Fonte: www.adital.com.br
A menos de um mês para o início do Plebiscito Popular – que será realizado entre os dias 1º e 7 de setembro – sobre a venda da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), o jurista Eloá Cruz, em entrevista por e-mail a Adital, fala sobre as irregularidades do leilão de venda da empresa, como o vínculo entre avaliadores e arrematantes; participação direta de avaliador, sonegação de documento em língua inglesa; e oferta no edital de venda de cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade para atividades dependentes de concessão governamental.
Além de questionar o subestimado preço de venda da companhia, 3,3 bilhões de dólares, que este ano lucrou, apenas de abril a junho, 3,033 bilhões. Para Eloá, as irregularidades “são suficientes não apenas para anular, mas para decretar a nulidade da venda da Vale, se forem apreciadas regularmente por algum juiz ou tribunal brasileiros”.
Adital – Cerca de 70, das 100 ações populares*, contra o leilão da Companhia Vale do Rio Doce ainda estão em andamento. Quais as irregularidades no edital e no leilão que possibilitam essas ações?
Eloá Cruz – Cada ação popular contra a desestatização do controle acionário da Vale, aponta aspectos diferentes de ilegalidade no edital e no leilão propriamente dito. No meu caso, sou advogado em causa própria e patrocino outras pessoas num total de 15 processos que poderiam ser um só, mas fui obrigado a desdobrá-los em 1997 porque a Justiça Federal não recebe processos com mais de 10 litisconsortes na petição inicial. Nas ações de que participo estão denunciados como irregularidades: o vínculo entre avaliadores e arrematantes; a participação direta de avaliador (Bradesco) no leilão; a sonegação de um documento em língua inglesa (não é o edital de venda) preparado pelo consórcio avaliador para ser dirigido a possíveis concorrentes estrangeiros, por mala direta, e jamais divulgado no Brasil em português; a oferta no edital de venda de cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade para atividades dependentes de concessão governamental.
Tudo isso está proibido na LIC, mas, além disso, aconteceram fatos supervenientes ao leilão que deveriam ser levados em consideração pelo juiz ou tribunal no momento de julgar o mérito (Código de Processo Civil , art. 462): o apoio financeiro do Bndes (R$ 859 milhões) para descruzar as ações entre CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), Vale e Bradesco, com este último sendo o credor final; a liderança de fato assumida pelo Bradesco no controle acionário da Vale; a criação da Bradespar posteriormente ao leilão, mediante uso pelo Bradesco da participação deste no controle acionário da Vale, conforme comunicado oficial feito à Comissão de Valores Mobiliários; a falta de aprovação do Congresso Nacional para a exploração de minérios e minerais nucleares (Constituição Federal, art. 49, XIV); a evidência de sonegação ou sub-avaliação de itens do patrimônio da mineradora.
*Na realidade, são 107 processos de ações constitucionais Nem todos são de ações populares, pois estas só podem ser ajuizadas por cidadãos, que provarem essa qualidade mediante apresentação de título de eleitor, ou documento que a ele corresponda. Alguns processos são de ações civis públicas, que têm basicamente a mesma utilidade das ações populares, mas com a diferença de que só podem ser propostas por pessoas jurídicas especiais (como o Ministério Público, a União, Estados…).
Adital – O Bradesco participou do consórcio de avaliação da venda da Vale e atualmente é acionista da empresa. A consultora estadunidense Merril Lynch tinha, à época do leilão, negócios com o Anglo American, grupo que participou da venda da Vale. Essas relações entre avaliadores e compradores são suficientes para anular a venda?
Eloá Cruz – Numa palavra: sim! Essas relações estão proibidas na LIC e são suficientes não apenas para anular, mas para decretar a nulidade da venda da Vale, se forem apreciadas regularmente por algum juiz ou tribunal brasileiros (respeitado sempre o livre convencimento de quem julgar).
Adital – O preço da Vale foi subestimado só em relação aos lucros possíveis, ou com o que ela lucrava na época já foi abaixo do preço de mercado?
Eloá Cruz – Com certeza o preço da Vale foi subestimado em relação aos lucros possíveis, já previstos na época antes do leilão, E o que ela lucrava na época já indicava ter sido fixado abaixo do preço de mercado.
