Fonte: Por Clóvis Rossi*

Não se trata nem de julgar se essa política era a correta ou se seria melhor a que pregava o contrário (aproximar-se mais e mais do mundo rico). Há bons argumentos em favor de uma e outra linha. O importante, no caso, é a perseverança em uma dada direção ou, em caso de mudança de rumo, uma razão forte o suficiente para ser facilmente compreendida pelo público e os parceiros externos.

Não foi o que ocorreu. O Brasil passou os últimos cinco anos, desde a criação do G20 em 2003, defendendo a tese de que a Rodada Doha era, centralmente, uma questão de liberalizar a agricultura dos países ricos em benefício dos pobres. Nem a competente dialética dos diplomatas brasileiros em geral e, em particular, do chanceler Celso Amorim será capaz de convencer quem quer que seja que houve, na noite de quinta para sexta-feira passadas, concessões dos países ricos que ao menos se aproximassem do defendido há cinco anos.

Qual era o nó agrícola mais saliente nas negociações da semana passada? O volume de subsídios que os EUA dão a seus agricultores. O G20 passou cinco anos defendendo um teto de US$ 13 bilhões. Os EUA ofereceram inicialmente US$ 15 bilhões, rejeitados pelo G20. Aí, surgiu a proposta de Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC, de US$ 14,5 bilhões, uma redução microscópica e, ainda assim, o dobro do que vem sendo efetivamente concedido aos agricultores dos EUA nestes tempos de elevados preços de commodities agrícolas.

O Brasil aceitou, o que leva a uma de duas suposições: ou todo o empenho por um teto menor era jogo de cena ou, agora, o rumo da diplomacia mudou para agradar os ricos em vez de solidarizar-se com o Sul. Trocar de linha por uma diferença de US$ 500 milhões não parece uma justificativa convincente. Pior, no entanto, é a punhalada pelas costas na Argentina. Vejamos: o Brasil estava perfeitamente confortável com o nível de proteção a sua indústria previsto no documento prévio às reuniões da semana passada. Só o rejeitou para defender o Mercosul ou, mais exatamente, a Argentina, que reclamava um grau maior de proteção.

Defender o Mercosul tornou-se um dos principais cavalos de batalha da diplomacia brasileira, como disse, em Roma, no mês passado, o próprio Lamy. De repente, de novo em uma única noite, o Itamaraty dá as costas ao seu aliado mais importante na região prioritária para a diplomacia brasileira (o Mercosul e a América do Sul) sem que tenha havido qualquer contrapartida significativa dos ricos. Pior: colhe o governo de Cristina Kirchner em seu pior momento interno. A oposição certamente usará a punhalada como sinal de que o governo Kirchner está isolado externamente.

Por fim, debilita outro projeto prioritário, o Ibas (Índia/ Brasil/África do Sul), típica aliança do Sul. Os dois parceiros rejeitaram energicamente a proposta que o Brasil aceitou gostosamente.

Se todos esses danos colaterais tivessem ocorrido em troca de ganhos formidáveis no comércio global -que, afinal, é o que domina o jogo diplomático de países, como o Brasil, que não têm força militar ou econômica para outros jogos-, seria fácil de entender. Mas ante resultados tão modestos, fica a impressão de que a diplomacia brasileira quis apenas mostrar-se bem comportada com os ricos. Exatamente o que vinham pedindo os setores políticos e diplomáticos que eram ironizados até então pelo governismo como subservientes ao Norte e preconceituosos com o Sul.

* Publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-07-2008.

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Itamaraty tenta minimizar críticas às concessões na Rodada Doha

A perspectiva de a Rodada Doha chegar a um acordo final levou o Itamaraty a ensaiar, previamente, um discurso para desmontar as críticas de que as concessões na área industrial foram gordas demais para compensar ganhos tão pífios na área agrícola. A reportagem é de Denise Chrispim Marin e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 28-07-2008.

Na noite de ontem, enquanto os ministros de cerca de 30 dos 153 países da Organização Mundial do Comércio (OMC) tentavam chegar a um acerto, negociadores brasileiros defendiam que os resultados já alcançados são satisfatórios, uma vez que esta é apenas a segunda rodada multilateral a trazer a agricultura entre os seus temas centrais.

“Dizer que o preço do acordo foi alto demais é uma leitura de leigo, uma leitura errada de quem não tem interesse afim com a abertura comercial”, afirmou um negociador. “A referência para nós, nessa Rodada, não é o que pagamos em termos de abertura industrial. Mas o fato de termos conseguido enormes cotas para os nossos produtores rurais.”

