Texto da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG

Volta à cena nacional, ainda que de forma tímida, o debate em torno da CPI das ONGs, a primeira requisitada nesta nova legislatura, instalada em final de setembro, presidida pelo Senador Raimundo Colombo (DEM-SC), porém ainda sem indicação de relatoria. A pauta central é apurar a liberação de recursos públicos pelo governo federal para organizações não-governamentais (na realidade, organizações sem fins lucrativos) e para organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), além de averiguar a utilização por essas entidades de recursos recebidos do exterior, com ampliação do prazo original para o período de 1999 a 2007.

A Abong considera importante investigar toda e qualquer irregularidade no trato de recursos públicos por quem quer que os acesse. O propósito de uma CPI séria, em um contexto democrático, deve ser apresentar a sociedade, instituições e órgãos competentes investigação acurada dos fatos em torno do seu objeto. Em um País com uma cultura visceral de impunidade, principalmente no que se refere à corrupção, o sério funcionamento de uma CPI deve assegurar apuração profunda dos fatos, bem como fornecer a base necessária para as providências punitivas cabíveis em relação às denúncias comprovadas.

A CPI das ONGs pode se constituir em uma oportunidade de conhecimento, por parte de parlamentares, gestores/as e sociedade, sobre as atividades diversas dessas organizações, seus problemas reais na operação de recursos públicos, sejam estes originários da má-fé sejam os mesmos gerados por este modelo de terceirização das responsabilidades do Estado. Se não for orientada pelas disputas político-partidárias, a CPI poderá apurar problemas de repasses, indicar punição quando houver má-fé, mas contribuir para que debatamos sobre o insustentável modelo de relação entre sociedade civil organizada e Estado brasileiro.

O ponto central que defendemos, nesse contexto, é a possibilidade de pautar com seriedade o debate sobre a dimensão pública de recursos do Estado brasileiro, quais os sentidos de seu investimento, critérios e como são pautadas, também por meio do acesso aos mesmos, as relações entre Estado e sociedade no Brasil.

Recursos públicos são de todos/as, não apenas de governos ou de organizações que deles se apropriam, e devem ser utilizados de forma democrática, com transparência e conseqüência, voltando-se para o fortalecimento de uma cultura universal de direitos. Para tanto, o trabalho de algumas organizações não-governamentais tem contribuído nesta direção.

A CPI, se tratada com a seriedade devida, especificamente pode se revelar em oportunidade para sociedade, parlamentares, gestores/as e agentes do Judiciário, de maior conhecimento sobre este complexo universo das entidades genericamente conhecidas como ONGs.

São mais de 300 mil organizações existentes no Brasil e há, de forma geral, grande desconhecimento quanto à diversidade de suas ações, papéis, atividades, projetos de sociedade e fontes de financiamento. Assim, têm sido bastante incômodos, principalmente para entidades sérias, o preconceito, a recente e crescente criminalização e a generalização pejorativa, que têm majoritariamente marcado a referência às ONGs.

Mas o coração dessas questões deve pautar-se no debate sobre a importância e o sentido positivo, para o fortalecimento da democracia, da atuação de organizações defensoras de direitos sob esse formato. E não há como debater “sociedade” sem discutir explicitamente o papel do Estado. Sempre que nos referimos a essas organizações, automaticamente são relacionadas, pelo positivo ou negativo, a governos e Estado. Neste sentido, o Estado brasileiro tem construído relações bastante ambíguas, conflituosas, mesmo dentro do contexto democrático. Essas relações têm-se pautado pelo autoritarismo, utilitarismo e instrumentalismo, no qual governos acreditam que ONGs (e muitas reforçam isto) são “braços” do Estado, tendo que “fazer aquilo que o Estado não faz”.

A ampla legislação existente, decretos emitidos e formas de repasses de recursos públicos firmados mais têm contribuído para confundir ou reafirmar este papel complementar do que para legitimá-las enquanto formas associativas fortalecedoras de direitos, comprometidas com a ocupação de esferas de controle social, de exigibilidade que o Estado cumpra seu papel.

Reflexo dessa pouca atenção histórica ao debate é a frágil discussão em torno das contradições existentes, hoje, sobre o formato de acesso a recursos públicos, que tanta margem tem dado para entidades (sejam elas ONGs, empresas, sindicatos, partidos ou mesmo outras esferas da administração pública) não idôneas operarem.

Não existe ausência de regulação como se anuncia, são explícitos os procedimentos formais e legais de como se deve fundar uma ONG. Mas há, sim, problemas graves nas formas de repasse de recursos públicos, alicerçadas em uma legislação solta sobre convênios, que mais se orienta pela lógica de terceirização de políticas públicas, em ações paraestatais, favorecendo a projeção de relações promíscuas entre Estado e sociedade, do que assegurando visibilidade para procedimentos democráticos e transparentes de projetos de cidadania, com finalidade pública na utilização de recursos utilizados com seriedade por muitas entidades.