Fonte: www.ibase.br

No dia 13 de julho de 2007, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 17 anos de existência. Lei criada em 1990 com o propósito de salvaguardar direitos de pessoas até os 12 anos (crianças) e entre os 12 e 18 anos (adolescentes), têm sido alvejada por setores da sociedade para os quais a melhor solução para o problema da violência seria, pura e simplesmente, o encarceramento por tempo indeterminado. No sentido inverso dos(as) defensores(as) desta panacéia, cura para todos os males a partir do princípio duvidoso de mais exclusão, diversos segmentos vêm se mobilizando.

No próximo dia 23 de julho – data do 14º aniversário da emblemática Chacina da Candelária – entidades e movimentos sociais promoverão ações, no Rio de Janeiro e Brasília, contra a redução da idade penal de 18 para 16 anos. Às vésperas da mobilização, pesquisadores(as) das questões da juventude, advogados(as), políticos e representantes do governo analisam o combatido, pouco conhecido e menos ainda aplicado Estatuto. Entre as várias contribuições ao debate, uma percepção comum: a menos de um ano de completar a maioridade, o ECA corre o risco de tornar-se outra daquelas leis tão brasileiras inserida na lamentável categoria das que nunca pegam.

Utopia e dados

“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”. Esta é a transcrição literal do 3º artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente. Quase utópica num país ainda incapaz de promover condições básicas de cidadania, esta premissa representa forte divergência entre defensores(as) e detratores(as) do ECA.

Em relação ao primeiro grupo, talvez fosse importante conhecer alguns dados divulgados em levantamento realizado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos em 2004. A pesquisa revela que, neste ano, apenas 0,2% dos(as) jovens entre 12 e 18 anos havia cometido algum tipo de ato infracional. Destes(as), 73,8% eram crimes contra o patrimônio e não contra a vida.

Para Elen Lilith, presidente do Conselho Nacional de Juventude e representante da Pastoral da Juventude, tais dados praticamente não são levados em conta. “A discussão é feita no calor das emoções. Ela precisa ser mais aberta, democrática e reflexiva, integrando setores diversos”, diz.

Outro levantamento – este feito pela Universidade de São Paulo (USP) – é significativo. Os números mostram que, entre 1980 a 2002, a população de 0 a 19 anos foi alvo de 110.320 homicídios. Um aumento de 316% neste período, resultando em pouco mais de 13 homicídios diários contra crianças ou adolescentes.

Por outro lado, a atmosfera de violência dominante nas ruas provoca, em boa parte da população, anseios por medidas drásticas, que seriam soluções a curto prazo. Divulgada em abril, pesquisa realizada pelo instituto DataSenado mostra que 69% dos(as) entrevistados(as) deseja o aumento da pena máxima de 30 anos. Outros 93% são favoráveis à pena integral para crimes hediondos, sem concessão de benefícios. Na opinião de 87%, jovens infratores(as) devem receber punição igual a adultos.

Em relação à maioridade penal, os números da pesquisa chamam a atenção. Para 36%, os(as) jovens devem adquirir maioridade penal aos 16 anos. Para 29%, a partir dos 14 anos. A punição aos 12 anos é defendida por 21%. De acordo com 14% dos(as) entrevistados(as), a maioridade penal sequer deveria existir, com infratores(as) sendo punidos em qualquer idade.

Demanda de punição

Pesquisadora do Ibase e doutora em Direito Internacional Público, Manoela Roland repudia a idéia de um sistema prisional cada vez mais excludente. “Segundo as falas de diversos moradores das comunidades, muitas vezes eles só se relacionam com os serviços do Estado através do poder de polícia. E não há redução da violência. Criminaliza-se a parcela já desprivilegiada da população e acentua-se a reincidência”.

Para ela, esta demanda pela punição cada vez mais rigorosa acaba por atingir a principal vítima da violência, ou seja, o(a) próprio(a) jovem. No Rio de Janeiro, por exemplo, a população masculina entre 18 e 25 anos é a principal vítima de homicídios. Esta lógica, de acordo com Manoela, gera reflexos no Estatuto. “A aplicação do ECA, seguindo esta linha, é restritiva em matéria de aplicação de medidas socioeducativas para adolescentes pobres, autores de ato infracional. Eles são sempre internados, diminuindo as suas possibilidades de reintegração social”, analisa.