O enunciado do negociador dá uma idéia do quanto o Itamaraty está propenso a esquecer as ambições do governo brasileiro e do setor do agronegócio nos últimos sete anos e justificar um acordo que não deverá trazer ganhos na área agrícola.

Essa dimensão foi compreendida pela Argentina, cujo governo resiste a aderir ao compromisso. Até ontem, a negociação caminhava para um compromisso dos países em desenvolvimento – ou seja, para o Brasil e seus sócios do Mercosul – de corte de 54% nas tarifas de importação de bens industriais, com margem de proteção para 14% das linhas tarifárias.

Na área agrícola, os Estados Unidos haviam prometido o teto de US$ 14,5 bilhões ao ano para os subsídios dados a seus agricultores, quando seus desembolsos nos últimos 12 meses ficaram em torno de US$ 7,5 bilhões. A União Européia aceitou o corte de 54% nas suas tarifas para produtos agrícolas, que chegam a 200%, mas com exceção para 4% das linhas tarifárias. Nessa faixa devem ser abrigados todos os produtos de interesse do Brasil e da Argentina, alguns dos quais seriam apenas beneficiados por cotas.

Em princípio, os europeus concordariam em aplicar tarifas de importação menores para as cotas anuais de 300 mil toneladas de carne bovina, 300 mil toneladas de carne de frango e de 650 mil toneladas de açúcar – nenhuma exclusiva para o Brasil. Está em negociação uma cota de 1,4 milhão de litros de etanol, o mesmo volume que estava na negociação do acordo de livre comércio UE-Mercosul, suspensa há dois anos.

Que interesses defende o Sr. Amorim? Agronegócio do Brasil pode ter ganho de US$ 4,9 bi com Doha

As negociações da Rodada Doha, da Organização Mundial de Comércio (OMC), vão gerar um aumento de US$ 7,36 bilhões, pelo menos, nas importações agrícolas de União Européia e Estados Unidos, caso sejam seladas seguindo o esboço em discussão em Genebra, revelam cálculos do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). A estimativa considera os três produtos que mais interessam ao Brasil: etanol, carne bovina e de frango. A reportagem é de Raquel Landim e publicada pelo jornal Valor, 28-07-2008.

As importações desses produtos por EUA e UE subiriam de US$ 4,19 bilhões na média entre 2004 e 2006 para US$ 11,55 bilhões em 2014. O período de implementação da Rodada Doha vai de 2010 a 2014. Para carnes, valem apenas as vendas para os europeus, já que os americanos não importam por restrições sanitárias. O cálculo inclui somente o acesso ao mercado e não considera os ganhos indiretos com corte de subsídios.

Se o Brasil mantiver a participação nesses mercados, o ganho agrícola para o país com a Rodada Doha seria de US$ 4,9 bilhões. Esse cenário significaria incremento de quase 190% nas exportações brasileiras de carne bovina, de frango e etanol para as duas maiores potências do planeta. As vendas do Brasil subiriam dos atuais US$ 2,6 bilhões para US$ 7,48 bilhões. O país responde hoje por 63% das importações de carne de frango e 52% da carne bovina da União Européia, e por 72% das importações de etanol dos EUA e da UE.

“Só que esse é o único ganho para a agricultura brasileira na Rodada Doha”, disse André Nassar, diretor-executivo do Icone, um “think-tank” financiado por associações agrícolas. “Não podemos mascarar o fato de que as negociações globais não trouxeram nenhuma vantagem para o Brasil nos países emergentes”. Na sua avaliação, o principal ponto negativo da Rodada é que China e Índia não foram obrigadas a abrir seus mercados agrícolas. Esse países são alvos prioritários para a agricultura brasileira no futuro, por conta do potencial de crescimento das vendas.

Para calcular os ganhos, Nassar considerou o compromisso selado na sexta-feira por Brasil, EUA, UE, Japão, Austrália, China e Índia. Desse grupo, os indianos são os únicos que ainda discordam. O acordo está agora está em discussão com os demais países-membros. O pacote prevê redução de 70% nas tarifas agrícolas mais altas dos países ricos. Até 4% dos produtos poderão ser designados como sensíveis, o que significa redução menor de tarifa, mas, em compensação, os países devem oferecer alta de 4% nas cotas. No etanol, as negociações ainda não terminaram. O cálculo do Icone pressupõe cota equivalente a 10% do consumo futuro – um percentual que seria considerado “razoável” pelo Brasil.

