Autor: João Cláudio Arroyo – Membro DE/PT-PA, mai.2007 (arroyojc@hotmail.com)

O Socialismo surge no bojo da perspectiva humanista que se processou desde o Renascimento, firmando-se no Iluminismo. O Socialismo – tanto como movimento de pensamento filosófico, ideológico, quanto como movimento político e cultural – é, portanto, tributário direto do racionalismo, do cientificismo e da ascensão do ser humano como centro do processo social, político e econômico.

Na idade média, as coisas eram definidas como Divinas, ou seja, por determinação de Deus para a eternidade. O que provocava uma percepção da realidade como imutável e do exercício do poder como dom – ou se nascia ungido ou se morreria resignado em cumprir seu destino de servidão. As explicações medievais depreciavam a contribuição da natureza humana na construção das instituições e fenômenos políticos e econômicos. Com a superação da aceitação da explicação dogmática, de então, do que ocorria na sociedade, o conhecimento, construído pela filosofia e pela ciência, se firmou como o principal caminho para explicar o porquê das coisas, ficando a religião contida no marco do que se entendeu como espiritualidade.

Surge um novo império, o das idéias. Percebeu-se que eram as idéias humanas, e não o dom divino, que induziam os fenômenos que se materializavam na sociedade e se transformavam em fazer cotidiano transformando a cultura e a realidade ainda que, para a maioria das pessoas, desapercebidamente. A humanidade conquistou, assim, o direito ao pensamento, a liberdade de optar e elaborar seu próprio destino.

O socialismo, começa a se compor como filosofia e prática política – desde o Renascimento-Iluminismo, firmando o protagonismo humano na História – porém, distanciando-se da amarga tradição filosófica de Maquiavel e Thomas Hobbes (“O homem é o lobo do homem”), se constituiu como tributário das idéias de John Locke, Rousseau, entre outros, que admitiam o ser humano com uma natureza positiva e predisposta à cooperação, baseada na idéia, profundamente revolucionária, da igualdade, a partir da própria condição humana que emana entre seus indivíduos respeitando suas mais diversas possibilidades.

Estas idéias, produto da conquista do livre pensar, gestadas desde os intestinos da inquisição medieval, foram engendrando movimentos sociais, políticos e econômicos que eclodiram no século XVIII no marco precursor da Idade Moderna: A Revolução Francesa. Sustentada, não por acaso, nas idéias-valor da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Tripé filosófico que ganhou as ruas, derrubou a hegemonia da Monarquia, inventou a República, implantou-a como o sistema político adequado para uma sociedade de iguais, de comuns, e retomou a Democracia – dos gregos antigos, porém modernizando-a – como ideal de regime de governo.

Deste conjunto de elaborações e experiências humanas, surgiu a invenção e a possibilidade de reorganização da sociedade que simboliza o que ficou conhecido como Socialismo. Desde as comunidades cooperativas e sociedades comunais experimentadas na prática por Robert Owen e Saint-Simon, entre outros, mais tarde conhecidos como Socialistas Utópicos, que o sonho de uma sociedade livre, baseada na cooperação e nas relações econômicas e políticas entre iguais, em sua condição humana, se constituiu em Projeto de Sociedade.

O amadurecimento da elaboração socialista de pensar a humanidade, que vinha se acumulando, encontrou na genialidade de Karl Marx sua formulação econômica mais racional. Mais uma vez, a partir da sustentação destas novas idéias, assistimos as grandes revoluções sociais que marcaram o século XX, inauguradas em 1917 com a Revolução Russa.

Contudo, a cada passo, novos desafios que exigem mais elaboração, novas idéias e novas práticas. Nesta caminhada, surge no Brasil uma experiência rara, a de, partindo da tradição do Socialismo Científico – que influenciou profundamente a teologia libertadora, o novo sindicalismo e a academia progressista – e diante da derrota do enfrentamento armado a Ditadura Militar nos anos 60 e 70, construir uma nova referência do pensamento socialista, agora indissociavelmente fundido à idéia de Democracia.

