Fonte: Boletim Carta Maior

O Programa Fome Zero não se limita ao “Bolsa Família”, tem também ações direcionadas à agricultura familiar brasileira. É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos que tem tido reflexos na matriz produtiva e de consumo alimentar em algumas regiões nacionais. Esta política é uma das ações estruturantes do Fome Zero dedicada à formação de estoques estratégicos e à distribuição de produtos agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar.

O PAA, como é chamado, foi instituído pelo artigo 19 da Lei nº 10.696 de 2003 e regulamentado pelo Decreto nº 5.873 de 2006. É operado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), em parceria com governos e sociedade civil. O público-alvo da política são agricultores familiares que se enquadram no PRONAF (grupos A a E), organizados em cooperativas, associações ou grupos informais de, no mínimo, cinco agricultores. A compra pelo PAA dispensa licitação desde que os preços não sejam superiores aos praticados nos mercados regionais.

Até agora o PAA beneficiou mais de 23 mil entidades com as doações, atendendo diretamente 21 milhões de pessoas em todo o Brasil. São 313 mil agricultores familiares beneficiados e as compras governamentais superam 830 mil toneladas de alimentos. Os recursos aplicados pelo governo federal ultrapassam a marca de 1 bilhão de reais.

Para execução do PAA, foi formado um grupo gestor, coordenado pelo MDS. Neste, participam o Ministério da Fazenda, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. A maioria dos mecanismos de operacionalização do PAA é administrada pela CONAB, no entanto, três desses mecanismos são administrados pelo MDS. Cada modelo de compra é baseado em preço de mercado e apresenta diferentes formas de operações. Os mecanismos administrados pela CONAB são: Compra Antecipada da Agricultura Familiar; Compra Direta da Agricultura Familiar; Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar e Contrato de Garantia de Compra (está no papel e não chegou a funcionar). Os mecanismos do PAA Leite (apenas para municípios do Nordeste e Norte de MG) e do Compra Direta Local da Agricultura Familiar são operados pelo MDS e direcionam a produção às demandas por suplementação alimentar dos programas sociais municipais e estaduais.

Os recursos destinados ao PAA, entre 2003 e 2005, tiveram origem no Fundo de Combate e Erradicação à Pobreza e foram repassados à CONAB pelo MDS, por meio de convênios. Atualmente, o MDA também contribui para aquisições de alimentos. Estes recursos têm sido empenhados na formação de estoques e no aumento do limite financeiro por família de agricultor. Os recursos provenientes do MDS têm sido utilizados em operações do PAA Leite, Compra Direta da Agricultura Familiar, Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar (Doação) e Formação de Estoques pela Agricultura Familiar (Estoque). Em 2006, a CAEAF foi dividida em duas modalidades: a doação, que manteve seu formato original, e o estoque, que possibilita aos agricultores formar estoques e, no vencimento, pagar em dinheiro ou em produto.

Avaliações do PAA indicam o programa como inovador entre o segmento da agricultura familiar, uma vez que tem atuado na alteração da matriz produtiva e de consumo das famílias menos capitalizadas. O fornecimento de produtos regionais ao programa fez com que muitos agricultores (re)valorizassem e/ou produzissem alimentos locais. Com isso, aumentaram sua renda, qualificaram sua produção e também o consumo doméstico. Os benefícios no âmbito do consumo se estenderam às entidades beneficiadas pelas doações, resultando numa alimentação mais saudável às populações que sofrem de insegurança alimentar.

Os agricultores familiares beneficiários do PAA possuem receitas de comercialização dos produtos quase três vezes superiores às dos não beneficiários, e há grande satisfação com o preço pago aos produtos. O PAA trabalha numa abordagem não assistencialista e gerou efeitos positivos na segurança alimentar dos beneficiários. As compras do PAA criaram mercados até então inexistentes e alteraram a relação entre produtores e intermediários nas regiões em que os mercados já estavam estabelecidos. Nesses locais, houve a adoção de práticas mais justas na relação com os atravessadores, bem como a adaptação dos agricultores a sistemas mais complexos de comercialização. Houve, também, uma mobilização dos agentes locais, instituições governamentais e movimentos sociais no direcionamento das ações para o público-alvo do programa.

Entre os benefícios indiretos do PAA estão a recuperação dos preços pagos aos agricultores, a organização e o planejamento da oferta no segmento produtivo, incluindo a produção, classificação, acondicionamento, armazenamento e sanidade dos produtos. O aumento da diversidade e da qualidade dos alimentos tem resgatado e preservando hábitos e culturas regionais. Observou-se que, quando os agricultores estavam minimamente articulados numa associação ou cooperativa, muitos problemas foram equacionados, como por exemplo o pagamento direto às entidades, a logística de recepção e distribuição e a própria articulação com o agente financeiro. Com isso, o PAA obteve maior êxito nos lugares em que a articulação entre essas entidades estava mais consolidada.