As importações européias de carne bovina aumentariam 73% em volume e 100% em valor após a implementação da Rodada Doha, conforme as estimativas do Icone. As compras de carne bovina do bloco subiriam 83% em volume e 112% em valor. Já as importações de etanol por EUA e UE aumentariam 224% em volume e 293% em valor. Contrariando temores do setor privado, os dados demonstram que a Rodada Doha vai gerar incremento real no comércio em volume. Os ganhos em receita, entanto, são maiores, porque volumes já vendidos serão apenas incorporados na cota, gerando margens de lucro mais altas.

“O acordo está bem equilibrado na sua modéstia”, avaliou Marcos Jank, presidente da União da Indústria Canavieira de São Paulo (Unica), ressaltando que ainda faltam os “10 minutos do segundo tempo”, referindo-se às discussões hoje e amanhã em Genebra. Ele disse que a negociação sobre etanol está mais complicada com os EUA do que com a UE. Os europeus pedem a criação de cota, e oferecem um volume que está distante da demanda brasileira, mas os EUA sequer aceitam discutir a tarifa de 0,54 centavos por galão.

“Sou favorável a um acordo, mas um retrocesso não tem cabimento”, disse Pedro de Camargo Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs), que não está satisfeito com o pacote. Para ele, as perdas futuras nas vendas para a China são maiores do que ganhos atuais nas exportações para a Europa. No caso de suínos, uma exceção reduz o aumento da cota de 4% para apenas 1%.

E a industria nacional?

Doha. A indústria brasileira perderá? Para a CNI, 56% dos produtos terão corte real de tarifa

A tarifa de importação de automóveis, calçados, têxteis e vestuários declinará de 35% para 23,8% ao longo de dez anos, pelo acordo industrial que o Brasil aceita na Rodada Doha, da Organização Mundial de Comércio (OMC). Esses produtos terão corte tarifário menor (50% do que for aplicado sobre os outros), porque devem ser designados como sensíveis. No total, o país poderá proteger 14% das 8.850 linhas tarifárias em conjunto com os parceiros do Mercosul. A reportagem é do jornal Valor, 28-07-2008.

Em contrapartida, o país optará por uma redução maior nos demais setores. Assim, em 86% das tarifas a alíquota máxima de importação declinará de 35% para 12,7% em dez anos, com aplicação integral da redução definida na negociação. No jargão da OMC, significa optar pelo coeficiente 20.

De acordo com Soraya Rosar, coordenadora da área de negociações internacionais da Confederação Nacional da Indústria (CNI), é mais vantajoso para o Brasil optar por um limite maior de produtos sensíveis porque a diferença de redução tarifária média entre os coeficientes 20 e 25 é de apenas 1,5 ponto percentual. Pelo coeficiente 25, que não permite produtos sensíveis, a tarifa média de importação do Brasil ficaria em 13,5%.

A representante da CNI rebate a crítica dos países ricos de que a atual proposta não significa melhoria efetiva no acesso ao mercado brasileiro. Pelos cálculos da entidade, 56% dos cortes vão perfurar a atual Tarifa Externa Comum (TEC), ou seja, significam redução real nas tarifas de importação. Ela afirma ainda que há uma série de outros setores que também devem ter produtos incluídos como sensíveis, caso de papel, brinquedos, produtos químicos, etc. “São poucos os setores que não precisam de alguma proteção”, disse.

Apesar de considerar os cortes significativos, a avaliação geral dos empresários industriais é positiva e o governo brasileiro não deve enfrentar dificuldades para “vender” o acordo internamente. “O acordo está muito equilibrado e razoável no contexto da negociação. O Brasil decidiu ser líder e isso tem um custo maior”, disse Mário Marconini, diretor de negociações internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Não está nos níveis que nós gostaríamos, mas estamos conseguindo as flexibilidades necessárias para acomodar os produtos sensíveis”, concordou Soraya.

A lista de linhas tarifárias protegidas dependerá de negociações no Mercosul. A Argentina, sobretudo, não tem os mesmos itens sensíveis que o Brasil. Mesmo em setores como têxtil, que preocupa os dois países, as linhas que necessitam de proteção nem sempre coincidem. No Brasil, a indústria brasileira já havia chegado a uma lista definindo 16% das linhas.

