Fonte: Artigo de Euclides André Mance

No último ano, o preço dos alimentos veio subindo consistentemente no mundo todo, reforçando tendência já detectada anteriormente, com importante impacto nos orçamentos domésticos, particularmente das populações empobrecidas do Terceiro Mundo. Uma compreensão mais abrangente e adequada deste problema exige considerar, ao menos, dez fatores.

O primeiro deles é o fato de que o valor do dólar americano vem caindo mês a mês em relação às principais moedas e que um importante número de investidores e de especuladores, em meio à turbulência da economia norte-americana, encontrou no mercado de commodities, incluindo petróleo e alimentos, uma forma de não apenas evitar perdas como também ampliar ganhos. É sintomática a migração da atenção dos fundos e de especuladores para investimentos menos arriscados e com rentabilidade mais segura, por ativos com demanda crescente. Na agricultura, quando as safras quebram, os preços sobem, e uma classe de especuladores ganha. No setor de petróleo, as turbulências igualmente favorecem a especuladores.Não por acaso na terça-feira, 22 de abril, o barril de petróleo superou a casa dos US$ 118,00 na bolsa de Nova York. Outras commodities vem igualmente sofrendo influência da ação dos fundos de investimento e de especuladores, atuando nos mercados futuros visando a elevação de preços e a realização de lucros. Walter Lukken, do conselho administrativo da Comissão Reguladora de Negociações com Contratos Futuros de Commodities dos EUA, destaca a atuação desses fundos e investidores como fator relevante na alta verificada na negociação dos contratos futuros de produtos agrícolas. Conforme a Gazeta Mercantil, “o trigo, o milho, a soja e o arroz alcançaram preços recorde na Bolsa de Mercados Futuros de Chicago (Cbot) este ano. O arroz mais do que dobrou de preço em 12 meses, enquanto que a soja subiu 84%, o trigo, 71% e o milho, 60%. As altas foram alimentadas pela disparada na demanda por contratos futuros, num momento em que os investidores buscam retornos melhores do que os obtidos com ações e bônus ou proteção contra a inflação.”[1] Por sua vez, nas últimas semanas as empresas de comércio nos países exportadores de arroz vem ratardando a assinatura de contratos para entrega futura, na expectativa que os preços se elevem ainda mais: “o mercado praticamente parou nas últimas duas semanas”, afirmou em Londres o diretor administrativo para arroz de uma empresa de comércio de commodities.[2]

E o mais paradoxal é que, segundo a FAO, apenas 7% da produção mundial de arroz é exportada a cada ano, sendo que Tailândia, Vietnã, Índia, EUA e Paquistão respondem por mais de 80% do volume mundial exportado[3] .

O segundo fator é a elevação do consumo de alimentos no mundo, particularmente pelo incremento de demanda na China e na Índia. Se verificarmos o caso do arroz, por exemplo, veremos que a sua produção se manteve estável nos últimos anos, mas que a demanda aumentou – havendo, portanto, uma tendência de aumento dos preços. Conforme dados do Departamento de Agricultura dos EUA, a produção mundial de arroz atingiu 418,1 milhões de toneladas em 2005, 418 milhões em 2006 e 421,2 milhões em 2007. Por sua vez o consumo subiu de 415,6 milhões de toneladas em 2005 para 424,2 milhões de toneladas em 2007. O que supriu esse crescimento de consumo foram os estoques acumulados, que vêm caindo rapidamente nos últimos anos. No final de 2000 havia 147,3 milhões de toneladas de arroz armazenadas. Já em 2007 os estoques alcançavam 74,1 milhões de toneladas, reduzindo-se pela metade em 8 anos [4] . Por outro lado, o crescimento da renda da população pobre elevou o consumo de carnes, o que impacta no consumo de grãos na cadeia produtiva. Para a produção de um quilo de carne bovina, dependendo do regime de criação do gado, gasta-se cerca de 9 quilos de grãos na alimentação do rebanho.

O terceiro fator é a elevação do preço do petróleo que tende a impactar em todas as cadeias produtivas, gerando pressão inflacionária, particularmente nas que dele mais dependem como insumo produtivo, seja no plantio e colheita, e especialmente na logística de escoamento e comercialização. Nesse caso, quanto mais distante a produção agrária está do consumidor urbano e dos centros de exportação, mais a elevação do combustível encarecerá o produto final.

O quarto fator é a política protecionista dos países ricos em relação aos subsídios de sua agricultura, desequilibrando os preços no mercado internacional. Essa política não apenas tem prejudicado historicamente os produtores do Terceiro Mundo, como gera um ambiente insustentável para a comercialização internacional dos produtos agrícolas, afetando a estrutura de preços. Suas conseqüências podem ser sentidas em um momento como este.

