Fonte: Maurício Hashizume, Carta Maior
A relação entre a identidade de povos originários com as demandas econômicas, sociais e políticas do conjunto das populações mereceu destaque durante a IV Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais.
Por trás da tragédia social concreta e diária do modelo neoliberal – que consome vidas tanto nas violentas ruas das metrópoles como nos rincões rurais e nega direitos humanos básicos a seres humanos – existe uma batalha ideológica fundamental que vem sendo travada entre intelectuais da América Latina e do Caribe. Levantes populares em diversos países – México, Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina, entre outros – despertaram a atenção de estudiosos para uma questão complexa e fundamental que ocupa um espaço cada vez mais privilegiado nas discussões continentais. A relação entre a emergência da afirmação das identidades dos povos originários com as demandas econômicas, sociais e políticas do conjunto das populações mereceu destaque durante a IV Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais, organizada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) na capital fluminense.
O caso do Equador pode servir de termômetro para aferir o grau de complexidade do tema. A pesquisadora Ana Maria Larrea, do Instituo de Estudos Equatorianos (IEE), apresentou algumas os dilemas da construção de um projeto político que possa conjugar a questão étnica com o recorte de classe social. Administrações locais do Pachakutik – a representação política dos movimentos indígenas equatorianos – não conseguiram efetivar a interculturalidade na prática e as estruturas do Estado não foram transformadas, pontuou Ana Maria durante o painel “Neoliberalimo e conflito na América Latina: os movimentos sociais e os desafios emancipatórios”, ocorrido nesta segunda-feira (21). A experiência do Equador mostra como permanece em aberto a definição da articulação necessária para combinar a questão estrutural com o componente cultural.
O governo de Evo Morales, do Movimento Al Socialismo (MAS) na Bolívia não é exclusivamente indígena, mas de superação da agenda colonial, assevera o boliviano Carlos Vacaflores, da Comunidade de Estudos Jaina-Tarija. O país, segundo ele, vive dividido entre essa e outra agenda – a da elite tradicional boliviana – que carrega agora a bandeira das autonomias regionais.
Para Edgardo Lander, professor de ciência política da Universidade Central da Venezuela (UCV) (leia entrevista e matéria com Lander publicada durante o IV Fórum Social Mundial), o contexto atual de mercantilização e de guerra permanente – que destrói diretamente as condições materiais de sobrevivência humana – não permite desligar a questão da autonomia dos povos com a disputa pelo poder. Ele chama atenção também para a heterogeneidade dos movimentos sociais latino-americanos, com formas organizativas completamente diferentes.
A continuidade do “capitalismo dependente” (definição do falecido sociólogo Florestan Fernandes) na América Latina e Caribe, de acordo com Roberto Leher, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), está assentada em três grandes eixos: a ofensiva ideológica pelos meios de comunicação; a gestão da pobreza e o controle social dos movimentos sociais. Ele defende a articulação de um “síntese convocatória superior” às já existentes no Brasil que possa unir as bases dos movimentos sociais na luta pela emancipação.
Na opinião de Ana Ester Ceceña, da Universidade Autônoma do México (Unam), é necessário que, antes de mais nada, o próprio neoliberalismo seja desvendado. Na visão dela, trata-se de uma estratégia – certas modalidades que reorganizam o sistema para reforçar a hegemonia dos EUA – de reprodução do capitalismo. “Não é nem uma nova fase”, adiciona. No entanto, a identificação dos problemas e os desafios da emancipação são muito variados. Dentro da dimensão econômica, poder-se-ia dizer que as corporações transnacionais são o principal problema. De outro ponto de vista, o poderio militar também pode ser considerado o problema. “Ambos fazem parte do mesmo núcleo. São diferentes formas de manifestação para controlar a população mundial. Por isso, é preciso enfrentar a batalha do pensamento, das concepções”.
“A repetição da história do capitalismo não nos fará sair do capitalismo”, defende Ceceña. Para ela, é preciso recuperar outras histórias e processos distintos próprios de organização política. Por isso, para pensar a relação entre movimentos sociais e a política institucional, ela indica três canais: pensar o mundo de um modo diferente, criar novas maneiras de fazer política e desinstitucionalizar o poder.