Fonte: Tomiko (thborn@nowtech.com.br), por Pedro Ribeiro de Oliveira

Diagnóstico

Hoje podemos ter certeza de que dentro de mais duas ou três décadas a Terra entrará em gravíssima crise ecológica, se, como tudo indica, continuar em vigor o modo de produção capitalista. O aquecimento global já é evidente e perceptível a olho nu. Outros pontos críticos que se anunciam a um prazo um pouco maior são a poluição das águas e do ar, a perda da biodiversidade, a exaustão do petróleo e outras fontes de energia, a acumulação do lixo (especialmente no mar) e a devastação das florestas e a perda da capacidade de auto-regeneração da Terra.

O capitalismo não conseguirá resolver esse problema porque está fundado sobre a instituição do mercado, e o mercado só consegue ver o mundo como se ele não fosse mais do que fonte de mercadorias. Ele só atua pela mediação do dinheiro: precisa transformar um bem ou serviço em valor monetário, para que seus agentes ajam motivados pelos possíveis ganhos monetários. (É evidente que os agentes do mercado são seres humanos e que agem também motivados por outros valores, mas aí já não se trata mais de agentes do mercado, e sim, seres humanos inseridos noutras instituições – família, estado, igrejas, clubes, escolas, etc). Esta mediação do valor monetário fica clara no recente documento de sir Nicholas Stern (ex-economista-chefe do Banco Mundial) para o governo inglês. Seu argumento em favor da drástica redução da emissão dos gases de carbono reside no seu custo: hoje, são US$350 bi (por ano, pelo que dá a entender o texto); daqui a dez anos, serão US$7 trilhões. O interessante é o debate sobre como transformar custo ecológico em valor monetário. A sugestão do documento é que se faça por meio de impostos: quem poluir terá que pagar um imposto específico alto. Isto aumentará seus custos, venderá menos e assim poluirá menos. Quem, ao contrário, usar fontes limpas ou pouco poluidoras, pagará pouco imposto, poderá vender barato e assim aumentar sua produção. E quem limpar a poluição (países pobres, que absorvem o carbono) ganhará créditos financeiros. Isso é o máximo que o mercado pode oferecer ao equilíbrio ecológico do planeta…

Suponhamos, na melhor das hipóteses, que essa solução seja globalmente aceita (embora prejudique muito a lucratividade das empresas, o desenvolvimento de países como China, Índia, Rússia e Brasil, e a hegemonia econômica dos EUA). No primeiro momento, o Estado aumenta impostos e os repassa a alguma agência internacional encarregada de combater o aquecimento, beneficiando os países pobres. No segundo momento, porém, os países ricos e suas corporações, que detém as tecnologias de ponta, podem aumentar os preços de seus produtos e serviços, porque os países pobres não poderão concorrer com eles. Teremos, enfim, o mundo dos ricos poluidores, e o mundo dos pobres – que farão a reciclagem do lixo dos ricos, tais como os sucateiros de hoje nas cidades…

E assim, o Planeta vai se recompor descartando uns dois ou três bilhões de pessoas (sei lá… imagino cerca de um bilhão de pessoas vivendo no mundo dos ricos, três vivendo da reciclagem e o resto pode morrer que não faz falta).

O conceito de modo de produção

Traço aqui apenas um lembrete teórico, para evitar uma interpretação equivocada do que tenho a dizer, porque se alguém pensa o “modo de produção” como um determinismo da economia sobre a sociedade, vai logo discordar (e eu quero que discorde entendo minha proposta). Por isso, explicito que o “modo de produção” de uma sociedade é definido pelas relações sociais de produção e pelo desenvolvimento da força produtiva (isto é, o conjunto das capacidades científicas, tecnológicas e materiais envolvidas na produção). No capitalismo, as relações sociais são determinadas pelo mercado e favorecem um enorme desenvolvimento da força produtiva, acumulando-a nas mãos de quem detém a propriedade (hoje importa muito a propriedade intelectual). O socialismo fracassou no seu projeto de transferir do mercado para o Estado a regulação das relações sociais de produção. As razões do fracasso são outro assunto; aqui basta dizer que ele não seria capaz de fazer face à crise ecológica, ainda que estivesse funcionando bem enquanto repartição social da riqueza, porque para funcionar ele precisava aumentar sempre mais as riquezas.

