Fonte: Carta Maior, por Natália Suzuki
Relação entre comunidades quilombolas e Companhia Vale do Rio Doce se agravou desde o descumprimento da mineradora em contrato de obras de benfeitoria. Quilombos apontam conseqüência negativa do empreendimento minerador na região onde vivem.
Durante reunião realizada pelo Ministério Público do Estado do Pará, na última terça-feira (30), representantes das 14 quilombolas de Jambu-Açu, no município de Moju (PA), propuseram a contratação de técnicos para avaliarem o impacto socioambiental causado na região pela Companhia Vale do Rio Doce. O objetivo é que sejam estabelecidas indenizações de acordo com os danos sofridos pelas comunidades e pelo meio ambiente. A empresa disse que vai avaliar a proposta.
Desde o final do ano passado, as relações entre a mineradora e os quilombos têm se acirrado. Em dezembro de 2006, os quilombolas bloquearam os três acessos que a CVRD utiliza para chegar ao seu canteiro de obras nas terras do quilombo Santa Maria de Tracuateau. A situação se agravou quando uma torre de transmissão da mineradora foi destruída pelos quilombolas.
As ações se deram como protesto ao descumprimento da Vale no contrato firmado com a prefeitura de Moju, o qual determinava a construção de uma casa comunitária para ensino agrícola e de um posto de saúde para as comunidades, além da recuperação de 33 quilômetros de estrada que cortam as terras quilombolas e a reforma de duas pontes, que foram danificadas por caminhões da mineradora. As benfeitorias seriam feitas como compensação pelas obras que estão sendo feitas pela CVRD na região onde vivem as comunidades.
Na sexta-feira passada (26), a Comarca do município paraense de Castanhal havia concedido uma liminar para que os quilombolas desocupassem o local. Mas, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Guajarina (PA), entidade que está acompanhando as discussões do caso, os manifestantes irão resistir à desocupação. Segundo a Irmã Maria Luiza Fernandes, da CPT, os quilombolas tiveram a garantia de representantes do governo de Ana Júlia Carepa de que polícia militar não seria acionada.
O prazo para a entrega das benfeitorias era até o final de novembro de 2006, mas apenas o posto de saúde está pronto. O contrato determinava que a cada dia de atraso seria cobrada uma multa de R$ 5 mil por dia da mineradora. De acordo com o promotor da Justiça, Adolfo José de Souza, numa reunião com os quilombolas, em 19 de dezembro, a CVRD se negou a pagar essa quantia que deveria ser repassada às comunidades em forma de cestas básicas e insumos agrícolas.
A Companhia Vale do Rio Doce foi procurada pela reportagem por meio da sua assessoria de imprensa, mas não manifestou sua posição até o fechamento desta matéria.
Impactos sócio-ambientais A tensão entre a empresa e as comunidades se deve ao fato de as obras da CVRD serem feitas em terras onde vivem as 674 famílias quilombolas, que juntas somam uma população de cerca de 4 mil pessoas, segundo dados da CPT. Na área, existem três minerodutos – dois em funcionamento, sendo um de caulim e o outro de bauxita, e o terceiro em construção – e há planos para a construção de outros quatro, além da implantação de uma linha de transmissão de minérios. As obras irão transportar a matéria-prima e a energia que alimentará a Alunorte, a futura Refinaria ABC (Aço Brasil-China) e duas outras refinarias, uma no município de Barcarena e a outra em Paragominas.
Segundo um relatório realizado pelo Ministério Público Federal, no Pará, em novembro de 2006, as atividades e as obras da mineradora têm impactos negativos sobre a população local. O MPF vistoriou trechos de terras de seis comunidades: Jacundaí, Conveição de Mirindeua, Nossa Senhora das Grãs, Santa Luzia, São Bernardino e São Manoel.
A avaliação do analista pericial do MPF, Benedito Evilázio da Silva, é de que o empreendimento da Vale atinge as plantações das famílias que residem ali. Outros prejuízos ambientais são previstos, como o desmatamento, a poluição do ar e da água, o assoreamento de igarapés e a perda da qualidade da terra.
A economia e a sobrevivência dos quilombos são baseadas no uso sustentável dos recursos da região. De acordo com estudos da organização internacional Fundação Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre, sigla em inglês), as comunidades vivem agrupadas em torno do traçado do rio Jambu-Açu do qual dependem para sua subsistência. Cíntia Beatriz Muller, pesquisadora do Cohre, havia verificado entre as comunidades que, em determinados dias, a água do rio se torna imprópria para consumo humano e há peixes mortos. A vegetação nativa também é uma importante fonte de renda e de alimentação para as famílias quilombolas.
