Entrevista com Peter Rosset
“Três décadas de acordos de livre comércio e políticas neoliberais desmantelaram a capacidade da maioria dos países de produzirem sua própria comida.” A constatação é de Peter Rosset, agroecologista americano. Nesse cenário, os investidores têm descoberto o “commodity trading (comércio de bens) como resultado do colapso do verdadeiro mercado estatal nos EUA, e estão em busca desesperada de novas áreas de investimentos”. Entretanto, explica, esses grupos lucram tanto com as altas como com as quedas dos preços dos alimentos, inflando “a bolha dos commodities, que está deixando a alimentação fora do alcance das pessoas pobres por todo o mundo”. Atualmente, lembra, “61% de todos os contratos futuros de trigo nos EUA estão detidos por fundos (de risco) multimercados”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Rosset defende a teoria de que cada país deve ser responsável pela alimentação de seu próprio povo. Ao comentar a produção de biocombustíveis, ele é categórico: “É um crime contra a humanidade priorizar alimentar carros em vez de alimentar pessoas”.
Peter Rosset tem doutorado em Agroecologia. É pesquisador do Centro de Estudios para el Cambio en el Campo Mexicano (CECCAM), co-coordenador da Rede de Pesquisa-Ação sobre a Terra (www.acaoterra.org), e faz parte do grupo técnico do [La] Vía Campesina.
IHU On-Line – A que o senhor atribui a crise alimentícia mundial? Ela é real ou pode ser considerada especulativa?
Peter Rosset – Essas são causas tanto de curto quanto de longo prazo. As mais importantes causas de longo prazo são três décadas de acordos de livre comércio e políticas neoliberais, que desmantelaram a capacidade da maioria dos países de produzirem sua própria comida, enquanto impulsionavam sua habilidade de cultivar para a exportação. Políticas similares, promovidas pelo Banco Mundial e pelo FMI, têm obrigado a maioria dos países a vender sua reserva pública de grãos e a privatizarem suas estatais de exportação de grãos. Assim, estamos em uma situação em que os países possuem poucas reservas e têm diminuído sua capacidade produtiva. Uma causa de longo prazo menos importante é a mudança nos padrões de consumo.
A mais importante causa de curto prazo da crise mundial do preço dos alimentos é a entrada de capital financeiro especulativo nos mercados futuros de commodities mundiais. 61% de todos os contratos futuros de trigo nos EUA estão atualmente detidos por fundos (de risco) multimercados, e a ConAgra recentemente vendeu sua unidade comercial de commodities a um fundo multimercados (ou fundo de derivativos). Esses fundos têm “descoberto” o commodities trading [comércio de bens] como resultado do colapso do verdadeiro mercado estatal nos EUA, e estão em busca desesperada de novas áreas de investimentos. Eles vivem da volatibilidade nos preços, tirando seus lucros das oscilações tanto para altas como para quedas, e estão atualmente inflando a “bolha” dos commodities, que está deixando a alimentação fora do alcance das pessoas pobres por todo o mundo. Quando a bolha de preços eventualmente entrar em colapso devido à lei da gravidade, eles acabarão com mais agricultores pelo mundo. Outra causa de curto prazo tem sido o desvio da exploração e da produção agrícola para os agrocombustíveis. Secas em algumas parte do mundo também contribuíram.
IHU On-Line – O senhor defende a redistribuição de terras como alternativa para combater a concentração de renda e defender o meio ambiente. A crise de alimentos pode ser controlada com essa proposta?
Peter Rosset – Parte da solução de longo prazo para a crise de preços dos alimentos é restaurar a capacidade dos países de alimentarem seu próprio povo. Uma vez que grandes produtores não seguem tal caminho, preferindo cultivar soja para exportar e cana-de-açúcar para agrocombustíveis, isso significa reconstruir a capacidade produtiva do campesinato e da agricultura familiar, o que requer uma genuína reforma agrária, incluindo a redistribuição de terras.