A desarticulação da assistência técnica, a falta de apoio à produção, a integração deficiente com algumas instituições e a dificuldade de transporte da produção são alguns pontos de estrangulamento do programa e foram identificados como aspectos a serem qualificados na política. Ainda, a ausência de macroplanejamento ou de uma instância central de gestão atrapalha o acompanhamento das atividades nos estados e municípios, distanciando a CONAB e o MDS da efetiva execução do PAA. Até o momento, não existem mecanismos no PAA, geográficos ou socioeconômicos, que garantam a conexão com áreas que possam gerar maior retorno social, de forma que as indicações de excesso de oferta de alimentos definem as regiões nas quais o programa tem maior inserção.

As dificuldades com exigências burocráticas, documentação, qualidade mínima e problemas de sanidade dos produtos têm causado uma exclusão de agricultores e associações. Além disso, a divulgação do programa no âmbito nacional foi muito tímida ao longo dos anos, limitando a amplitude e sustentação de ações pelos agentes locais.

Na operacionalização do PAA, observou-se que nas modalidades de Compra Antecipada a inadimplência foi grande, bem como a ingerência dos movimentos sociais na execução e normatização das operações. Nas modalidades implementadas pela CONAB, notou-se um distanciamento entre os agricultores e a instituição implementadora. Com isso, destaca-se a importância do controle social no PAA, que até o momento foi identificado como “ritual”, limitando-se ao cumprimento de exigências burocráticas sem reflexos nas etapas de gestão e supervisão do programa. Segundo avaliações, a maioria dos agricultores não sabia da existência nem da função exercida pelas instâncias de controle social, o que expõe a falta de diálogo entre os atores da política para uma melhor qualificação do PAA.

As organizações, cooperativas e entidades da sociedade civil têm assumido importante papel na operacionalização do programa, mobilizando e orientando os beneficiários, auxiliando-os a superar obstáculos relacionados à assistência técnica, armazenagem e transporte da produção. Dessa forma, constata-se que a participação de prefeituras na implementação do programa possibilita maior êxito, mas não é fundamental. Os resultados das pesquisas apontam para a necessidade de melhor definição do papel dos diferentes agentes na operacionalização do PAA, além de maiores esclarecimentos quanto a esse papel junto aos beneficiários e potenciais beneficiários. A participação de outras instituições, como ONGs, associações e cooperativas, permitiu potencializar os resultados da política.

Tendo em vista as questões comentadas, existe uma série de aspectos a serem tratados para não comprometer a efetividade do programa. E, embora a política seja considera eficiente e tenha grande repercussão entre os beneficiários, há uma contradição na execução do programa, que vem tendo seus recursos encolhidos. Esta redução do orçamento compromete a ação e reflete mudanças internas dos órgãos que o administram.

Houve modificações na direção da CONAB, incluindo a Presidência, o que gera uma insegurança, por parte dos agricultores e demais beneficiários, com relação à continuidade do programa, sua qualificação e ampliação. O grupo que se mantém na administração do PAA reivindicou emendas no orçamento de 2008 e há também um projeto de lei que propõe a vinculação do PAA ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), de forma que os recursos da merenda escolar sejam administrados pelo PAA. Isso certamente terá impactos sobre a agricultura familiar, tendo em vista que os recursos do FNDE destinados à merenda em 2007 foram de 1,6 bilhão de reais. Ou seja, direcionar esse recurso ao PAA em 2008 significa investir quase o dobro de recursos no programa comparativamente ao que foi investido desde que este foi criado.

Entre as novidades está a notificação da Coordenação de Comercialização do MDA sobre a liberação de suplementação orçamentária de 100 milhões de reais para o PAA nas modalidades Compra Direta e Formação de Estoques. A inovação é a desvinculação da modalidade Formação de Estoques das demais modalidades do programa (a ser publicada em breve). Isso permitirá que os agricultores possam acessar a modalidade Formação de Estoques simultaneamente às demais, chegando a uma renda de 7 mil reais/ano por família.

Enfim, vale torcer para que esta política seja alvo de manutenção, qualificação e expansão para, assim, continuar rendendo impactos positivos na agricultura familiar brasileira.

*Algumas análises deste texto foram recolhidas do “Estudo comparado sobre a efetividade das diferentes modalidades do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA NE” produzido por SPAROVEK, G. et al (USP) e “Estudo do impacto do PAA sobre os arranjos econômicos locais nas regiões Nordeste e Sul do Brasil” produzido por BOTELHO FILHO et al (UNB).

Silvia A. Zimmermann é engenheira agrônoma, doutoranda CPDA/UFRRJ e assistente de pesquisa do OPPA.