Fonte: http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=1668, por Renato Rovai

Cândido Grzybowski, diretor geral do Ibase e membro do Conselho Internacional do FSM, em entrevista exclusiva a Fórum, faz uma avaliação do processo organizativo do FSM no Quênia e dos caminhos que o movimento deve seguir.

Qual a sua opinião a respeito do que viu até este momento no FSM do Quênia?

Primeiro é necessário fazer uma avaliação política do seu significado. É o primeiro grande evento na África que não acontece em Joanesburgo ou Durban, ambas localizadas na África do Sul, onde normalmente ocorrem os eventos no continente. Ou, alternativamente, em Senegal. Nunca se faz fora desse eixo. Já é um feito fazer o FSM no Quênia. É muito simbólico para o continente que o evento não seja na África do Sul, por exemplo. Ela tem um predomínio no continente, detendo mais de 50% do PIB de toda a África e acaba exercendo um subimperialismo real. Não foi fácil escolher o Quênia, porque sabíamos que teríamos um problema de logística.

O que, por sinal, estamos enfrentando. Mas o que nos levou a escolher o Quênia foi que eles conseguiram organizar aqui um fórum nacional, mostrando que tinham uma sociedade civil capaz de enfrentar o desafio de organizar um fórum mundial. E também a mudança de regime, de uma ditadura passaram para uma democracia e muitos ativistas criaram entidades e voltaram à militância, o que dava ao movimento algumas características semelhantes à nossa, no Brasil. No momento em que decidimos pelo Quênia, também levamos em consideração que o governo tinha mais apoio da sociedade civil. Hoje é um governo enfraquecido, com grandes escândalos de corrupção, e a relação dele com as entidades ficou mais tensa, o que se revela, por exemplo, no fato de as entidades não terem conseguido o visto livre para os participantes do FSM, no controle para a entrada de imprensa no país, sobretudo para os da área de TV. Então, há muita tensão no ar, porque o governo aqui está enfraquecido e tem medo. Ou seja, contávamos com uma certa facilidade e isso não está acontecendo.

Mas não lhe surpreende alguns detalhes talvez ortodoxos da organização?

Há a questão da pouca experiência na organização de um evento como este. E precisamos levar em consideração que o movimento daqui tem uma cultura de esquerda diferente, de democracia diferente, que não é bem a nossa tradição. Tem o problema da cooperação, é uma cultura muito impositiva. As igrejas também são muito presentes aqui. Muitas das entidades têm vínculos internacionais e se dá uma globalização de sociedade civil da pior maneira possível. Essas entidades formaram uma elite que circula nas Nações Unidas, no Banco Mundial, nas agências de cooperação etc. E os salários são muito corrompidos, no sentido de que são elevados, muito altos, e por isso as ONGs sofrem uma crítica muito dura. Isso para nós é difícil de entender. Talvez tenha uma certa separação no Brasil entre as ONGs e os movimentos. No Brasil as ONGs são criações de militância, de gente que se engaja. Isso tem de ser considerado.

Não te parece que o processo de construção do FSM aqui – que tem uma empresa de telefonia celular (Celtel) como patrocinadora oficial, por exemplo – deveria levar a uma reflexão maior do processo de construção do evento? Do seu problema de financiamento, por exemplo? Tem um problema de financiamento de um evento assim, ele está se tornando cada vez mais caro. E a gente tem evoluído da oferta de tudo, como foi nos primeiros fóruns de Porto Alegre, o auto-financiamento. Os indianos foram os que progrediram mais nisso, eles tiveram apoios que não apareciam, mas que foram fundamentais, como o de trabalho voluntário até na arquitetura do evento. Aqui tudo foi ou está sendo pago, aqui a cooperação corrompe, não no sentido de que se desvia dinheiro, mas ela cria uma cooperação servil e as pessoas para fazerem qualquer coisa, cobram. Aqui, os voluntários cobram. No Brasil o voluntariado recebia uma ajuda de alimentação, aqui ele recebe um pagamento além dessa ajuda. É o sentido de voluntário que não existe. O apoio da empresa (Celtel) nunca chegou a ser discutido. A gente está sendo pego de surpresa com essa história da empresa. Agora, fui um dos que defenderam a completa autonomia de organização para as entidades do Quênia, se fosse diferente, acho que não aconteceria o FSM. E se alguém fosse ao Brasil nos dizer como fazer o FSM, nós também não iríamos aceitar.

