Texto de Kelma Nunes e Meyre Coelho*

A Economia solidária é um conjunto de práticas alternativas à economia da ordem do capital, que se demarca, historicamente, com o surgimento dos empreendimentos solidários no Brasil, tendo como plano de fundo, de um lado a implantação do regime neoliberal e da globalização da economia no decênio de 90, e de outro, o aprofundamento das desigualdades sociais e os embates da sociedade civil frente ao desemprego estrutural que atinge uma parcela considerável de trabalhadores e trabalhadoras.

Definida assim, a economia solidária traz para si a tarefa de construção de uma outra forma de economia baseada na cooperação, na democracia, na justiça social, na autogestão, na participação eqüitativa, na produção coletiva e nas relações de produção e consumo solidários que apontariam para a uma outra sociabilidade, para uma sociedade do eco-desenvolvimento, do respeito a diversidade cultural, sexual e étnica.

Nessa construção de uma outra economia, inúmeros são os desafios cotidiano a serem enfrentados: a criação e estabelecimento de um mercado solidário que englobe a dimensão presencial e desenvolva o e-comércio, a apropriação conceitual e operacional das tecnologias livres que tem caráter colaborativo e aproveitam melhor os recursos, a criação e efetivação de rede sociais e cadeias produtivas, o desenvolvimento local focado na territorialização, a criação de um marco legal, a relação com o Estado, na institucionalização da política pública, a manutenção permanente de um diálogo com os movimentos sociais e populares, e com o movimento feminista e as demandas por ele engendradas, como a exigência de uma economia feminista; Este último, caracteriza o objetivo de reflexão desse texto, por isso, faz-se necessário o entendimento das demandas originadas pelas mulheres no que se refere a produção e reprodução das relações de dominação e exploração de gênero que acontecem na sociedade e no mundo do trabalho e como a economia solidária dialoga com essas demandas na perspectiva de ruptura desse padrão de dominação imposta às mulheres.

Segundo dados apresentados no Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres, a pesquisa nacional por amostra de domicílio (PNAD/IBGE) de 2003, revela que as mulheres participam em 50% do mercado de trabalho e representam 42% da mão-de-obra no trabalho formal e 57% no trabalho informal, isso sem considerar o trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres cotidianamente em seus lares (1).

Portanto, a participação das mulheres no mundo do trabalho é bastante considerável, porém essa participação não se traduz em melhoria de sua qualidade de vida, nem em respeito aos seus direitos. Veja! Mesmo expressiva participação, as mulheres ainda ocupam funções subordinadas aos homens e recebem salários bem inferiores a eles. Isso demonstra que a divisão sexual do trabalho é uma premissa na economia capitalista e as chances de mudanças dessa lógica, nos marcos do capital, é nula.

Na economia solidária, que se constitui num espaço de construção dialógica e de vivências de produção, distribuição, poupança, crédito e consumo organizada a partir de valores de solidariedade e cooperação, e gerida por princípios ético-humanitários de primazia do ser humano – enquanto sujeito coletivo -, as mulheres têm, pois, um campo fecundo para o enfrentamento da exclusão e do trabalho precarizado, para a possibilidade de rompimento da lógica da divisão sexual do trabalho, do machismo, da exploração e da dominação de gênero.

Porém para que essas possibilidades tornem-se realidade em construção é preciso que ocorram mudanças nos quadros atuais da economia solidária no Brasil. Analisando a pesquisa realizada pela Secretaria Nacional da Economia Solidária – SENAES do MTE, os homens têm uma participação relativamente superior a das mulheres, numa proporção de 64% para os homens e 36% para as mulheres. Resguardadas algumas regiões como o Centro-Oeste onde as mulheres atingem um percentual de participação de 41% superior em relação aos homens na média nacional, em todas as demais regiões do país a participação das mulheres é inferior a dos homens. No que refere a composição dos empreendimentos solidários, as mulheres predominam nos EES com menos de 10 sócios, chegando ao percentual de 63%, enquanto os homens são predominantes nos EES de maior porte.

Esses dados são relevantes para se pensar que as mulheres no Brasil vêm avançando muito na caminhada pela efetivação de seus direitos e pela luta contra a exploração e dominação machista, mas é preciso avançar mais, dialogar mais, estimulando e aumentando a sua participação no movimento da economia solidária. Cabe às mulheres o papel de levantar a bandeira de uma economia feminista, que priorize o diálogo e aponte para a ruptura de padrões sociais dominantes, perpassados pela divisão sexual do trabalho. É preciso romper essa lógica, porém é uma força tarefa de várias mãos, de várias falas, de várias vidas.

Na economia solidária as redes de mulheres são um exemplo de que estamos todas atentas na luta e na reflexão da necessidade de rediscutir o papel da mulher na esfera privada e pública, em contraponto a condição dos homens. A inversão da lógica de opressão e submissão do trabalho feminino é condição primeira para que a economia solidária seja uma economia para as mulheres. É possível? É! Mas façamos o caminho dessa construção caminhando juntas e juntos! Embalados pela força revolucionária de cada uma e um de nós. E, durante a trajetória “não nos afastemos, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”, como diria Drummond de Andrade.

Nota:

(1) Plano Nacional de Política Para as Mulheres /PNPM da Secretaria Especial de Política para as Mulheres do Governo Federal

* Kelma: ONG Ceará em foco: antenas e raízes e integrante da rede de gestores públicos de Economia Solidária. Meyre: ONG INEGRA e integrante do Movimento de Mulheres Negras do Ceará