Fonte: www.ibase.org.br, por Iracema Dantas

Ibase – Qual foi sua participação nessa edição do FSM?

Luiz Dulci –Vim coordenando a delegação do governo brasileiro com cerca de 30 pessoas, todas convidadas por entidades organizadoras do Fórum. Fomos a debates sobre participação popular, combate à aids, economia solidária, cooperativismo, agricultura familiar, reforma agrária, direitos da mulher, promoção da igualdade racial e sobre outros temas.

O governo brasileiro sempre participou do Fórum a convite. Nosso objetivo é compartilhar nossa experiência, sobretudo das políticas sociais. Mas também queremos conhecer experiências de parcerias entre movimentos sociais europeus, africanos e asiáticos com os governos de seus respectivos países.

Ibase – Como avalia esse FSM?

Luiz Dulci – A realização na África foi muito acertada e demonstra que o Fórum é de fato mundial, não só nas suas causas, mas também na participação de movimentos. Tivemos mais de 400 lideranças brasileiras presentes, demonstrando que o compromisso do movimento social brasileiro com a mudança não depende de o FSM ser realizado no Brasil. Ficou provado que há um compromisso com as causas do Fórum. Além disso, achei o Fórum muito bem organizado. O que havia era um preconceito de que seria o caos por falta de logística e coisas do tipo. Mas funcionou muito bem, dentro do espírito do Fórum – que em nada se parece com um relógio suíço.

Ibase – O que acha das críticas ao FSM?

Luiz Dulci – O Fórum Social Mundial é um grande sucesso. Ao contrário do que dizem seus críticos, o Fórum já produziu resultados. Um grande resultado é que, com ele, a sociedade civil se tornou um ator não só social, mas também econômico e político. Hoje, nas negociações da OMC, a sociedade civil também está presente, se manifesta e pressiona. No debate sobre a reforma da ONU, também está lá. É claro que, como todas as experiências sociais, é bom que avance. Na minha opinião pessoal, de um indivíduo que sempre participou do Fórum, acho que o FSM pode se tornar ainda mais significativo. Mas de maneira alguma concordo que está em crise.

O Fórum deu aos movimentos sociais uma escala internacional e uma importância que não tinham. O capital já se globalizou há tempos; o poder político conservador também. Mas os movimentos sociais há poucos anos ainda estavam restritos às fronteiras de seus próprios países. Com o FSM, a sociedade civil internacional de fato se constituiu como sujeito e ator que tem peso nas decisões.

Governo algum do mundo pode deixar de considerar as opiniões e idéias que são debatidas aqui. Há pouco tempo, o governo conservador espanhol caiu, entre outras razões, porque se chocou com a opinião da sociedade civil espanhola em relação à guerra no Iraque. A sociedade civil queria uma saída pacífica e o governo conservador apoiou a solução militar… Outro exemplo: o governo francês tentou fazer uma reforma liberal da escola pública e a sociedade civil se insurgiu… Acabou que a reforma não prevaleceu. São exemplos que servem não apenas para governos específicos, mas para outros tantos que pensam em ignorar a opinião da sociedade civil e percebem a capacidade de resistência que podem ter que enfrentar. Mesmo os governos que fingem ignorar o FSM não podem ignorar os temas que aqui são debatidos.

Ibase – E como poderia avançar?

Luiz Dulci – O FSM deve avançar radicalizando na sua vocação, sem copiar modelos de outras organizações, que são importantes, mas não são da sociedade civil. O FSM não tem que copiar partidos políticos ou governos, mesmo os de esquerda. Sua vocação é outra: ele veio para dar visibilidade e força à agenda da sociedade civil. E essa agenda não se confunde necessariamente nem com a agenda de partidos de esquerda nem de governos de esquerda. Obviamente, existem relações. Mas o FSM trata de questões que, por sua própria natureza, podem demorar dez anos para conseguir um consenso; não pode estar preso a um governo que tem um programa para quatro anos. Não acredito também que o processo de decisão do Fórum deva copiar o processo de decisão de partidos políticos. Milhares de pessoas participam do Fórum pelo seu conteúdo, mas também pela sua forma, que permite, como num mosaico, reunir tantas idéias libertárias.