Esta nova referência filosófica, a medida de sua lapidação foi gerando movimentos sociais novos, renovando os tradicionais, criando novas institucionalidades como as ong’s e produzindo expressões político-partidárias potentes. A medida da diversidade e da pluralidade institucional se capilarizou na sociedade brasileira uma nova percepção da política, que ainda se processa, resgatando a idéia do protagonismo humano na condução do destino da sociedade, da liberdade de pensar e da cooperação entre iguais, como seres humanos.

O PT foi a principal instituição criada por este movimento, na frente partidária. O Socialismo Petista passou então a ser a referência de discurso e de imaginário popular que tomava as praças e conquistava espaços públicos onde se supunha, os valores fundadores daquele Projeto de Sociedade começassem a ganhar traduções possíveis no cotidiano da vida prática da sociedade. Daí a referência à idéia de “processo”, ou seja, a passagem intencional e planejada de uma situação adversa para outra, desejada. Daí a febre de Planejamento Estratégico que vimos nos movimentos, ong’s e governos populares. Mas, “a vida é uma caixinha de surpresas”.

Aconteceu que a percepção da construção do Socialismo a partir da formação cultural de novos valores morais e novas referências éticas para balizar o comportamento dos indivíduos – muito trabalhado na década de 80 no que se chamou “formação política” (Instituto Cajamar, UNIPOP etc)– foi se diluindo e rareando à medida que a dimensão da luta política foi crescendo e exigindo cada vez maiores sucessos eleitorais.

Por um momento vivemos uma determinada tensão entre duas visões estratégicas: 1) conquistar os espaços de poder público a medida do avanço da transformação dos valores na sociedade e, 2) conquistar os espaços do poder público para facilitar a transformação dos valores da sociedade. Como sabemos, venceu a segunda.

Ora, se a estratégia de começar pela transformação dos valores, enfrentava obstáculos imensos justamente nas instituições do aparelho do poder público, a segunda opção estratégica, que experimentamos efetivamente, também revelou suas limitações.

Como para ocupar espaços públicos, sem avançar significativamente na transformação dos valores, era preciso assumir e honrar compromissos e alianças de acordo com as regras do jogo político, tal como jogado. Com o passar do tempo, e levados à exaustão de administrar o dia-a-dia dos espaços conquistados, fomos, enquanto partido, descuidando da formação de novos valores morais e éticos afinados com os pressupostos da construção do Projeto Petista de Socialismo. Passamos a focar exclusivamente da nossa manutenção, e reprodução, no poder. O que era “formação ideológica” reduziu-se à “capacitação política”, limitado à técnica de como ganhar eleições, como administrar etc – um processo que foi se tornando hegemônico na década de 90.

A tarefa de encontrar um ponto de equilíbrio entre as estratégias de construção do socialismo se tornou incontornável exatamente quando conquistamos o principal espaço do poder público, a Presidência da República. Foi aí que nossas lacunas morais e fissuras éticas se tornaram rachaduras que expuseram ao conjunto da nação problemas graves que ainda não enfrentamos a contento. É preciso registrar que já há algum tempo as fissuras vinham se alargando, tanto nas experiências públicas quanto nos movimentos populares, sindicatos e ong’s então contaminados, já que as relações políticas são sistêmicas.

Concluindo, não há reparos ao ideário do Socialismo Petista que seja maior do que a necessidade de apurarmos as estratégias para implementá-lo.

Se mantermos a perspectiva Socialista, a questão que se coloca é como avançar em sua construção, mesmo sob hegemonia de relações capitalistas, mesmo sob os valores hegemônicos do eleitorado, mesmo sob as condições dadas do Estado brasileiro e sua governabilidade, bem como, da cultura da sociedade. Quais as mediações possíveis sem perder o rumo de construção do Socialismo Democrático? Quais as tarefas que cabe a cada um e, cada uma das instituições do grande tecido político que construímos às duras penas até aqui, antes que se esgarce ainda mais? Quais as dimensões programáticas socializantes que já podemos implementar na educação, na saúde, na economia, na política e demais frentes de relações sociais, culturais, econômicas e políticas?