Elen Lilith defende que a cultura prisional estendida a jovens apenas ajudaria a piorar a conhecida situação dos presídios brasileiros. “Nosso sistema prisional está falido e transformado numa escola de crimes”, denuncia.

Deputado estadual (PT-RJ), Alessandro Molon também preside a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Ele ressalta que o anseio pelo rigor crescente das penas encobre os baixos índices dos crimes cometidos por crianças e adolescentes. “Este é um dado concreto não levado em conta. Ganha mais relevância a repercussão dos casos emblemáticos”, aponta. Molon tampouco acredita numa relação direta entre a intensidade e duração da pena e a diminuição da criminalidade.

Crime, Constituição e castigo

Em abril, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) aprovou, por 12 votos a 10, proposta de Emenda Constitucional que reduz de 18 para 16 anos a maioridade penal no Brasil. A redução, no entanto, estabelece regime prisional apenas para jovens menores de 18 anos e maiores de 16 que cometerem crimes hediondos.

O texto do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) prevê ainda a necessidade de laudo técnico elaborado pela Justiça para comprovar o pleno conhecimento do jovem acerca do ato ilícito cometido. A PEC ainda precisa de aprovação em segundo turno no Senado e em dois turnos na Câmara dos Deputados. As votações deverão acontecer no segundo semestre.

Manoela Roland cita a Constituição para demonstrar a inconstitucionalidade nas propostas que atualmente tramitam no Congresso relativas à redução da idade penal. “A Constituição prevê uma garantia ao menor de 18 anos, que se encontra na seara dos direitos e garantias fundamentais”, argumenta.

Ela destaca trecho do artigo 60, que dispõe: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais”. “Portanto, ao se conjugar os diferentes dispositivos em uma interpretação que é chamada de sistemática, a redução da idade penal não poderia ser tema de pauta no Congresso Nacional, o que seria inconstitucional”, conclui.

Mídia

Episódios que causam comoção na população, como o assassinato do menino João Hélio Vieites, de 6 anos, em fevereiro, no Rio, têm sido decisivos – num sentido duvidoso – para aquecer as questões sobre juventude e criminalidade. Na ocasião, o menino ficou preso ao cinto de segurança do carro de sua mãe, quando os assaltantes – entre eles um com 16 anos – arrancaram com o veículo. Do lado de fora, foi arrastado ao longo de sete quilômetros, morrendo no trajeto.

O crime bárbaro instiga reflexões acerca da participação da mídia neste debate. Fransergio Goulart, historiador e membro do Fórum de Juventudes do Estado do Rio de Janeiro, não hesita em creditar à abordagem dos grandes veículos comunicação o preconceito sofrido por jovens negros e pobres. “O jovem sempre é colocado de forma negativa e vinculado à questão da criminalidade e violência, principalmente o jovem negro, pobre e morador de comunidades”, critica.

A pesquisadora Manoela Roland tem opinião semelhante: “A abordagem da mídia sobre o tema da violência como um todo é alarmista e preconceituosa, alimentando um clima de pânico que não proporciona o debate sobre as causas da violência, mas, na verdade, o prejudica, pois apenas aumenta a onda de radicalização em direção a preconceitos já arraigados na sociedade”.

Para o deputado Alessandro Molon, o componente da comoção termina por gerar distorções. “A abordagem da mídia normalmente é apaixonada. É mobilizada pelo excesso em alguns casos. E, mesmo que nem todos os envolvidos sejam menores, a atenção recai mais sobre o menor”, diz.

Aplicação do ECA

Molon levanta um aspecto fundamental do debate ao opinar sobre a efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente 17 anos depois de sua criação. Afinal, esta lei ainda é capaz de abarcar de forma satisfatória as questões relacionadas ao jovem e à criminalidade nos dias atuais?

