Fonte: Agência Carta Maior, por Jonas Valente

A inexistência de mecanismos institucionalizados que contribuam para driblar o anonimato e rastrear criminosos dificultam a apuração dos crimes. País é quarto do mundo em pornografia infantil na rede.

De janeiro a setembro deste ano, foram feitas 163 mil denúncias de crimes de violações de direitos humanos na internet. Deste total, 62 mil (38%) são referentes à disseminação e troca de pornografia infantil. São alvos de denúncias também a apologia e a incitação de crimes contra a vida (22%), maus tratos contra animais (12,8%), neonazismo (10,8%) e intolerância religiosa (6,4%). Os dados são da ONG SaferNet, que mantém uma central de denúncias sobre crimes cibernéticos desta natureza. No intuito de conter este quadro, o governo federal pretende desenvolver um plano nacional de combate à pedofilia e à pornografia infantil na internet. O tema foi discutido nesta segunda-feira (2) na reunião do grupo de trabalho que trata do assunto no âmbito da Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, coordenada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH).

O debate traz a tona o chamado ‘outro lado’ da internet. “A rede mundial de computadores tem dado passos para oferecer mais informação à população, mas infelizmente tem servido também à disseminação de crimes de ódio, racismo”, comentou o secretário especial dos direitos humanos, Paulo Vannuchi. Segundo Thiago Tavares, presidente da ONG SaferNet, a pornografia na web assumiu uma dimensão “assustadora”, pois as pessoas usam a rede tanto para distribuir quanto para produzir estes conteúdos. O fenômeno se beneficia do caráter supranacional que a rede mundial de computadores possui.

“Ciberespaço não segue fronteiras nacionais. Hoje é muito fácil criminoso brasileiro hospedar página nos EUA com fotos de criança vitimada em um país da Ásia e ser visto por alguém na França”, diz Sérgio Suiama, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo. Este ambiente, acrescenta a subsecretária dos direitos das crianças e adolescentes da SEDH, Carmen de Oliveira, facilita o trabalho dos criminosos, que têm mais condições de manter o anonimato e dissipar os vestígios dos crimes. Uma pessoa pode criar um e-mail ou perfil falso, criar um sítio e ao menor sinal de represália trocar a hospedagem para outro provedor em qualquer lugar do mundo.

O Brasil tem sido um dos ‘campeões’ deste ranking. O país está em quarto lugar no ranking mundial de páginas virtuais de pornografia infantil e pedofilia, atrás apenas de EUA, Rússia e Coréia, nessa ordem. No país, a grande maioria das cenas de sexo explícito com crianças é veiculada no Orkut, site de relacionamentos do provedor Google.

Na reunião realizada nesta segunda, dois pontos apareceram como fundamentais para a existência deste quadro: a inexistência de mecanismos institucionalizados que contribuam para driblar o anonimato e rastrear criminosos e as dificuldades na apuração deste tipo de delito. Hoje, um dos principais obstáculos às investigações de crimes desta natureza está no fato de não haver uma obrigação por parte dos provedores de manter as informações sobre os acessos aos sítios que disseminam conteúdo pornográfico envolvendo crianças. Todo computador que se conecta à rede recebe um número identificador, chamado de IP (Internet Protocol), uma espécie de impressão digital da máquina. Como os provedores registram o acesso a cada página virtual por meio desse número, é possível localizar os computadores utilizados para praticar tais crimes.

Representantes do governo, da sociedade civil e do Ministério Público defenderam a aprovação de obrigações legais para que os provedores mantenham estas informações por um período mínimo de tempo, entre seis meses e um ano. A medida foi caracterizada como fundamental para melhorar as condições de investigação sobre este tipo de crime. “Hoje, se é feita uma denúncia, o provedor tira a página do ar; e quando há investigação perdeu-se o rastro do crime”, explica a assessora parlamentar Mariana Mei, que participou da reunião representando a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

De acordo com estudo realizado pela Comissão, há cerca de 500 projetos de lei envolvendo crimes na internet. A maioria deles dispõe sobre esta regulamentação do armazenamento dos dados de cadastro e conteúdo disponível na rede. Outros temas recorrentes nas propostas de lei são aumentos na pena e criação de mecanismos de controle por parte dos pais sobre o conteúdo acessado pelos filhos. “A nossa legislação, do ponto de vista penal, prevê quase todos os crimes. Por outro lado, é praticamente inexistente em relação à responsabilidade dos provedores, seja de acesso ou de conteúdo. É essa lacuna que precisamos resolver”, defendeu Sérgio Suiama.

Segundo representantes do governo, o objetivo do plano nacional é congregar um conjunto de ações que resolvam as lacunas e obstáculos à apuração dos casos. A idéia é reforçar o sistema de recebimento de denúncias, hoje feito pela ONG SaferNet por meio do sítio www.denunciar.org.br. Segundo Thiago Tavares, as denúncias recebidas pelo site já resultaram na identificação de mais de cinco mil suspeitos de troca de pornografia na internet. Além destas ações, estão sendo pensadas medidas também para a prevenção do crime, sobretudo campanhas educativas que sensibilizem a população através de conteúdos que estimulem o uso saudável da internet. A proposta de plano deve ficar pronta em novembro, quando será submetida à consulta pública.

Orkut Um caso emblemático do combate à pornografia na internet é a disputa entre o Ministério Público Federal e a Google, empresa responsável pelo sítio de relacionamentos Orkut. O sítio possui hoje 15 milhões de usuários, sendo 12 milhões (70%) brasileiros. Das denúncias recebidas pela SaferNet, 150 mil (90%) são relacionadas ao sítio. Desde 2005 a justiça tenta obter a cooperação da subsidiária da Google no Brasil (clique aqui para ler a cronologia do caso), mas a empresa se nega a repassar informações sobre os cadastros alegando que estas estariam sob responsabilidade da matriz estadunidense.

“No direito vale o princípio de que a lei do local rege os atos. Por conseguinte, as informações hospedadas nesses servidores dos Estados Unidos estão sujeitas às leis daquele país”, alegou o procurador da Google Inc. no Brasil, Durval Goyos, em entrevista coletiva realizada em 25 de agosto.

A posição da Google acirrou o conflito com o Ministério Público de São Paulo, que ajuizou Ação Civil Pública pedindo o cumprimento das ordens judiciais anteriores (que envolviam o repasse de informações sobre cadastrados) e estipulando multa de R$ 50 mil por dia de descumprimento. “Nós defendemos uma posição firme, de que a Google deve responder civil e criminalmente pelos serviços prestados no Brasil pra brasileiros, especialmente o Orkut. Estamos falando hoje de um dos serviços mais populares do Brasil e que a empresa deve ter mecanismos adequados pra receber as reclamações dos usuários e pra dar uma resposta rápida e eficaz, seja aos usuários, seja à Justiça”, afirma Sérgio Suiama.

A Justiça Federal de São Paulo decidiu favoravelmente à ação do MP de São Paulo. A Google Inc. tem até o início deste mês para apresentar sua defesa. A disputa não tem caráter somente simbólico, mas envolve o ambiente onde a parte majoritária dos crimes de troca de pornografia infantil acontece na rede.