A intensa controvérsia sobre o preço da Vale na época do leilão do seu controle acionário sugere dúvidas absolutamente improcedentes. Acima dos argumentos passionais houve manifestações de pessoas credenciadas, como, por exemplo, a de Francisco Fonseca, ex-superintendente da Docegeo (subsidiária de pesquisa geológica do Sistema Vale), publicada antes do leilão açodado no jornal Diário do Pará (de 23/02/1997, página A-2), entre outros veículos da mídia, com as palavras proféticas seguintes:
“A lucratividade da Vale aumentará muito no futuro próximo, devido a dois fatores: liquidação da dívida de Carajás e abertura de grandes e lucrativas minas de ouro. Esse aumento de lucratividade, resultado de décadas de administração competente sob regime estatal será mentirosamente atribuído à privatização. Economistas bisonhos louvarão as virtudes da privatização e apresentarão a Vale como exemplo. A economia deixou de ser uma ciência séria e se transformou em uma numerologia enganadora, a serviço de interesses dominantes.”
Apesar de ter feito constar no corpo do Edital PND-A-01/97 CVRD uma relação de resultados financeiros da Vale, o BNDES declarou em documento aos Autores da Ação Popular (AP) 200251010187644 (12ª Vara Federal/Rio de Janeiro) desconhecer tais resultados, se contados ano a ano, desde 1942. O TCU também não dispõe dessas informações, conhecendo com dados precários os resultados de 1970 até a data do leilão, em 06/05/1997. Em defesas apresentadas na mencionada AP, os Réus União Federal e Fernando Henrique Cardoso admitiram que o primeiro ano de resultado positivo da Vale foi 1954 e sabe-se que, daí para frente, a Empresa somente teve prejuízo contábil em dois exercícios, um deles em 1987, por causa da crise mundial de petróleo. O Governo Federal sempre soube da lucratividade excepcional da Vale, tanto que, periodicamente solicitava o pagamento antecipado dos dividendos a que faria jus como acionista controlador, nos meses de abril e outubro de cada ano.
Independentemente da questão da nulidade da venda, o que ainda deve causar dúvida para definir o preço líquido real apurado pela venda é saber: quanto havia efetivamente em caixa na Vale na data verdadeira do leilão (06/05/1997 e não 07/05/1997)? Quanto foi despendido pelo Bndes em financiamentos públicos a favor de arrematante(s) do leilão? Porque aceitar R$ 85,9 milhões em “doação” para o estatutário Fundo de Reserva da Desestatização e financiar R$ 859 milhões para o descruzamento de ações entre CSN, Vale, Vicunha e Bradesco. E, quanto foi perdoado aos arrematantes, a título de renúncia fiscal calculada sobre o suposto ágio de R$ 338 milhões sobre o preço mínimo da venda?
Adital – O senhor defende que os dividendos da Vale devem ser depositados em um fundo à disposição do Tesouro Nacional, como medida cautelar até que saia uma resolução sobre a anulação da venda. Como separar os lucros obtidos após investimentos privados e o que já era potencial da empresa?
Eloá Cruz – Duas possibilidades a considerar, relacionadas uma às APs contra a desestatização (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) e a outra à já citada AP da 12ª Vara do Rio. Se o Poder Judiciário reconhecer que a venda do controle acionário da Vale em 06/05/1997 é nula de pleno direito, seria inteiramente descabida a cogitada separação de investimentos, porque quem investiu de verdade sabendo do contencioso popular aberto assumiu os riscos da situação preexistente. E, se não for decretada a nulidade, ainda assim os acionistas controladores da Empresa estarão obrigados a uma ampla prestação de contas, para que provem a inocorrência de locupletamento indevido à custa do Erário. Isto porque, em primeiro lugar, os lucros proporcionados pela Empresa terão decorrido de reinvestimentos de exercícios financeiros anteriores, sendo frutos naturais de patrimônio público; e em segundo lugar, porque os controladores adventícios se locupletaram indevidamente com as parcelas de lucros excedentes de 15%, destinadas ao fundo de melhoramentos e desenvolvimento instituído no artigo 6º, inciso (§) 7º, do Decreto Lei 4.352, de 1º/06/1942, parcelas essas que nada mais são do que modalidade das participações (royalties) devidas a Estados Federados, de acordo com o artigo 20, § 1º, da Constituição Federal.