Uma solução específica para a Argentina está sendo buscada na OMC, mas negociadores ainda acham que isso deve ser resolvido dentro do Mercosul, com mais espaço para os produtos argentinos serem protegidos. A indústria brasileira não admite pagar a conta da Argentina. “O esforço que terá que ser feito agora é muito mais junto aos argentinos do que da parte brasileira”, disse Soraya.

Para a representante da CNI, a lista de sensíveis do sócio do Mercosul é maior do que a do Brasil. Ela também ressalta que os argentinos já obtiveram vantagens porque deverão limitar seus sensíveis ao volume de comércio do Brasil. A nova regra é mais vantajosa, porque o comércio argentino é concentrado em poucos itens. “A Argentina teve mais espaço para acomodar seus produtos. Em contrapartida, esperamos um corte real na sua lista de sensíveis”, disse ela.

O acordo industrial que o Brasil aceitou na OMC prevê uma cláusula anti-concentração, que impede a proteção de todas as linhas da mesma nomenclatura tarifária ou capítulo. Nos setores sensíveis, 20% das tarifas terão corte integral (54% na média, segundo o Itamaraty). As outras 80% poderão ser protegidas com corte pela metade. Embora a indústria brasileira seja contra essa cláusula, a avaliação dos seus representantes é de que não haverá grandes problemas.

Para a indústria brasileira, os acordos setoriais são agora o tema mais delicado. Os emergentes se comprometeram a participar da negociação de dois acordos setoriais, para eliminar ou reduzir mais rapidamente as tarifas. Europeus e americanos querem a abertura acelerada do setor automotivo. Os brasileiros topam acordo setorial em gemas ou mármores.

Soraya, da CNI, frisa que esses acordos são voluntários e que o Brasil vai apenas participar da negociação sem qualquer compromisso com os resultados. A Anfavea, associação dos produtores de automóveis, diz ter “enorme preocupação” com as pressões da UE e EUA por acordos setoriais, conforme seu representante Pedro Bettancout.

Mercosul deve perder relevância

O Mercosul pode perder relevância e o projeto brasileiro de integração da América do Sul sairá arranhado com o racha entre Brasil e Argentina na Rodada Doha, estima Alfredo Valladão, professor da cátedra Mercosul do Instituto de Estudos Políticos de Paris. O Brasil aceitou um acordo de liberalização industrial na Organização Mundial do Comércio (OMC) que a Argentina recusa. Se Buenos Aires obtiver uma exceção específica para sua indústria, a primeira vítima será a Tarifa Externa Comum (TEC), dizem técnicos do bloco. A reportagem é do jornal Valor, 28-07-2008.

Ao contrário de analistas mais céticos, Valladão acha que o Mercosul vai continuar, até pela capacidade de jeitinho dos sócios, “mas é capaz de perder relevância para definir políticas comuns em termos comerciais, e se limitar a administrar o ‘acquis’ (acervo)”.

A divergência na OMC, contudo, terá impacto político maior sobre a integração regional. A relação do Brasil com a Argentina é politicamente estratégica. É dela que depende toda a integração desejada pelo governo Lula. Sem o eixo Brasília-Buenos Aires, não haverá integração sul-americana, porque foi a condição que existiu para se passar de uma situação de competição para de cooperação entre os dois sócios. “Nada vai funcionar na integração se voltar a competição entre Brasil e Argentina”, afirma.

“Politicamente, [o racha cria mal estar não só na Argentina, mas na América do Sul. Com tantas posições divergentes, é difícil ver como pôr tudo isso junto. Bolívia e Venezuela também são sócios do Mercosul, teoricamente. O que sobra dessa integração?”, questiona.

Por outro lado, o Brasil está tendo um protagonismo global, o que não é o caso da Argentina, em profunda crise política. E o problema do Brasil é conciliar esse protagonismo global e a necessidade de manter a relação privilegiada com a Argentina. “Por causa de seus interesses globais, o Brasil apóia a conclusão da rodada. O que aconteceu é que os brasileiros tentaram buscar ao máximo [um entendimento com os argentinos na OMC], mas chega a hora que não dá para sacrificar a rodada por causa da oposição argentina”, nota o professor. “A questão imediata é quem vai ficar com a Argentina na OMC, e tudo indica que só serão mesmo Venezuela, Bolívia e Cuba.”