Para isso, é preciso perceber que o Socialismo é a possibilidade filosófica que longe da tradição de Maquiavel, faz da política não apenas fim mas também meio de transformações. A tendência ao exercício da política apenas para a reprodução de mandatos, feudos político e até famílias, tem chamado atenção para o fato de que surgem possibilidades, já em instalação, que podem distorcer por completo a razão em torno da qual nos reunimos e que serve ainda de referência para parcelas significativas da sociedade brasileira.

É preciso responder: o que, especificamente, e como, estamos fazendo para construir o Socialismo no espaço concreto em que atuamos como cidadãos e militantes políticos? Detalhando as dimensões programáticas e culturais, sem se desviar da tarefa da construção de novos valores morais e éticos.

O Socialismo, para passar de discurso e elaboração filosófica à projeto político, precisa se converter em moral, enquanto conjunto de valores sociais. E, tem que ser adotado como a referência ética para nortear o comportamento dos indivíduos. É preciso dar conta da política, mas não se satisfazer só com ela. Até porque não há antagonismo entre fazer política e construir o Socialismo. Portanto, se cairmos na divergência entre os valores que proferimos como discurso moral e a ética que efetivamente praticamos, estaremos optando por ser hipócritas.

Temos-nos um ideário pautado na igualdade o que é revolucionário do ponto de vista de valores. Uma visão de liberdade que não é da que pode tudo. Hoje vivemos este grande desafio que é não deixar cair à prática partidária na ortodoxia por ortodoxia. Pois existe uma ortodoxia mais audaciosa que é quando você assume o poder e não transforma, que é a política pela política como processo e instrumento de poder.

Como exemplo concreto, destacamos que este momento de sucesso na economia e de reforma política coloca duas possibilidades de alto potencial socializante que mereceriam esforços estratégicos transversais às frentes em que atuamos, quer nos governos, sindicatos, ong’s ou movimentos populares.

No plano econômico, envidar esforços que gerem um forte, diverso e amplo incentivo à cooperação como principal fonte de competitividade, já apontada na adoção de APL’s, na esfera do governo federal, que ainda precisam de maior envergadura de indução com ênfase para a Economia Popular e Solidária e seu potencial distributivo intrínseco.

No plano político, envidar esforços para a institucionalização de mecanismos concretos de Controle Social que aumentem significativamente o caráter participativo direto, em nossa democracia.

Em ambas possibilidades há implicações educacionais e organizacionais que remetem ao exercício efetivo de novos valores. Por exemplo: a Bolsa Família precisa passar a ser uma ferramenta estratégica para a construção cotidiana de valores socializantes, onde todos as frentes e segmentos institucionais de nossa expressão política tenham um papel estratégico.

Por exemplo: se trabalhássemos para que cada petista incorporasse em seu orçamento produtos da Economia Solidária, estaríamos construindo uma cultura de consumo consciente que traria conseqüências políticas, sociais e econômicas em grande escala, tanto por viabilizar economicamente empreendimentos que já são nossos parceiros de projeto, quanto como exercício de renovação de valores individuais – mas, infelizmente a máquina e institucionalidade partidária não é vista como ferramenta de construção de uma nova cultura.

Temos que disputar o poder político para transformar a Sociedade. Além de responder as questões conjunturais, traçar as estratégias de mudanças estruturais e culturais. Ser livre. A liberdade é a grande questão para a experiência do Socialismo. O desafio é construir novos valores com o nosso exemplo e com o nosso fazer cotidiano, pessoal e coletivo. Como o feudalismo e o capitalismo, o Socialismo só vingará como modo de produção quando se colocar também como de vida.