IHU On-Line – O uso intensivo de agrotóxicos e inserção dos transgênicos são fatores que contribuíram ou ainda poderão contribuir para a crise alimentícia mundial?
Peter Rosset – São parte de um modelo industrial de agricultura que é orientada para a produção (de bens) para exportação e de agrocombustíveis. Não apenas isso, mas eles comprometem a futura capacidade produtiva dos sistemas agrícolas.
IHU On-Line – A ONU responsabiliza, em parte, a produção de biocombustíveis como sendo responsável pela a crise alimentícia atual. O senhor concorda? É correto afirmar que as mudanças climáticas também têm uma parcela significativa nesse processo?
Peter Rosset – Sim, e é um crime contra a humanidade priorizar alimentar carros em vez de alimentar pessoas. A mudança climática tem desempenhado, até agora, um papel menor, por secas em algumas regiões, embora possa desempenhar um papel maior nisso no futuro. Elas têm desempenhado também um papel indireto, através de argumentos espúrios de Bush, Lula e da indústria sobre as mudanças climáticas para justificar os agrocombustíveis.
IHU On-Line – Para a OMC (Organização Mundial do Comércio), os subsídios agrícolas dos países ricos têm prejudicado os alimentos em países subdesenvolvidos. Segundo a organização, esse fator tem contribuído para a crise alimentícia mundial. O senhor concorda com essa posição? Qual é a alternativa para reverter o quadro, uma vez que avançam os incentivos a agrotóxicos e transgênicos, por exemplo?
Peter Rosset – Não concordo com a afirmação geral de que os subsídios levam a uma crise dos alimentos. Depende de qual tipo de subsídio. Se são subsídios ao agronegócio, que promovem exportação de culturas (vegetais) e agrocombustíveis em detrimento da produção de alimento por camponeses e agricultores familiares, então eles são parte do problema. Mas, e isso é muito, muito importante, todo país no mundo deverá empregar orçamento do setor público (subsídios, se você quer chamá-los assim) para reconstruir a capacidade produtiva do campesinato e de agricultores familiares. O que precisamos é de normas que garantam que esses serão tipos de subsídios que não encorajarão exportação e concorrência desleal em seus países.
Na medida em que a Organização Mundial do Comércio é uma instituição tão tendenciosa, designada para servir somente aos interesses dos poderosos, precisamos tirá-la das políticas de agricultura e alimentos para designar e implementar sistemas melhores. Esses devem ser sistemas que permitam que os países protejam a produção nacional de alimentos de importadores, e impulsionem a capacidade produtiva de seus setores de agricultura familiar e campesinato.
IHU On-Line – O senhor acredita que, nos próximos anos, a humanidade viverá uma penúria alimentar?
Peter Rosset – Estamos enfrentando uma crise de alimentos conduzida por más políticas. Isso, esperamos, irá acordar as sociedades e os governos para a necessidade de políticas de soberania alimentar, de modo a evitar futuras recessões de alimento.
IHU On-Line – Qual é a sua sugestão para construir outros sistemas alimentares, alternativos ao atual modelo agrícola? Como a Agroecologia pode nos ajudar a mudar o processo atual?
Peter Rosset – O único paradigma alternativo para evitar futuras crises de alimentos é a soberania alimentar. A soberania alimentar inclui a proteção aos mercados nacionais de alimentos dos mercados internacionais (incluindo os de capital especulativo e concorrência desleal ); a reconstrução da capacidade nacional de produção de alimentos da agricultura familiar e do campesinato, via reforma agrária, garantia de preço, créditos e outros mecanismos; o bloqueio do controle monopolista por corporações transnacionais sobre nossos sistemas alimentares; restauração do setor público de reserva de grãos; e o uso de práticas de plantio baseadas em Agroecologia que restaurem a terra degradada e construam a futura capacidade produtiva de nossos solos.
(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]