Fonte: Artigo Publicado no Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br)
Relatório da Comissão Pastoral da Terra revela que disputas por abastecimento quase dobraram entre 2006 e 2007. Entidade ataca sistemas de irrigação do agronegócio, como os usados nas plantações de soja. Por Érica Montenegro, da equipe do Correio Braziliense, 27/06/2008.
O crescimento desordenado das cidades, o uso intensivo da água para irrigação e a construção de usinas hidrelétricas já criam situações de conflito pelo uso da água no Brasil. Os casos mais críticos são registrados em Minas Gerais e no Nordeste brasileiro, onde a ocupação da terra é intensa e a disponibilidade de recursos hídricos menor. Segundo relatório produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), a briga pela utilização da água foi responsável por 87 conflitos no interior do país, que afetaram cerca de 32 mil pessoas no ano passado. A CPT monitora os conflitos pela água desde 2003. Em relação ao ano anterior, esse tipo de divergência cresceu 93% – 45 conflitos foram registrados em 2006.
“A disputa pela água aumentou em todo o país. O controle dos recursos hídricos será um dos principais problemas do campo nos próximos 10 anos”, prevê Roberto Malvezzi, que assessora a Pastoral da Terra em relação ao tema água. Ele alerta para a relação que o assunto mantém com as questões de justiça social. “A disputa envolve interesses econômicos. Grandes fazendeiros ou grupos empresariais conseguem fazer valer sua vontade por meio do dinheiro ou da força política”, afirma.
No início do ano passado, a menina Jéssia, de apenas 12 anos, morreu em uma situação que a CPT caracteriza como resultado de um típico conflito por água. Moradora de um assentamento em Petrolina (PE), Jéssia foi buscar água para a família em um aqueduto localizado a 1km de casa. Ao jogar o balde, a menina despencou de uma altura de aproximadamente 15m. Para a CPT, não foi simplesmente um acidente: o assentamento não conta com abastecimento de água, enquanto o aqueduto leva água do Rio São Francisco para a irrigação de frutas. “É uma situação de desumanidade gritante. Uma menina por um balde de água, enquanto milhões de litros de água são canalizados para a irrigação”, afirma Malvezzi, que denunciou o caso a movimentos de direitos humanos nacionais e internacionais.
Minas Gerais
O estado brasileiro em que a CPT registrou maior número de conflitos foi Minas Gerais. Além dos núcleos urbanos, o território de Minas é intensamente ocupado pela atividade agrícola e pela mineração. Na região do município de Rio Pardo de Minas, as plantações de eucalipto prejudicam os pequenos agricultores. “Existem famílias que estão sem água para plantar porque foram cercadas por florestas de eucaliptos. Como precisam de muita água, os eucaliptos esgotam o lençol freático”, relata o coordenador da CPT em Minas Gerais, Antônio Maria Fortini. A madeira das árvores é usada pelas indústrias da região para o beneficiamento de minérios.
Nas áreas onde o extrativismo é intenso, os recursos hídricos já se tornaram mais escassos. “As nascentes estão sendo aterradas pelas mineradoras. Ao escavar a terra para retirar a bauxita, as mineradoras acabam com a proteção das nascentes”, relata Fortini. No estado, ainda não há falta de água para consumo humano, mas os pequenos agricultores já não possuem o recurso em abundância para usá-lo na produção de alimentos.
A construção de barragens e hidrelétricas é outra causa de conflitos pela água na região. Inaugurada em 2005, a usina hidrelétrica do Irapé desalojou pelo menos 1,5 mil famílias que viviam às margens do Rio Jequitinhonha. Transferidas para outras áreas, as famílias reclamam que estão empobrecendo. “Eram pessoas que tinham água a poucos metros de casa, agora têm de pagar pela água encanada que consomem”, informa Joceli Andrioli, um dos coordenadores do Movimento dos Atingidos por Barragens. Segundo Andrioli, a barragem do Irapé também provocou a contaminação da água de um trecho de pelo menos 100km do Rio Jequitinhonha.
Sistema atacado
O crescimento do uso de pivôs centrais para a irrigação é outro fator gerador de tensões (os pivôs centrais são um método mecânico de irrigação muito usado em culturas extensivas como, por exemplo, a de soja. Compostos por braços de metal que variam entre 200m e 600m, eles conseguem fazer “chover” sobre a plantação. O método provocou o crescimento das áreas agricultáveis em todo o país, em compensação, o equipamento é bastante criticado por conta do desperdício de água).
No oeste baiano, onde estão os municípios de Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, os pivôs centrais estão retirando água até do subsolo. Um hectare irrigado por pivô central corresponde por dia ao uso de água de 200 pessoas. Um pivô é capaz de irrigar 50 hectares, o que corresponde ao abastecimento de uma cidade de 10 mil habitantes. “A demanda dos pivôs pode secar os rios e reduzir as reservas do subsolo”, explica o professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em recursos hídricos Sérgio Koide. Com o crescimento das lavouras para a produção de bicombustíveis, os pivôs devem se expandir.
No DF, a mesma situação de disputa de água provocada pela irrigação já aparece na Bacia do Rio Preto. “O poder público precisará intervir para desfazer o conflito entre os usuários”, afirma o professor Sérgio Koide. A água do Rio Preto é usada para o cultivo de soja, para o abastecimento de famílias e por pequenos agricultores. No Rio Grande do Sul, onde foram registrados quatro conflitos pela água no ano passado, a irrigação tem sido usada para o cultivo de arroz. “Existem leis. Mas, na prática, é o grande fazendeiro quem decide a quantidade de água que quer usar ou, até mesmo, por onde um rio vai passar”, aponta Roberto Malvezzi, da CPT.
A disputa envolve interesses econômicos. Grandes fazendeiros ou grupos empresariais conseguem fazer valer sua vontade por meio do dinheiro ou da força política
População sobe e assusta
Nas cidades, o uso da água aumenta por conta do crescimento populacional. E o mesmo movimento de expansão urbana acaba por tornar o recurso mais escasso. Ao avançar por áreas sem urbanização, os moradores dos novos bairros impermeabilizam o solo, aterram nascentes, captam água sem controle e despejam esgoto sem tratamento nos cursos d´água.
Na Região Metropolitana de São Paulo, onde vivem quase 20 milhões de pessoas, a solução foi buscar água em rios de cidades vizinhas, porque os da região já não estavam em condições de ser usados. Oito sistemas abastecem a população, sendo que um deles – o do Rio Piracicaba – está localizado a cerca de 70km de São Paulo. “Encontramos essa saída há 30 anos. Mas agora a região de Piracicaba demanda mais água. Então, voltamos a ter problemas de abastecimento”, explica Marússia Whately, coordenadora da campanha De olho nos mananciais, promovida pelo Instituto Socioambiental.
Outro problema, segundo Marússia, é o desperdício de água tratada causado por problemas no sistema de distribuição. Com um dos menores índices de desperdício de água entre as unidades da federação, São Paulo chega a perder 30% do volume total da água que trata. Por dia, a quantidade de água perdida seria suficiente para encher 425 piscinas olímpicas. (EM)