A tarefa é de tentar convencer a Argentina a aceitar o pacote, o que pode significar Brasília conceder algo para manter as boas relações, diz Valladão. Mas ele estima que o projeto sul-americano vai sair arranhado de toda maneira.

Resistência de China e Índia travam OMC

As negociações em torno de um acordo global de comércio esbarram na resistência dos dois maiores países emergentes em aceitar a proposta apresentada na sexta-feira para romper o impasse. A reportagem é de Marcelo Ninio e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-07-2008.

Índia e China exigem modificações no pacote de soluções elaborado pelo diretor-geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), Pascal Lamy, o que é rejeitado vigorosamente pelos países desenvolvidos, sobretudo os Estados Unidos.

Para a Índia, o maior problema é aceitar a fórmula de limites à importação. Seu argumento é que ela não fornece proteção suficiente aos pequenos agricultores e põe em risco a segurança alimentar. Paraguai e Uruguai fazem firme oposição à medida, em mais um foco do racha entre os emergentes.

Já a China rejeita a linguagem incluída na proposta de acordos setoriais para reduções tarifárias na indústria. Exige que fique claro o caráter voluntário dos acordos.

Além disso, Pequim retrocedeu nas negociações e agora diz que não aceita cortar tarifas sobre três produtos – arroz, trigo e açúcar. O endurecimento chinês preocupa os grandes produtores agrícolas emergentes, entre eles o Brasil.

Depois de sete dias de intensa barganha, as chances de um acordo estão entre 65% e 75%, disse o chanceler brasileiro, Celso Amorim. “O fato de o barco continuar navegando e não ter afundado é uma boa notícia neste estágio.” O Brasil, que foi o primeiro a aceitar o pacote de Lamy, continua firme em sua oposição a mudanças no texto, distanciando-se de aliados como Índia e Argentina.

A insistência argentina em exigir mais proteção para sua indústria dos cortes tarifários para o Mercosul já aceitos por Brasil, Uruguai e Paraguai causa tensão no bloco e é mais um entrave para um acordo final. Hoje serão apresentados novas versões dos documentos que servem de base para o ambicioso projeto de liberalização da agricultura e da indústria.

Um negociador disse que ainda há outros pontos pendentes, mas que, se Índia e China forem dobradas, o caminho estará pavimentado.

A boa notícia do dia foi dada por Amorim, sobre o provável acordo de redução das tarifas de importação de bananas da América Latina na União Européia. “É um acordo histórico.” A exigência dos latino-americanos em ter tarifas menores, aproximando-se do tratamento preferencial dado às ex-colônias da África, Caribe e Pacífico, era uma ameaça a um acordo. Mas ainda é preciso convencer alguns africanos.

A Índia tentou mostrar força em sua defesa de um freio mais potente às importações em casos de emergência. Apresentou documento com o apoio de mais de cem países à idéia de impor tarifas mais altas que as propostas por Lamy quando houver surtos de importação.

Indagado se a Índia aceitaria flexibilizar sua posição para destravar as negociações, o ministro do Comércio, Kamal Nath, preferiu escapar da responsabilidade por um fracasso.

“A Índia não está sozinha”, disse Nath, apontado como o negociador mais inflexível entre os sete que participam do fórum reduzido das discussões.

Apesar das dificuldade e das divisões entre países emergentes, há a sensação de que o preço político de um fiasco seria mais alto do que o de aceitar propostas imperfeitas. “Com o pacote apresentado, passamos do ponto do não-retorno”, disse uma fonte da OMC que não quis se identificar.

Os diferentes lobbies que atuam na OMC

Durou pouquíssimo a tentativa de atribuir ao ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, algum tropeço nas negociações de liberalização comercial da Organização Mundial do Comércio (OMC), pela comparação dos países ricos aos nazistas, que aconselhavam repetir muito uma mentira até ela passar por verdade. As interpretações, equivocadas, de que o ministro teria falado impensadamente, não resistiram aos fatos. Já a verdadeira gafe ministerial na atuação do Brasil em relação à OMC ainda exige uma melhor avaliação. O comentário é de Sergio Leo, jornalista, e publicado no jornal Valor, 28-07-2008.

O autor da rata foi o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, que, em uma entrevista para “O Estado de S. Paulo”, chegou a dizer que a chamada Rodada Doha, em negociação na OMC, “não servirá para nada”, e que seriam irrelevantes as reuniões dos ministros, em Genebra. Em um ponto delicado das negociações, quando ministros relutam em ceder por duvidarem da real disposição dos interlocutores em negociar, Stephanes desmoralizou a delegação brasileira, e enviou mensagens equivocadas a Genebra.

