Artigo de Ademar Bertucci*

Com o objetivo de apoiar Pequenos Projetos Alternativos Comunitários (PACs) e Miniprojetos, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, em 1981, os Fundos Solidários. A criação dos Fundos aconteceu com a colaboração de organismos de cooperação internacional durante o seminário histórico “O homem e a seca”, realizado, à época, pela CNBB. A intenção era disponibilizar auxílio técnico e financeiro às propostas de desenvolvimento local em diversas regiões do País – elaboradas pelas próprias comunidades.

Desde então, a Cáritas Brasileira iniciou o apoio a grupos (associações, movimentos sociais, redes e cadeias produtivas) por meio de projetos social-organizativos ou econômico-produtivos – baseados em formas auto-gestionárias de trabalho. Os critérios para a aprovação dos projetos variam de acordo com a realidade local e as demandas sociais de cada região. É nesse contexto que nasce o Projeto Esperança/Cooesperança (1987), um setor do Banco da Esperança (1977) integrado com a Cáritas do Rio Grande do Sul, pioneira na gestão dos Fundos Solidários (PACs). A Feira de Santa Maria é seu resultado mais conhecido, pois tem a missão de tornar visível a teia de arranjos e articulações dos quase 300 grupos, associações e empreendimentos e redes de economia solidária dessa micro-região. Mais do que a sua visibilidade, a Feira de Santa Maria alimenta,com a concretude de suas práticas e a energia dos valores que a move, o sonho de milhares de pessoas e grupos de todo o Brasil, da América Latina e do mundo que para ali afluem. Em 2007 foram mais de cem mil pessoas que ali estiveram presentes.

Assim como o Projeto Esperança/Cooesperança de Santa Maria, cujo resgate histórico está registrado em livro de depoimentos publicado em 2006, outras iniciativas com a contribuição dos Fundos Solidários vão se delineando pelo Brasil e pela América Latina. São as Bodegas do Ceará, a Rede Mandioca do Maranhão, a Rede de Marcas de Minas Gerais, a Rede Bode da Bahia, as Cisternas de captação de água de chuva no Nordeste em especial na Paraíba, as cooperativas de crédito da Cressol, em especial no Sul. Nesses 27 anos, os Fundos Solidários tornaram-se uma das principais vertentes do movimento da economia popular solidária no Brasil. Desde 2000, o Programa Nacional de Promoção da Economia Solidária passou a ter três objetivos: promoção da formação de agentes e lideranças da Cáritas, acesso aos recursos dos Fundos, e articulações em redes e fóruns.

Formação, intercâmbios, ensino à distância, rede de formadores

Atualmente, a formação nacional dos agentes da Cáritas é baseada principalmente no aprofundamento dos conceitos sobre Desenvolvimento Local Sustentável Solidário que tem na região de Santa Maria umas das experiências de territorialidade mais acabada . Por isso como em todos os anos as caravanas de agentes e empreendimentos chegam à Santa Maria para os intercâmbios e visitas aos grupos, associações, cooperativas. Recentemente a Cáritas Brasileira concluiu um Curso de Extensão e Especialização à distância para agentes pastorais, assessorias de organizações e movimentos sociais, com conteúdos e metodologia voltados para o Desenvolvimento Sustentável Solidário e Territorialidade onde a Economia Solidária é abordada como estratégia de desenvolvimento. Tal curso tem inspirado a Universidade parceira (UFMG) e a assessoria de articulação social da Presidência da República a reconstruírem a parte do curso voltada para os temas de Políticas Públicas e Controle Social e oferecerem para Conselheiros dos diversas políticas públicas. Soma-se à essa perspectiva de formação a decisão da SENAES, compartilhada com o GT de Formação do FBES, de apoiar a criação de seis Centros de Formação de Economia Solidária, um em cada grande região e um Centro Nacional cuja coordenação ficará a cargo da Cáritas Brasileira.

Fundos Solidários: uma estratégia emancipatória

Já o acesso nacional e a ampliação ao financiamento foram favorecidos com a criação do Fundo Nacional de Solidariedade (FNS) em 1999 e com a disseminação dos Fundos Diocesanos de Solidariedade, oriundos da Coleta anual da Campanha da Fraternidade. Espera-se que as centenas de Fundos Diocesanos de Solidariedade inspirem-se e reproduzam à sua medida o processo de construção do Projeto Esperança/Cooesperança. Deverá contribuir com esse horizonte a decisão da comissão nacional ecumênica (CONIC) que decidiu sobre o tema da Campanha da Fraternidade ecumênica de 2010: Economia Solidária. A multiplicação de Fundos Rotativos Solidários pelo Brasil e sua identidade com um tipo de Finanças Solidárias levou a que o FBES em conjunto com SENAES, MDS e MDA e Banco de Desenvolvimento do Nordeste assumisse um projeto antecipatório de apoio à organizações que atuam com Fundos Solidários no semi-árido brasileiro. Até o momento foram beneficiadas 47 organizações da região do semi-árido, que atuam com centenas de projetos de grupos, associações, comunidades, a maioria alvo de programas de transferência de renda a espera de políticas emancipatórias . Projetos de ampliação para outras regiões do Brasil estão em andamento, sobretudo após seminário nacional cuja negociação com governo tem levado o tema para a adoção de um Programa Nacional de Apoio a Fundos Solidários como estratégia de ação emancipatória.