Temos, portanto, que pensar uma outra instituição reguladora das relações sociais de produção e outra forma de desenvolvimento da força produtiva.

Novas relações sociais de produção

Há que se superar o mercado na sua forma atual, como instituição reguladora das relações sociais de produção. O Mercado hoje significa: tratar todas as coisas como objeto de apropriação privada (e não somente aquelas que são fruto do próprio trabalho) e tudo poder ser objeto de transação de compra e venda, conforme contratos entre indivíduos formalmente livres e iguais. Penso que instituições como a “economia solidária” ou a “cooperativa” podem com vantagem substituir o mercado na regulação da produção. Elas tratam como mercadoria apenas aquilo que é fruto do trabalho, e não os demais meios de produção. Sua desvantagem, é que não têm longo alcance geográfico. São unidades de base territorial local, que exigem relações pessoais, de tipo comunitário ou quase. Para serem eficientes, exigem uma articulação em rede cuja extensão deveria ser planetária.

Ora, o que parece desvantagem nos termos atuais, pode ser visto como vantagem no momento da crise ecológica. A humanidade não poderá se dar ao luxo de transportes a longa distância, como a importação de ferro-gusa brasileiro pela China e a volta do navio carregado de camisetas de malha. O transporte de mercadorias tem um custo ecológico que só se justifica para bens de primeira necessidade que não possam mesmo ser produzidos localmente. Num sistema de “economia solidária” está fora de cogitação economizar no valor monetário se isso implica uma deseconomia ecológica. A coisa tem que ir por aí: unidades de produção locais, articuladas em rede, com baixo padrão de consumo material (em relação aos parâmetros atuais nos países ricos).

À primeira vista, falar em baixar o padrão de consumo pode assustar, mas, pensando bem, o problema só é real para os ricos. (Para estes é normal ter automóvel, viajar de avião, pagar quem lhes faça serviços domésticos, consumir produtos feitos noutras regiões do mundo, e muitos outros hábitos que a maioria da humanidade desconhece – embora hoje sonhe um dia ter…). O PIB mundial é hoje de US$35 trilhões. Estimando-se a população mundial em 6,5 bilhões, temos uma renda per capita anual de US$5.400, ou seja, aproximadamente R$1.750 por pessoa, por mês. Uma família de 4 pessoas teria hoje (num índice de gini mundial = 0) nada menos que R$7.000 mensais. Retirando-se impostos (30%) e poupança para investimento (20%), sobra uma renda média familiar de R$3.500. Dá muito bem pra se viver, principalmente se for possível contar com serviços públicos eficientes na área da seguridade social, educação, comunicação e transportes.

Maior desenvolvimento da força produtiva

A “revolução industrial” nos habituou a ver a força produtiva apenas no desenvolvimento tecnológico material, isso é, nos instrumentos humanos para a transformação da natureza. Mas é o desenvolvimento intelectual – científico e tecnológico – o mais importante. Hoje se fala de “sociedade do conhecimento” para indicar essa primazia do intelectual sobre o tecnológico no sentido estrito, mas quando um povo dito “primitivo” inventa uma forma de classificação das plantas que aumenta sua capacidade de fazer chás ou de curar doenças, ele também desenvolve sua força produtiva. É essa força produtiva imaterial que se trata agora de desenvolver. A humanidade usou e abusou das tecnologias de ação sobre (contra) a natureza, que estão causando a crise ecológica que se aproxima. Trata-se agora de desenvolver as forças produtivas imateriais, a partir de um modo de produção cooperativo ou solidário.

Isso significa, em primeiro lugar, o fim da apropriação privada dos avanços científicos e tecnológicos. Todo avanço intelectual deve ser socializado, tornando-se um bem coletivo. Assim como o lucro não é a meta das unidades de economia solidária, também não deve ser a meta dos pesquisadores e intelectuais: a recompensa de quem descobre e inova pode ser o prestígio, o “status” e outras formas sociais de honrarias. Uma instância política que substitua os Estados nacionais (Organismos internacionais? Agências mundiais? Fundações?) subsidiaria a pesquisa e a inovação tecnológica, como hoje se faz com as universidades.