Adital – 50,3% dos brasileiros são a favor da retomada da Vale pelo governo brasileiro. Como deve ser a atuação popular para pressionar as autoridades judiciais e executivas a agilizarem a decisão sobre as ações populares?
Eloá Cruz – Estou entre os 50,3 de compatriotas favoráveis à retomada, mas defendo a idéia de que, sob o ponto de vista jurídico, a Vale nunca deixou de pertencer ao Estado Brasileiro, haja vista a nulidade do procedimento licitatório culminado no leilão da terça-feira 06/05/1997 (não quarta-feira 07/05/1997, conforme divulgam falsamente os atuais controladores da grande Empresa para eventual favorecimento do grupo Bradesco / Bradespar).
No entanto, como advogado, nunca pensei em “pressionar” autoridades judiciais, porque espero e confio na sensatez dos julgadores. Sei que nenhum juiz no Brasil se impressionaria com tais procedimentos e penso que a atuação popular deve passar é a idéia de que a sociedade está atenta, na expectativa de conhecer os fundamentos de julgados que traduzam apreciação isenta dos fatos, aplicação do Princípio da Legalidade e obediência ao do devido processo legal, também prometido como garantia em nossa Constituição Federal, repelindo sentenças como as do juiz Francisco Gardês.
Quanto às autoridades executivas, não sei o que esperar de políticos que ajuízam ações populares e, chegados ao poder, abandonam os feitos, cooptados pelas forças mais inexplicáveis. Acho a ação popular o instrumento mais emblemático da Democracia e que permite a cada cidadão exercer de fato o poder proclamado no art. 1º, parágrafo único, da Carta Maior.
Em resumo, penso que a posição das autoridades executivas ao lado dos autores populares ajudaria, mas não é indispensável para o bom sucesso das ações populares. Se a Justiça decidir em definitivo pela nulidade da venda das ações de controle (não as dos acionistas minoritários), a responsabilidade pela devolução dos respectivos dividendos ao Tesouro Nacional será daqueles que se beneficiaram diretamente e daqueles que, por omissão, “tiverem dado oportunidade à lesão”. Como autor popular, independente de que outros o façam, pretendo requerer o chamamento desses responsáveis posteriores no meu processo e, em caso de minha morte, já deixei instruções para que meus sucessores processuais adotem o mesmo procedimento. Parodiando a figura histórica: Quem for Brasileiro, me siga!
Adital – Além de ampliar a discussão e dar maior visibilidade ao debate da anulação do leilão da Vale, qual é o papel do Plebiscito Popular nessa campanha?
Eloá Cruz – Espero que esse amplo movimento pelo Plebiscito Popular sirva, sobretudo, para dar mais consciência às pessoas, sobre o que a Vale significou, significa e significaria para a Nação Brasileira, como afirmação de auto-estima, dignidade humana e cidadania. Além de enterrar a falácia triste de que “na mão do Estado era ineficiente, na mão do Bradesco dá lucros”, a campanha já terá conseguido sucesso se as pessoas alienadas resolverem pelo menos ler todo o Decreto Lei 4.352/1942, pois de repente descobrirão que o Governo Brasileiro comprou no Brasil, em 1942 duas empresas privadas inglesas para ter o direito de extrair minério de ferro, transportar em solo brasileiro e exportar em grande escala; saberão que indenizamos acionistas ingleses com recursos do Tesouro Nacional, porque nenhum grande empresário brasileiro se dispôs, na época da II Grande Guerra, a investir seu rico dinheiro para construir o monumental complexo logístico mina-ferrovia-porto e causar inveja às potestades capitalistas do Mundo; poderão se surpreender com a nossa “generosidade” de globalizar a maior parte dos nossos lucros e transferi-la para investidores da NYSE (a bolsa de valores de Nova York) e certamente agradecerão ao Governo Brasileiro por abrir mão da cobrança de contribuições do fundo de reserva para melhoramentos e desenvolvimento regional, porque isso surgiu apenas “para colocar em prática o acordo internacional” entre EUA, Inglaterra e Brasil, sem nenhum interesse e empenho dos nossos governantes com meio ambiente ou projetos sociais.