De acordo com o deputado a resposta a sim. O problema seria outro: uma aplicação real, efetiva do ECA. “Antes de qualquer adaptação ou modificação, o Estatuto precisa ser aplicado. As medidas socioeducativas precisam ser, de fato, socioeducativas e não ser transformadas em penas de prisão”.

Manoela Roland lembra a existência de diversas propostas de reforma do ECA, em vários pontos. Mas enfatiza uma delas: “Uma questão urgente realmente se dá na sua interpretação, devendo-se buscar critérios mais objetivos e efetivos de aplicação das medidas socioeducativas a todos os jovens”, afirma.

“O ECA é um dos marcos regulatórios mais avançados do mundo, mas precisa ser colocado em prática, pois não é cumprido”, reforça Elen Lilith. Uma das medidas que poderia dar mais efetividade ao Estatuto, de acordo com ela, é o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Aprovado em 2006 pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Trata-se de um conjunto de práticas socioeducativas visando estabelecer normas para uma política nacional de execução de medidas voltadas a jovens em conflito com a lei. O projeto prevê padronização dos procedimentos jurídicos desde a aprovação do ato infracional até a aplicação das medidas. Entre as diretrizes do Sinase está a elaboração de planos de execução de medidas socioeducativas em meio aberto para municípios com mais de 100 mil habitantes.

Seria, portanto, uma alternativa ao encarceramento, invertendo a lógica punitiva. Mas, para sua implementação, o Sinase ainda enfrenta entraves como a aprovação do projeto de lei de execução de medidas socioeducativas. A proposta inclui debates sobre a participação da iniciativa privada na gestão de unidades de internação.

Um projeto de lei encaminhado no último dia 12 de julho, ao Congresso, pretende regularizar o Sinase. Resta esperar que isso ocorra antes da maioridade do ECA.

Mobilização do dia 23

A agenda de atividades para o próximo dia 23 inclui missa na Candelária pelas pessoas mortas na chacina da Candelária, audiências públicas em Brasília, oficinas e seminários. Este é o décimo ano em que manifestações com abordagem específica lembram o triste episódio e aglutinam diversos setores da sociedade.

Este ano o foco da mobilização é justamente a redução da maioridade penal. “O ECA já é uma resposta ao adolescente que pratica ato infracional. A questão é que ainda não temos políticas públicas para a criança e o adolescente”, diz Jorge Barros, advogado que integra o Programa Criança e Adolescente da Fundação Bento Rubião.

“Nós caminhamos contra a maré, pois não conseguimos espaço na mídia. A intenção é denunciar a ausência do Estado nos níveis mais básicos. Mas a passeata acontece na Candelária e não na orla. É preciso ir adiante. Se não garantirmos direitos agora, vamos ter que continuar a investir em presídios”, afirma Jorge Barros.

Programação

Missa: 9h – Missa na Candelária pelas crianças e pelos(as) jovens mortos na chacina da Candelária. Concentração: 11h, logo após a missa. O ato sairá, após o meio-dia, da Candelária rumo à Cinelândia. 29/6 – 15h – Audiência pública sobre o tema “Redução da Idade Penal” na Alerj. 11/7 – 14h – Audiência pública na Câmara de Deputados, em Brasília. 12/7 – 9h – Seminário sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Pça XV, atrás do Fórum). 13/7 – 10h – Ato contra a criminalização da pobreza, as remoções de favelas e contra a redução dos direitos dos(as) trabalhadores(as), em frente à Prefeitura. 16 e 17/7 – 9h – Oficina contra a redução da maioridade penal, no Salão do Desarmamento – Rua do Russel, nº 76, 2º andar, Glória. 19/7 – 13h – Encontro de galeras debatendo a redução da maioridade penal – Escola Municipal Maranhão/ Av. João Ribeiro, 413 – Pilares (próximo à estação de metrô Engenho da Rainha, três pontos depois do Norte Shopping). 20/7 – 9h – Seminário sobre o Sinase na sede da OAB-RJ (Avenida Marechal Câmara, 150, Centro). 23/7 – 9h – Missa na Candelária pelas crianças e pelos jovens mortos na chacina da Candelária. 23/7 – 11h – Ato contra a redução da idade penal.

Por Alfredo Boneff