Ibase – Como ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, sua relação com os movimentos sociais é bem próxima. Mas qual sua avaliação sobre os espaços de participação da sociedade no governo Lula?

Luiz Dulci – No primeiro mandato do presidente Lula, avançamos muito na participação popular, sobretudo nas políticas setoriais. Governo e sociedade civil realizaram 40 conferências nacionais, precedidas de encontros em municípios e estados. Dessas 40 conferências setoriais – como meio ambiente, direitos humanos, saúde e economia solidária, reforma agrária, direito da mulher, igualdade racial etc – participaram 2 milhões de pessoas diretamente. Isso significa dizer que 2 milhões de brasileiros se envolveram diretamente na elaboração de políticas públicas.

Outro exemplo foi o fortalecimento dos conselhos, tanto dos que criamos como dos que já existiam. Juntos, governo e sociedade civil, deram um papel mais vigoroso aos conselhos na elaboração de políticas públicas. No caso do Consea, que reativamos no governo Lula, foi um papel fundamental para aumentar o financiamento da agricultura familiar. Todas as políticas públicas federais hoje têm conselhos, alguns com maioria da sociedade civil – como é o caso do Conselho Nacional de Juventude. São conselhos não apenas consultivos, mas que elaboram políticas em parceria com o governo, além de um acompanhamento e avaliação posteriores.

O que foi feito no primeiro governo, e foi muita coisa, não foi só a ampliação dos espaços de participação, foram conquistas concretas. São canais de participação nos quais os movimentos têm voz ativa e que produzem resultados. Governo e movimento não têm que concordar em tudo, mas tem que haver esse interesse real de debater. Mas estou convencido que podemos dar um salto de qualidade nessa relação, incluindo o debate internacional. Talvez o governo brasileiro tenha que se entrosar mais com os principais movimentos sociais do Brasil em termos das causas comuns no âmbito internacional. Há muita expectativa sobre o papel que os movimentos sociais brasileiros podem desempenhar e sobre o apoio que o governo brasileiro pode dar. Estamos dispostos a fazer isso, respeitando a autonomia dos movimentos e sem interferir em questões internas. Não sinto uma cobrança, mas uma expectativa forte de que tomemos mais iniciativa no mundo.

São resultados realmente significativos, mas acredito que nosso desafio agora é manter e ampliar essa forte participação social na definição das políticas setoriais, mas também precisamos ocupar um espaço novo neste segundo mandato. Precisamos criar mecanismos de participação também nas políticas gerais, como o PPA e orçamentos anuais. Com toda certeza, não podemos reunir 180 milhões de habitantes para discutir o orçamento da União, mas isso não significa a impossibilidade de um processo participativo. Temos grandes entidades nacionais e movimentos que poderiam fazer essa ponte.

Ibase – E como seria essa ponte?

Luiz Dulci –Da mesma forma que conseguimos na política externa incorporar o movimento sindical e as principais redes de ONGs na delegação brasileira que negocia na OMC, podemos construir com as grandes organizações brasileiras mecanismos de participação no ciclo orçamentário. Muitas questões importantes para a vida do povo brasileiro não são setoriais e só vamos avançar de verdade se tivermos mecanismos de participação geral.

O Brasil tem sociedade civil independente, autônoma e tem toda capacidade de participar das políticas públicas sem abrir mão dessa independência; colaborando e criticando, quando necessário. Essa é uma importante conquista da sociedade civil brasileira: relacionar-se com o Estado sem sectarismo e sem cooptação. É um modo criativo e independente, que é também a base doutrinária da participação.

Publicado em 2/2/2007.