E quanto à pequena participação de quenianos, que reclamam do custo da inscrição, como que o senhor vê isso?

Baseado no FSM da Índia, eles criaram uma cobrança diferenciada. Isso é bom e diferente do nosso populismo do FSM no Brasil, onde a gente cobrou R$ 30 para todo mundo, independente de que parte do mundo viesse. Isso é sacanagem, sacanagem com o brasileiro, com o pobre índio que esteve lá ou com quem teve de bancá-lo. Isso gerou um déficit para a gente do Brasil. Aqui eles montaram uma escala de preços absolutamente em tudo, mas acho que erraram no preço a ser cobrado para a população local. Mas até isso é difícil de dizer. O preço de US$ 7 está sendo bastante questionado. Também tentaram organizar o acampamento da juventude, que sempre é auto-organizado, e estão cobrando US$ 10 por dia daqueles que o utilizarem, o acampamento está vazio. Tem coisa que não sabemos a extensão, só vamos poder saber no percurso ou depois deste FSM.

O senhor considera possível que o FSM seja auto-financiado?

É possível caminhar para um sistema de auto-financiamento. Em Porto Alegre, vamos imaginar não os 150 mil que compareceram no último, mas apenas 100 mil. Tivemos um custo de US$ 7 milhões. Se fosse dividido por participante, seriam US$ 70 por pessoa. Se dividido pela desigualdade do mundo, pelas desigualdades das organizações que participam, talvez poderíamos ter saído daquele FSM sem dívida. Quando eles propuseram os US$ 7 para a população local, ponderamos se não era muito. O que nos foi dito é que eles estavam fazendo um movimento local para que as entidades quenianas também conseguissem ajudar no custo do FSM. Eles queriam ter a sensação de também estar contribuindo para a realização do FSM em Nairóbi. Também é difícil saber se a reclamação não tem relação política. De qualquer forma, insisto em dizer que esses problemas organizativos são políticos, não acho que são problemas burocráticos.

E para o próximo FSM, quais são as definições até o momento?

Para o ano que vem, em vez de fazer um evento maior, definimos que vamos tentar estar juntos, em um número muito maior, mas de uma forma diferente. Durante dois dias vamos ter mobilizações pelo mundo, com cada país definindo sua pauta. Mas o pertencimento, a sensação de estarmos juntos, vai se dar pelo fato de que todas as manifestações vão se dar nos mesmos dias. Isso não vai resolver o problema de ter de se encontrar, mas pode fazer com que os próximos fóruns sejam mais temáticos. Essas manifestações, inspiradas na que aconteceu pela paz (em 15 de fevereiro de 2003, contra a invasão do Iraque), serão um outro tipo de Fórum. Tem uma indicação de que sejam manifestações pela dignidade, para alguns vai ser a luta contra a privatização da água, para outras vai ser luta por emprego, migração. Se conseguirmos 5 milhões de pessoas nas ruas já será um sucesso, se botarmos 10 milhões vai ser muito bom. Mas a meu ver o objetivo deveria ser ao menos uns 15 milhões nas ruas para nos dar uma sensação de que expandimos.

E quanto a 2009?

Bem, já existem candidaturas, vamos chamar assim. Há gente que defende que seja no Brasil, outros na Europa. Pessoalmente, gostaria que fosse na Ásia profunda ou no Leste Europeu. Fazer isso na Ásia profunda, quer dizer Filipinas, Malásia ou Indonésia seria muito bom. A meta deve ser chegar à China, onde vive um quarto da população do mundo. Mas sabe lá quando essa aproximação vai ocorrer. Mas se chegarmos à Ásia profunda, continuamos o caminho de expansão. Quantas pessoas estão aqui no Quênia? Não sei. Mas certamente 80% estão pela primeira vez num FSM e estão adorando tudo isso.