O resultado é que os diversos e múltiplos grupos humanos, vivendo daquilo que produzirem com o mínimo desgaste ecológico, compensem seu relativamente baixo nível de consumo material por um alto nível e consumo imaterial: acesso à cultura, à arte, muito tempo livre, lazer, em suma: melhor qualidade de vida. Dado que isso terá um custo ecológico pequeno, será possível reverter a atual crise ecológica num novo equilíbrio entre a humanidade e o meio-ambiente. Mais que isso, dá pra se pensar numa real harmonia entre ser humano e natureza.

Uma nova atitude diante da vida

Leonardo Boff está trabalhando bem as virtudes para o século 21, por isso quero aqui apenas esmiuçar um pouco uma delas. Há também uma questão ética, no sentido de imperativos que se impõem a todos (que não vou nem de longe trabalhar), que vai bem além das virtudes a serem pessoalmente exercidas. É uma dessas virtudes, da compaixão, que vou apontar aqui, a partir de uma carta que escrevi pra minha filha Raquel, sobre a abstenção da carne como alimento.

Nós nos desumanizamos, como Humanidade, ao tratar os seres vivos como coisas e não como nossos semelhantes, companheiros de vida no Planeta (irmãos que têm voz mas não falam). Estou cada vez mais consciente disto. A questão é o que fazer.

Há uma dimensão pessoal, que é a relação amorosa com os animais. Mas o problema não é só pessoal, é estrutural. Somos 6,5 bilhões de seres humanos e é ingênuo pensar que iremos convencer toda essa gente a tratar bem os animais. O não comer carne é um testemunho, um sinal, mas seu impacto na economia é insignificante. Não é por causa de alguns milhões de vegetarianos (se é que os não-comedores de carne por opção chegam a tanto) que os animais passarão a ser bem tratados. Podemos tranqüilizar a consciência dizendo “eu faço a minha parte”, mas isso não muda praticamente nada o sofrimento dos animais que continuarão sendo criados, mortos e espedaçados pra alimentarem as outras centenas e centenas de milhões que comem carne. São Francisco foi um bom exemplo de irmandade com os animais, mas nem mesmo os franciscanos seguem o exemplo dele…

Ou seja, se não nos contentamos em ter a consciência tranqüila, mas de fato queremos o bem dos animais, temos que ter uma ação efetiva na estrutura do mercado que funciona tendo nossos semelhantes como simples objetos de transação lucrativa. Talvez daqui a uns tempos minha geração será vista como vemos hoje os escravistas: negociavam seres humanos como se coisas fossem. Uns poucos que não quisessem ter escravos, para dar um testemunho cristão, não faziam nenhuma diferença prática pros escravos.

É esta a nossa encruzilhada. Acabamos de amarrar o próximo encontro de Fé e Política tendo por tema “Pelos caminhos da América Latina, uma nova Terra”. Essa “nova Terra” tem que ser uma Terra onde a vida, todas as vidas, seja valorizada. Nova Terra não é sinônimo de “nova sociedade”, como falavam as CEBs até pouco tempo. O salmo 104 diz que o Espírito criador “renova a face da Terra”, portanto mexe em muito mais do que a espécie humana.

Enfim, temos que caminhar por dois lados: uma atitude pessoal de amor à vida, que se for verdadeira deve se refletir na compaixão (no sentido que diz o Leonardo: “sentir com”) e portanto nas atitudes de respeito a todas as vidas, humanas e animais (e, por que não? vegetais). E uma militância política, que supere o mercado como forma de regulação da produção, e crie uma forma mais humana de relação entre os seres humanos e entre seres humanos e a natureza. Este é um trabalho teórico (que eu me sinto vocacionado a fazer) e um trabalho prático, na sociedade e na política (que não é meu forte, mas que eu estimulo que outras pessoas façam). Em suma, é mãos, cabeças, bocas, e corações à obra!

O autor é sociólogo, lecionou na Universidade Católica de Brasília e hoje retornou a sua terra Juiz de Fora onde trabalha na universidade local. Escreveu este texto para um grupo de cristãos, comunidade Emaús, e faz parte de sua contribuição para a reunião anual.