O relatório do MP também destaca que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que autoriza a implementação de obras, refere-se a uma linha de transmissão de 138kV, cuja extensão seria de 64 quilômetros. Após a expedição do EIA, a linha a ser construída cortará uma extensão de 236 quilômetros.
Um outro problema apontado pelo Cohre é a exposição dos moradores ao vazamento de caulim. Segundo Müller, já houve dois vazamentos na região: um no quilombo Santa Maria do Traquateua e o outro em Juquiri. Não há informações sobre como os atingidos devem proceder nesses casos.
Segundo os quilombolas, a CVRD apenas negociou indenizações referentes aos prejuízos causados pelo terceiro mineroduto. “Representantes da CVRD que já chegavam portando as licenças expedidas pela SECTAM (Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Pará) e diziam que se as famílias não concordassem com a indenização que propunham, iriam acabar por não receberem nada, pois a CVRD já tinha autorização de órgãos governamentais para trabalhar naquela área”, descreve o relatório do MPF.
Em seu relatório, a pesquisadora do Cohre afirma que não houve qualquer consulta feita pela CVRD às comunidades sobre o empreendimento e seu passivo sócio-ambiental. O artigo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê os direitos dos povos sobre os recursos naturais existentes em suas terras e que as comunidades locais devem ser consultadas sobre a exploração dos mesmos.
Problema fundiário Atualmente, quase todas as terras das comunidades de Jamu-Açu foram tituladas como pertencentes às comunidades quilombolas. De acordo com a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares, nove comunidades tiveram suas terras reconhecidas. Ao todo, é uma área que reúne 362 famílias e abrange pouco mais de 16,6 mil hectares. As demais ainda estão em processo de titulação.
Contudo, a maneira como a titulação é realizada vem sendo alvo de críticas devido à morosidade e por provocar a fragmentação das terras e das comunidades. As titulações não proíbem a exploração da atividade mineradora.
“As pessoas que vivem nos doze povoados do município de Moju se auto-reconhecem como quilombolas. Elas têm plena noção de que são pessoas cujas condições sociais, culturais e econômicas os diferenciam da coletividade nacional, além disso, mantém uma série de regras próprias, tradicionais, de apropriação coletiva e tradicional do solo”, afirma Cíntia Müller. Segundo a pesquisadora, as comunidades não compreendem a demora do Instituto de Terras do Estado do Pará em conceder os títulos que ainda faltam.
“A morosidade na titulação das terras por parte do governo do Pará poderá acarretar danos irreparáveis ao sistema de organização social das comunidades uma vez que as mesmas possuem fortes laços de interdependência. Essa interdependência se dá nas relações entre as pessoas que vivem nos povoados entre si, com os recursos naturais e com seus referenciais históricos”, descreve Müller em seu relatório. Por causa dessa interdependência a pesquisadora explica que o processo de titulação de terra tem sido equivocado por criar uma divisão administrativa, que fragmenta as comunidades, cujo convívio tradicionalmente é como o de um grande grupo étnico. A solução apontada por ela é a titulação de todas as terras feita simultaneamente ou a demarcação de territórios maiores.
O relatório do Cohre descreve que “os quilombolas são sistematicamente surpreendidos com a entrada de pessoas estranhas em suas terras, o que eles identificam como um ‘invasão’. Essa invasão é acompanhada por trabalhadores que trazem tratores e material para a instalação do mineroduto e da Linha de Transmissão”.
Muller aponta em seu relatório que funcionários da mineradora foram insistentes ao abordar os quilombolas para que assinassem um documento intitulado “Instrumento particular de Constituição de Servidão, Transação, Quitação e Outras Avenças”, no qual consta a seguinte cláusula: “…a CVRD ficará emitida na posse da servidão ora pactuada, com livre acesso a, à área de servidão, e ainda praticar todos os atos e fazer, quando quiser ou entender conveniente, todas as obras necessárias à conservação e uso da servidão”.
De acordo com o artigo 17 da Convenção 169 da OIT define que qualquer transferência de direitos sobre as terras das comunidades deve passar por uma consulta coletiva, pois terras como as dos quilombos têm como característica a ocupação coletiva.