Redes e Fóruns: rumo a um movimento da economia solidária

Desde o início da década de 90, os primeiros textos que se referiam à economia solidária apontavam a perspectiva de um movimento social que pudesse ir construindo a “cara” e a “voz” dos sujeitos da economia solidária, ressaltar a identidade e preservar a diversidade. Um movimento que pudesse dar visibilidade, a existência dessa atividade econômica (sem economicismos) e deslocar o foco das concepções de “trabalho e renda” das políticas assistencialistas, compensatórias, onde os beneficiários eram tratados como “objeto”. A Feira de Santa Maria em suas edições de 15 anos, trouxe à tona, de início o debate e as práticas do “cooperativismo popular” em contra-ponto ao “cooperativismo de verniz” (1994) e foi agregando aos anos seguintes as versões de Economia Popular Solidária (2002) e, mais recentemente, a Economia Solidária do Mercosul (2005). O Fórum Social Mundial, iniciado em Porto Alegre em 2000, com o lema “outro mundo é possível”, foi fundamental para a articulação e mobilização das práticas de economia solidária no mundo e, especialmente no Brasil. Esse novo alento contribuiu para o encontro das experiências nascentes e em processo de articulação em redes, entre outras, a rede da sócio-economia, a rede de agentes cáritas, a ADS-CUT, a rede universitária de incubadoras tecnológicas de cooperativas populares. Entretanto foi a partir do governo Lula, cuja vitória instigou a articulação nacional para incidir sobre a equipe de transição que o movimento, circunscrito às experiências localizadas, tornou-se efetivamente nacional.

Crescimento de iniciativas estimulam políticas públicas

A mobilização da sociedade para a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Governo Federal (SENAES) e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) merece destaque no balanço dos últimos 5 anos. Nesse período, ambos colaboraram para afirmar a prática e a importância da economia solidária dentro do Estado (governos) e junto à sociedade civil (movimentos sociais, opinião pública). Com isso, a mobilização tem se acelerado numa progressão quase geométrica! Em 2002, 6 organizações integravam o Grupo de Trabalho do Fórum Social Mundial. Já em 2008, participam do FBES 16 entidades nacionais e 81 delegadas pelos Fóruns Estaduais. Em 2006 , 27 Fóruns Estaduais organizaram os 120 eventos preparatórios às 27as Conferências Estaduais de Economia Solidária. Como resultado, milhares de pessoas, de todo o Brasil, participaram do processo de realização da I Conferência Nacional de Economia Solidária. E, em seguida, criou-se o Conselho Nacional da Economia Solidária, espaço de interlocução entre governo e sociedade civil com e para o movimento da economia solidária.

Alguns focos de desenvolvimento local sustentável vêm se destacando, como Catende (PE), Assema (MA), Cooesperança (RS), Pintadas (BA). Entre as redes e cadeias produtivas: Rede Abelha (mel); Justa Trama (algodão); Rede Bode (BA); Rede Marcas (MG), Rede Mandioca (MA). E segmentos sociais específicos se afirmam a cada dia na implementação de projetos: indígenas, quilombolas, catadores/as, desempregados/as, artesãos, microempresa familiar, agricultura familiar , entre outros.

Avança o reconhecimento político e legal

Seis Estados já contam com legislações aprovadas ou em andamento que favorecem as atividades de Economia Solidária. Programas municipais passaram a mobilizar centenas de gestores públicos. Quinze governos assumiram a convocação das Conferências Estaduais. Recursos públicos federais, para além do orçamento da SENAES, têm sido disponibilizados em diferentes ministérios.

Em 2002, para que o governo Lula dedicasse um espaço específico à Economia Solidária em seu planejamento, foi preciso que o movimento, ainda débil à época, entrasse literalmente pela porta dos fundos. Em 2006 a situação se converteu: o PT constituiu uma comissão para apresentar uma proposta de Economia Solidária para a plataforma de Lula, segundo mandato. Pastorais Sociais e organismos das Igrejas também assumem essa plataforma: Pastoral Operária, Pastoral da Criança, Maristas, Kolping, Juventude Rural, Pastoral da Terra, Mutirão, Ecologia, População de Rua, etc.

Por isso em 2008 o FBES realizou a IV Plenária nacional avaliando a trajetória do movimento, definindo seus eixos e bandeiras prioritárias, comprometendo-se com processos de desenvolvimento sustentável e solidário local, identificando as alianças estratégicas no rumo do seu projeto político. Não é tarefa para pouco tempo nem para poucas mãos!

Como dizia Dom Ivo Lorscheiter: “ é a construção de algo inédito que surge da força dos pequenos unidos” que, convivendo com o “velho”, precisa superá-lo na caminhada! Os/as agentes Cáritas, fiéis à sua missão, caminham juntos com o movimento em construção e estão presentes na XV Feira de Santa Maria, mais uma etapa dessa caminhada!

* Ademar Bertucci é da coordenação colegiada da Cáritas Brasileira e membro da coordenação executiva do FBES.