos gazes com efeito de estufa que com os combustíveis fósseis, excepto em alguns casos. Além disso, os agrocombustíveis nunca poderão substituir os combustíveis fósseis. De acordo com as ultimas estimativas, apenas cobrirão o futuro aumento do consumo de aqui a 2020.
Simplesmente não há suficiente terra no mundo para gerar todo o combustível necessário para uma sociedade industrial cujas necessidades para transportar pessoas e mercadorias estão a aumentar continuamente. A promessa dos agrocombustíveis cria a ilusão de que podemos continuar a consumir energia e, inclusivamente, a crescer num ritmo maior. A única resposta à ameaça da mudança climática é reduzir o uso da energia em todo o mundo e redirigir o mercado internacional até aos mercados locais.
Enquanto isso, os impactos sociais e ecológicos dos agrocombustíveis serão devastadores. O monocultivo e a agricultura industrial, seja para agrocombustíveis ou para qualquer outra produção, estão a destruir a terra, os bosques, a água e a biodiversidade. Expulsam da sua terra famílias camponesas, homens e mulheres. Estima-se que cinco milhões de camponeses foram expulsos da sua terra para dar espaço a monocultivos na Indonésia; cinco milhões no Brasil, quatro na Colômbia…
A agricultura industrial gera muito menos emprego que a agricultura campesina sustentável; é uma agricultura sem agricultores. A actual expansão da produção de agrocombustíveis contribui na concentração massiva de capital pelos proprietários de terra, grandes empresas e transnacionais, provocando uma verdadeira contra-reforma agrária em todo o mundo. Além disso, contribui no aumento da especulação nos produtos alimentícios e no preço da terra. No lugar de dedicar a terra e a água à produção de alimentos, estes recursos estão a ser dedicados na produção de energia em forma de gasóleo ou etanol. Hoje, os pequenos camponeses, os indígenas, homens e mulheres, produzem a imensa maioria da comida consumida em todo o mundo. Se não nos prevenirmos agora, os agrocombustíveis ocuparão nossas terras e a comida será mais escassa e cara.
Quem comeria agrocombustíveis?
Uma nova aliança de alguns governos com as grandes empresas químicas, de automobilismo, de petróleo e da agro indústria está a promover os agrocombustíveis com o único objectivo a ganhar dinheiro. Estas grandes empresas transnacionais manipulam a preocupação social pela mudança climática e a crise energética e lançam-se à produção de agrocombustíveis de maneira que modo a manter e fortalecer seu modelo produtivo agro industrial. Fazem-no com conhecimento de causa e cientes que tal modelo é, em si, uma das principais causas da mudança climática e em particular pelo seu intenso consumo de energia.
As transnacionais fortalecem e ampliam seu controle tecnológico e de mercados sobre o sector agrário, substituindo nossa produção campesina de alimentos baseados no emprego de sementes campesinas, a convivência com a biodiversidade e a energia proporcionada pela força humana ou animal, elementos, todos eles, que usam muito menos energia por unidade de alimento produzido e, sobretudo, menos combustíveis fósseis.
As companhias do agro negócio sabem que os agrocombustíveis produzidos a grande escala não são economicamente viáveis. A carreira aos agrocombustíveis é possível só pelos tremendos subsídios directos e indirectos dos governos que a promovem e pelo capital especulativo que já está a causar enormes aumentos nos preços dos alimentos.
As cifras causam pavor uma vez que falam de milhões de hectares e milhares de dólares: o governo da Índia está a contemplar a plantação de 14 milhões de hectares com jatrofa; o Banco Interamericano de Desenvolvimento diz que Brasil tem 120 milhões de hectares disponíveis ao cultivo de agrocombustíveis; e um lobby empresarial projecta que há 397 milhões de hectares disponíveis em 15 países africanos. Estamos a falar de expropriações a uma escala sem precedentes.
Enquanto as corporações transnacionais aumentam seus benefícios económicos, a maior parte da população mundial não tem suficiente dinheiro para comprar comida. Estima-se que os agrocombustíveis são os responsáveis de 30% da actual crise dos preços dos alimentos.
Quando grandes companhias transnacionais não são capazes de encontrar terras agrícolas para a produção de agrocombustíveis, impõem a desfloração das zonas de bosques que ainda existem no mundo e que são necessárias para a manutenção da vida na terra.
Milhares de famílias camponesas não têm alternativas senão juntar-se ao cultivo dos agrocombustíveis, já que precisam destas entradas de dinheiro para subsistir até a campanha seguinte. As políticas agrícolas nacionais e internacionais impostas pelas instituições financeiras internacionais e pelas grandes empresas transnacionais exacerbaram a dependência dos países em via de desenvolvimento, levando-os a crise alimentar, a extrema pobreza e a fome em todo o mundo. Portanto, estes pequenos camponeses não são culpados de tomar a decisão equivocada, pelo contrário, são vítimas do actual sistema que lhes impõe.