Ao contrário de interpretações ensaiadas após a manifestação do ministro da Agricultura, porém, ele é voz isolada no governo. Seus assessores chegaram a deixar Genebra no fim de semana, mas sua irritação com o Itamaraty, coordenador das negociações, não é compartilhada pelo Ministério do Desenvolvimento, nem reflete um suposto abandono dos interesses nacionais pelos diplomatas em troca de articulações políticas com parceiros como a China.

Em favor do destempero de Stephanes deve-se reconhecer que ele manifestou pelo menos uma impressão compartilhada por outras autoridades do governo Lula e já mencionada pelo próprio Amorim: com a alta dos preços de alimentos, os fortes subsídios concedidos a produtores rurais nos países ricos provocam distorções menores no comércio internacional; e a demanda crescente por mercadorias agrícolas deve reduzir as barreiras a esses produtos, com ou sem acordo da OMC.

Essa situação, porém, apenas significa que o Brasil pode esperar sem muito desconforto por mais alguns anos, caso fracasse a atual rodada de negociações na OMC. Mas nunca que seja irrelevante o esforço de redução das distorções no comércio internacional e, mais importante, a tentativa, flagrante em Genebra, de evitar que a OMC e o sistema multilateral de comércio percam a relevância e dêem lugar à lei do mais forte no mercado internacional.

Amorim, ao provocar escândalo comparando americanos e europeus ao ideólogo nazista Joseph Goebbels, atraiu as atenções para si e para os negociadores brasileiros, em um momento no qual estava ameaçado de perder legitimidade como representante dos interesses dos países em desenvolvimento. A política de substituição de importações da Argentina faz com que o país se isole, no Mercosul, e resista solidamente a ceder na discussão sobre a redução de barreiras às importações de manufaturados. A Índia, que também protege fortemente a própria indústria, e, além disso, teme o efeito da liberalização de importações agrícolas sobre a massa de famélicos agricultores do país, também se encastelava contra avanços na negociação.

No fim de semana, diplomatas em Genebra acusavam o Brasil de “vender” os parceiros por “30 moedas” – concessões dos EUA e Europa para o etanol brasileiro. Ameaçado de perder o protagonismo entre os países em desenvolvimento, ao chocar com sua menção a Goebbels, mostrou aos países desenvolvidos que poderiam perder seu interlocutor mais disposto a concessões, no time dos países emergentes.

As concessões postas na mesa pelo Itamaraty não saíram do bolso dos diplomatas. Em uma demonstração de maturidade, a indústria brasileira, que acompanha de perto as discussões em Genebra, avaliou os números e opções em negociação e concluiu que pode aceitar uma redução nas tarifas de importação e uma maior abertura à concorrência estrangeira. A questão é dosar essa abertura. Para Roberto Giannetti, da Fiesp, a atuação dos negociadores brasileiros garante uma posição privilegiada ao Brasil nas discussões da OMC, em um ambiente onde é difícil conciliar interesses dos aliados com a defesa que, segundo ele, vem sendo feita da prioridade para os produtores brasileiros.

Houve avanços, ainda que tímidos, em agricultura – mas não é à toa que o Grupo de Cairns, de países mais agressivos na demanda por abertura agrícola, perdeu relevância nas negociações para o G-20, grupo de interesses heterogêneos. Apesar das críticas, os brasileiros têm presença garantida nas reuniões decisivas da OMC, das mais restritas às específicas, como a que discute o fim das barreiras ao algodão, comandada por Estados Unidos, União Européia, quatro países africanos e o Brasil.

A atenção, em Genebra, se concentra nas discussões sobre as condições de maior acesso aos mercados, com a redução de tarifas de importação, e na redução de subsídios agrícolas. Mas, ao avançarem, as negociações podem trepidar em outros pontos, que afetam interesses diferenciados. É o caso da disputa por monopólio no uso de denominações geográficas (questão de honra para os europeus, que apavora países como a Argentina, repleta de regiões com nomes espanhóis, dedicadas à produção de vinhos, por exemplo).