O quinto fator são as alterações do clima. Nas recentes safras de arroz alguns países, que são grandes produtores, tiveram fortes quebras – como no caso da Austrália. Isso efetivamente gerou um déficit na oferta em relação à demanda, obrigando vários países a operarem os seus estoques reguladores, o que, todavia, não foi suficiente para evitar a elevação de preços nos mercados internos. Cabe investigar o impacto do efeito estufa e das mudanças mundiais do clima, particularmente do regime das chuvas, no resultado das safras das diferentes culturas, pois talvez esse fator não seja apenas conjuntural. Conforme a Agência Brasil, o embaixador Rubens Rícupero “…disse que a Austrália, por exemplo, já faz estimativas climáticas para os próximos dez anos em seu território. Ainda segundo ele, em razão da seca que lá ocorre, o país reduziu … a produção de arroz para evitar prejuízos.”[5]

O sexto item a ser considerado é o fator dos insumos transgênicos na produção dos alimentos. Embora haja uma ideologia acerca da redução de custos e de impactos de agrotóxicos com a utilização de sementes transgênicas, existe por outro lado um conjunto de estudos consistentes revelando que a sua adoção em larga escala levaria à perda de soberania alimentar pelo conjunto das nações que se tornariam dependentes de multinacionais de sementes para a produção de alimentos e de graves impactos ambientais, incluindo a poluição genética – isto é, a mudança da qualidade genética de sementes não-transgênicas da mesma espécie em um mesmo território, que ocorreria durante sua fase de desenvolvimento pelo contato com pólen transgênico de cultivos vizinhos por ação dos ventos, insetos e pássaros. Cabe investigar em que medida os custos das safras que têm contribuído para a elevação dos preços dos alimentos não estariam sendo afetados pela utilização em larga escala de insumos transgênicos e de herbicidas a eles associados – caso típico dos EUA – e em que medida pequenos produtores familiares, que não utilizam transgênicos, não estariam sendo indiretamente por eles afetados em seus cultivos, com a alteração de produtividade e de resistência das sementes a variações peculiares do clima naquele território, por contaminação transgênica de cultivos vizinhos.

O sétimo item que vem agravando a situação no mercado internacional de alimentos são medidas nacionais de restrição às exportações de grãos para conter a inflação interna, aumentando a escassez desses itens no mercado internacional e contribuindo para a elevação de preços. Produtores que tenderiam a produzir para exportar deixam de fazê-lo, pois como toda a produção deverá destinar-se ao mercado interno, reduzirão a produção para evitar oferta excessiva. Desse modo, medidas restritivas às exportações de alimentos – como vem ocorrendo na Índia em relação ao arroz e Argentina em relação ao trigo e praticadas por outros países em meio a atual conjuntura – tendem a reduzir a oferta internacional desses itens forçando a elevação de preços.

O oitavo item é que alguns países, temendo o agravamento da situação, ampliaram a sua importação para a formação de estoques que lhes assegurem certa estabilidade interna de preços. O governo Chinês, por exemplo, anunciou que entre as medidas para conter a inflação de alimentos no país no curto prazo irá aumentar as importações. Isso igualmente eleva a demanda externa realimentando a tendência de elevação internacional de preços.

O nono item é que em alguns países, como nos EUA, começa a haver nos supermercados certos limites por cliente para a compra de arroz. Isso faz com que a população seja induzida a formar estoques domésticos, imaginando que o produto irá faltar. E assim, o risco é que vários membros da família se revezem na ida ao super-mercado e, embora respeitando a quota por cliente, acabem levando para casa mais arroz do que o fariam normalmente. Isso também eleva a demanda e complica ainda mais a situação.

O décimo item é a atenção que começa a ser dada pelo agronegócio às possibilidades de produção de biocombustível e redirecionamento de cultivos com essa finalidade. Embora haja na imprensa internacional bastante especulação a esse respeito, essa tese, por enquanto, não parece totalmente procedente. A pressão ocorrida nos EUA sobre o preço do milho para produção de etanol, que igualmente alcançou o México em razão do tratado de livre comércio na região, não pode ser universalizada para o conjunto dos continentes. Seria preciso dimensionar, no último período, o volume de produção agrícola destinado aos biocombustíveis em relação ao volume destinado à alimentação para avaliar-se a magnitude desse impacto. E os dados, por enquanto, parecem não confirmar essa universalização, uma vez que o consumo de biocombustíveis no mundo não teria aumentado de forma tão significativa ao ponto de afetar cadeias produtivas agrícolas nos vários continentes. A maioria das nações por enquanto não está tecnologicamente em curso de uma conversão de matriz energética nessa perspectiva e grande parte delas não dispõe de plantas tecnologicamente adequadas à sua exploração comercial. Por outra parte, conforme reportagem publicada nesta semana no The Wall Street Journal, a elevação internacional do preço do milho foi também sentida no setor de produção de etanol nos EUA, muito menos rentável que a produção de etanol à base de cana-de-açúcar brasileiro, havendo uma tendência de queda dos preços internacionais do etanol, com a safra recorde de cana-de-açúcar no Brasil tendendo a ultrapassar as 500 milhões de toneladas: “os preços do álcool brasileiro no atacado estão em cerca de US$ 1,64 por galão, enquanto que o etanol americano é vendido por US$ 2,55 o galão. (…) Mesmo com uma tarifa de importação de 54 cents imposta sobre o etanol brasileiro, seu preço ficaria em US$ 2,18 o galão”, ainda mais barato que o etanol americano no interior dos próprios Estados Unidos. Afirma o jornal que após o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos informar uma redução de 8% no cultivo de milho para a presente safra, os preços do milho dispararam e com esta elevação “os produtores de etanol americanos terão uma pequena margem de lucro ou nenhum lucro”.[6] Neste caso foi a redução da oferta do milho o que gerou a elevação do preço do insumo encarecendo a produção do etanol americano.

O Secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-Moon, atacou os especuladores e as políticas agrícolas dos países ricos, como sendo os principais responsáveis pela inflação dos alimentos no mundo, responsabilizando o petróleo, os subsídios e o protecionismo comercial pela crise atual que já começa a gerar disturbios sociais e instabilidades políticas em vários países.[7]

A situação tende efetivamente a se agravar se medidas não forem rapidamente tomadas. O preço do arroz dobrou nos últimos 3 meses nos mercados internacionais. Caminhões que transportam trigo e farinha no Paquistão tem recebido proteção adicional de soldados. Protestos envolvendo preços ou escassez de alimentos ocorreram na Indonésia, Haiti, Guiné, Mauritânia, México, Marrocos, Senegal, Uzbequistão e Iêmen. O governo filipino temendo uma escassez ainda maior de arroz, iniciou uma investigação sobre a existência e rastreamento de estoques ilegais do produto. Em função das pressões sociais, como vimos, governos têm restringido as exportações de alimentos e alguns países começam a controlar vendas e preços de alguns itens no mercado interno para tentar evitar desabastecimento e especulação.

Alguns analistas destacam que “há definitivamente um potencial de inquietação, particularmente à medida que as pessoas mais afectadas são os pobres urbanos que estão concentrados, e portanto com mais facilidade de se organizarem do que os pobres rurais, por exemplo, para protestar contra”[8] . Outros analistas argumentam que a partir de 2010 a situação dos preços dos alimentos estará normalizada pela ampliação da produção e recuperação dos estoques reguladores. Outros vêem nessa crise uma janela de oportunidades para os produtores de alimento, particularmente no Terceiro Mundo.

Mas podemos extrair muitas lições desse triste episódio acerca da lógica perversa de funcionamento do mercado capitalista que não opera com vistas a promover o bem-viver das pessoas mas a realização de lucros de investidores, especuladores e dos grandes empresários, particularmente neste caso, do agronegócio.

Em sentido totalmente contrário a esta lógica, cabe à economia solidária promover ações de soberania alimentar nos marcos do desenvolvimento sustentável. Neste horizonte sugiro a leitura do livro, que está disponível na minha página-web, com o título Fome Zero e Economia Solidária – O desenvolvimento sustentável e a Transformação Estrutural do Brasil . Nele são apresentadas diversas reflexões acerca de como assegurar a soberania e a segurança alimentar nos marcos do desenvolvimento sustentável, tendo por base a economia solidária.

Abraços a todos/as.

Euclides Mance

[1] Gazeta Mercantil. Mercado futuro: Hedge ficou menos eficiente . Acesso em 25/04/2008.

[2] A Semana On Line. Preço em ascensão do arroz provoca temor de distúrbios na Ásia . Acesso em 25/04/2008.

[3] Embrapa. Perspectivas para o mercado internacional de arroz . Acesso em 25/04/2008.

[4] G1. Estoque mundial de arroz caiu pela metade de 2000 a 2007, diz governo americano . Acesso em 25/04/2008.

[5] Agencia Brasil. Cenário internacional deve favorecer o Brasil nos próximos anos, diz Ricupero . Acesso em 25/04/2008.

[6] BBC Brasil.com. Aumento do milho pode elevar demanda por etanol brasileiro, diz ‘WSJ’ . Acesso em 25/04/2008.

[7] O Estado de São Paulo. ONU defende o etanol e ataca os subsídios agrícolas dos países ricos . Acesso em 25/04/2008.

[8] Nicholas W. Minot, pesquisador do Instituto Internacional de Pesquisa de Política Alimentar, Washington. In. A Semana On Line. Preço em ascensão do arroz provoca temor de distúrbios na Ásia . Acesso em 25/04/2008.