Os pequenos camponeses e os trabalhadores agrários, trabalhando em condições extremamente duras com efeitos prejudiciais a sua vida, com muito pobres rendimentos, não têm voz sobre a maneira como sua produção é utilizada. Muitas destas pessoas estão a trabalhar em contratos agrícolas com grandes companhias do agro negócio, que são as que processam, refinam e vendem o produto. Portanto, são estas grandes empresas que decidem canalizar estas produções aos combustíveis e não ao mercado de alimentos. A subida dos preços dos alimentos, pagos pelos consumidores, não se reflecte nos rendimentos dos pequenos camponeses.
Diante da crise energética, produção e consumo responsáveis A produção campesina sustentável é imprescindível para alimentar o mundo. A agricultura campesina sustentável e a soberania alimentar consomem até 80 vezes menos energia que a agricultura industrial. A soberania alimentar implica primar pelo emprego dos recursos locais para a produção de alimentos, minimizando tanto a quantidade de matérias-primas importadas para a produção como o seu transporte. Igualmente, a comida assim produzida consome-se localmente, pelo que o produto final não tem que se deslocar para longe. Não é lógico comer na Europa aspargos provenientes do Altiplano, ou feijão fresco procedente de Quénia.
Através da história da agricultura, os camponeses e camponesas e as pessoas que habitam nos centros rurais obtiveram a energia de suas terras agrícolas para responder a sua necessidade quotidiana. As famílias campesinas estão a usar azeite de coco ou girassol, biogás, lenha, vento ou água para gerar energia eléctrica para seu uso local. Estes métodos são sustentáveis e integrados dentro do ciclo da produção nas suas terras.
É imperativo desenhar e adoptar atitudes responsáveis no consumo de alimentos e ajustar nosso modo de nos alimentar, sabendo que o modelo industrial de produção e consumo é destrutivo, enquanto que o modelo baseado na produção campesina utiliza práticas energéticas responsáveis.
Por isso, A Via Campesina continua com a sua luta contra o poder das grandes empresas transnacionais e os sistemas políticos que as apoiam. A crise energética não deveria ver-se como um problema isolado, mas sim como parte de toda a crise do actual modelo de desenvolvimento, onde os benefícios têm prioridade sobre as pessoas.
Em seu lugar, nós apoiamos uma agricultura de pequena escala, diversificada, centrada nas pessoas com mercados locais e modos de vida saudáveis, usando menos energia e menos dependência de recursos externos. As famílias camponesas sustentáveis cumprem a missão fundamental da agricultura: alimentar as pessoas.
A Via Campesina denuncia:
• O modelo neoliberal, as instituições financieras internacionais e o capital transnacional, responsáveis directos das crises climáticas e alimentares.
• Irresponsável apresentação dos agrocombustíveis como uma resposta à crise climática e energética.
• Imoralidade de produzir agrocombustíveis no mundo assolado pela fome
• A passividade da maioria das instituições enfrentadas com o sério risco trazido com a chegada dos agrocombustíveis, o que implica que as populações urbanas e rurais não podem nem produzir nem consumir alimentos.
• O que estas mesmas instituições estão na realidade a fazer, é colocar os interesses económicos das grandes empresas transnacionais por cima da alimentação e das necessiadades nutricionais das mesmas pessoas que têm confiado representar e defender.
• O insulto de continuar promovendo os agrocombustíveis a pesar do balanço energético negativo na sua produção, processamento e transporte.
• O modelo neoliberal, as instituições financeiras internacionais e o capital transnacional, responséveis directos das crises alimentar e climática.
A Via Campesina exige:
• O término das empresas impulsionadas pelo monocultivo baseado na produção de agrocombustíveis. Como primeiro passo, terá de ser declarada imediatamente uma moratória internacional de cinco anos na produção, comércio e consumo de agrocombustíveis industriais.
• Deve efectuar-se uma avaliação profunda do custo social e meio ambiental do boom dos agrocombustíveis e dos benefícios conseguidos pelas grandes empresas transnacionais no processamento e comercialização das matérias-prima.
• A promoção e o desenvolvimento da agricultura campesina e os modelos de consumo locais e o repúdio do consumismo.
• O apoio explícito dos governos e das instituições ao modelo de produção e distribuição de alimentos baseado na agricultura campesina sustentável, com seu uso mínimo de enrgia, sua capacidade para criar emprego, de respeitar a diversidade cultural e biológica e seu efeito positivo contra o aquecimento global (os solos férteis são o melhor caminho para capturar CO2).
• A reorientação das políticas agrícolas até as comunidades rurais sustetáveis e os modos de vida baseados na soberania alimentar e a autêntica reforma agraria.
• A promoção e o desenvolvimento do consumo responsável.
Apaguemos o fogo dos agrocombustíveis e acendamos a chama da soberania alimentar!