Os negociadores brasileiros, se estiverem – como estão – interessados em um acordo, têm de conciliar a defesa dos interesses nacionais com os caminhos possíveis, limitados pelos impedimentos reais dos outros países. Os negociadores também têm de conciliar interesses no Brasil: o agronegócio, a agricultura familiar, industriais, prestadores de serviços, consumidores. Nenhum destes representa sozinho o interesse nacional.

Todos, de alguma maneira, podem ter ganhos, perdas e frustrações com um acordo na OMC. Caso considerem as perdas e frustrações maiores que os ganhos, tentarão convencer a opinião pública que seus interesses particulares são a expressão do interesse nacional. Não são. E cabe à sociedade ficar atenta a isso.

A quem serve a globalização?

“Os países latino-americanos subordinaram-se à ortodoxia convencional; aceitaram, além da globalização comercial, a financeira; passaram a receber capitais de que não têm necessidade; perderam o controle de suas taxas de câmbio; deixaram-se se apreciar até a beira da crise de balanço de pagamentos; e ficaram para trás”. escreve Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 28-07-2008. Segundo ele, “a globalização, que lhes poderia ter sido tão favorável, afinal não os beneficiou, porque, embora tivessem as condições para competir mundialmente, suas elites não têm a autonomia para poder aproveitar a oportunidade”.

Eis o artigo

Nos anos 1990, a globalização era a “bête noire” da esquerda e dos países em desenvolvimento -para muitos significava abertura econômica prematura. Na atual década, deixou de ser bandeira ideológica do neoliberalismo para se transformar no fantasma perseguindo os países ricos que, aos poucos, abandonam o discurso neoliberal e se preparam para levantar mais barreiras protecionistas. Nos EUA, o discurso dos dois candidatos à presidência é protecionista. Na Europa, a rejeição aos imigrantes pobres porque eles pressionam para baixo os salários médios aumenta a cada dia, ao mesmo tempo em que leis contra os imigrantes violando direitos humanos são aprovadas pelo parlamento europeu, como bem demonstraram Ricardo Seitenfus e Deisy Ventura nesta Folha (25.7.08). Como explicar esse fato? Afinal, a quem serve a globalização? A globalização é a denominação para o estágio atual do capitalismo; é abertura comercial combinada à formação de uma sociedade global. No plano econômico, a globalização significa abertura de todos os mercados: abertura comercial, necessariamente, porque é parte da própria definição de globalização; abertura financeira -dos fluxos de capital-, perfeitamente evitável, já que aumenta a instabilidade financeira mundial ao tirar dos países em desenvolvimento o controle de suas taxas de câmbio.

Nos anos 1990, a globalização contou com o apoio dos países do Norte, que partiam do pressuposto que, na competição global, teriam vantagem. Isso, entretanto, só era verdadeiro em relação à abertura financeira, porque esta, ao impedir os países em desenvolvimento de administrar sua taxa de câmbio, deixava livre a tendência à sobreapreciação da sua taxa de câmbio.

Não era verdade em relação à abertura comercial, porque, desde que os países em desenvolvimento neutralizassem aquela tendência, sua mão-de-obra mais barata lhes garantiria êxito na competição global sem necessidade de proteção.

Para que isso ocorresse o país em desenvolvimento deveria preencher três condições: (1) ser um país de renda média (que já passou pelo estágio da indústria infante),

(2) manter o equilíbrio fiscal e (3) contar com uma estratégia de desenvolvimento que implicasse a determinação nacional de neutralizar a tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio – uma tendência existente em todos os países em desenvolvimento devido à doença holandesa e à atração que as economias desses países exercem sobre os capitais abundantes e relativamente mal-remunerados do Norte. Os países asiáticos dinâmicos hoje capitaneados pela China satisfizeram essas condições; mantiveram tanto as finanças do Estado quanto do Estado -Nação sadias graças ao estrito controle orçamentário e à administração da taxa de câmbio para mantê-la sempre competitiva – e cresceram muito mais do que os países ricos.

Outra, porém, foi a sorte dos países latino-americanos. Subordinaram-se à ortodoxia convencional; aceitaram, além da globalização comercial, a financeira; passaram a receber capitais de que não têm necessidade; perderam o controle de suas taxas de câmbio; deixaram-se se apreciar até a beira da crise de balanço de pagamentos; e ficaram para trás. A globalização, que lhes poderia ter sido tão favorável, afinal não os beneficiou, porque, embora tivessem as condições para competir mundialmente, suas elites não têm a autonomia para poder aproveitar a oportunidade.