Fonte: www.ibase.org.br, por Cândido Grzybowski*

Este foi um FSM mais propositivo do que reativo. Os velhos temas que marcaram a nossa oposição à agenda da globalização neoliberal – o comércio, os tratados e a Organização Mundial do Comércio, além do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e do ajuste estrutural – começam a dar lugar a uma agenda claramente emanada das lutas por construção de alternativas: gestão responsável e solidária da água e dos bens comuns naturais; economia solidária; soberania alimentar; saúde e o enfrentamento do HIV-Aids; regionalismo dos povos; caminhos da esquerda, da reconstrução da política e dos Estados; Direitos Humanos. Começamos a produzir convenções dos direitos legitimados por lutas, sendo o mais emblemático o notável documento dos movimentos feministas em torno aos direitos sexuais e reprodutivos.

Desta vez, o centro de referência do FSM foi literalmente o coração geográfico da África. Para Nairóbi, no Quênia, confluíram milhares de ativistas de todo o continente africano, em sua enorme diversidade de povos e culturas. A eles(elas) se juntaram ativistas do mundo inteiro, num processo agregador e acumulador de forças sociais em escala planetária, que continua a surpreender por sua capacidade de mobilizar e penetrar em novas realidades e contextos, desde o primeiro FSM em 2001, em Porto Alegre.

O mais notável no processo FSM é exatamente a multiplicação horizontal, despertando esperança onde ela é mais necessária. As crescentes dificuldades práticas, que o espalhamento pelo mundo acarreta, rapidamente ficam relegadas a um segundo plano quando se pensa na energia que o FSM ativa nas pessoas que ainda não haviam vivido a experiência. E renova o ânimo de quem se engajou desde o início.

Estimo que entre 80% e 90% dos(as) quase 60 mil inscritos(as) no Fórum em Nairóbi participaram pela primeira vez de um evento como este. Talvez o segredo não seja fazer parte, mas se sentir estimulado pelo ambiente do FSM a ousar e a acreditar na própria capacidade de moldar o mundo, sonhando e engajando-se no aqui e agora, percebendo que nossas indagações são de milhares, que nossas buscas são também as buscas de tanta gente, que aquilo que fazemos contém algo de único e indispensável para que outros mundos sejam possíveis.

Mas falta ainda muita gente para o FSM ser verdadeiramente mundial. O mundo é maior do que imaginamos e invisibiliza muitas pessoas. Muitos(as) vivem sem eira nem beira, sem identidade e sem voz. Mesmo quando se organizam e expressam seus desejos e demandas, descobrimos que não estamos tão preparados assim para o diverso. A diversidade social e cultural existente no mundo desafia nossa capacidade de abertura. Os problemas de hoje e de ontem estão aí, ao alcance do olhar, mas parecem pedras de difícil remoção, seja pelo tamanho, seja pelas amarras nas estruturas e processos de dominação e exploração, geradores de desigualdade, exclusão e destruição.

O FSM, pelo próprio contexto de Nairóbi, deparou-se com o dilema de não ser capaz de incluir excluídos(as) e deixados(as) à própria sorte. O problema da participação dos setores condenados à pobreza extrema não é novo no Fórum. Mesmo no formato aberto, como no FSM 2005, em Porto Alegre, favelados(as) da cidade e região metropolitana não sentiram que aquele era o seu ambiente.

Em Nairóbi, porém, caiu a ficha. Afinal, mais de metade da população da cidade vive em favelas e lá está, talvez, a maior favela do mundo. A cultura política que brota do FSM, para ser transformadora e poder se expandir, precisa reconhecer o quanto as próprias sociedades civis estão profundamente atravessadas pela desigualdade. A organização e metodologia do FSM precisam enfrentar o desafio da inclusão popular, além de garantir o espaço aberto à pluralidade e diversidade.

Ao mesmo tempo em que nos perguntamos objetivamente sobre como enfrentar a tendência do FSM a ser dominantemente um espaço da elite dos ativistas mundiais, somam-se outras questões que nos fazem reconhecer o Fórum em Nairóbi como o fim de uma etapa e o início de outra.

Este foi um FSM mais propositivo do que reativo. Os velhos temas que marcaram a nossa oposição à agenda da globalização neoliberal – o comércio, os tratados e a Organização Mundial do Comércio, além do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e do ajuste estrutural – começam a dar lugar a uma agenda claramente emanada das lutas por construção de alternativas: gestão responsável e solidária da água e dos bens comuns naturais; economia solidária; soberania alimentar; saúde e o enfrentamento do HIV-Aids; regionalismo dos povos; caminhos da esquerda, da reconstrução da política e dos Estados; Direitos Humanos. Começamos a produzir convenções dos direitos legitimados por lutas, sendo o mais emblemático o notável documento dos movimentos feministas em torno aos direitos sexuais e reprodutivos.

É o FSM que se renova e dá as costas a Davos. Começamos, de maneira difícil, é verdade, a definir o verdadeiro canteiro de obras para fazer emergir outros mundos. O quarto dia do Fórum em Nairóbi foi o sinal de que estamos entrando em nova fase: foi o dia para se articular e apresentar propostas de ação. Isto vai certamente se refletir em janeiro de 2008, quando, pela primeira vez, de forma a dar vazão ao maior número possível de iniciativas e propostas – locais, nacionais, regionais, temáticas –, faremos um FSM descentralizado, mas articulado, tendo 24 horas para mobilização mundial, nos dias 26 e 27. Sentir-se parte desta aventura é praticar, de fato, a cidadania em escala planetária.

*Sociólogo, diretor do Ibase