Fonte: Verena Glass , para Carta Maior

Entre 2005 e 2006, conflitos envolvendo a luta pela terra geraram processos criminais contra mais de 80 indígenas em vários Estados, de acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário. Números preocupam defensores e Funai.

Um levantamento recente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) junto aos grupos indígenas que acompanha política e juridicamente em todo o país resultou em uma lista preocupante: entre os anos 2005 e 2006, mais de 80 indígenas foram processados criminalmente em decorrência de conflitos envolvendo a luta pela terra.

O Cimi listou processos contra 35 Xucuru, 11 Pipipã e Kambiwá e um Truká em Pernambuco, 15 Tupinikim e Guarani no Espírito Santo, 9 Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, e 8 Kaingang em Santa Catarina. A esses casos, a procuradoria geral da Funai acrescenta 23 Cinta Larga em Rondônia, e a advogada Michael Nolan, especialista em direitos humanos, um Pataxó na Bahia.

A conexão destes casos à luta pela terra tem o objetivo de diferenciá-los dos processos que correm em função de delitos, como envolvimento com drogas, assassinatos, estupros, crimes ambientais etc, sobre os quais as organizações não têm controle, mas que aparentemente também tem aumentado de forma preocupante nos últimos anos.

Nos casos relacionados à questão da terra, inoperância ou inabilidade dos poderes públicos têm sido recorrentes na raiz dos delitos que levaram aos processos, aponta o Cimi. O caso dos 35 Xucuru de Pernambuco seria um exemplo.

Localizado dentro da Terra Indígena Xucuru no município de Pesqueiras, o Santuário de Nossa Senhora das Graças sempre atraiu um grande número de fiéis, o que levou a prefeitura e a Igreja, apoiados por fazendeiros locais, a propor a criação de um pólo de turismo religioso na área. A proposta, rejeitada pela maioria das lideranças Xucuru, contou com o apoio de um pequeno grupo encabeçado pelo índio Expedito Cabral, conhecido como Biá. Em fevereiro de 2003, uma tocaia promovida por Biá – na época funcionário da prefeitura – que visava o cacique Marcos Xucuru acabou vitimando dois outros jovens, o que gerou uma ação de retaliação contra o grupo do mandante, cujas casas foram queimadas e estes expulsos da Terra Indígena.

“Na data do atentado, a comunidade Xukuru, indignada, deslocou-se para a Vila de Cimbres [onde morava o grupo de Biá] para cobrar satisfação dos autores dos crimes e de seus apoiadores. Foram recebidos a tiros e quatro indígenas ficaram feridos. Ninguém está sendo processado por isto”, afirma o Cimi. Para a entidade, o conflito foi gerado diretamente pela tentativa de interferência do poder público e seus aliados nas terras indígenas.

Outro erro trágico marcou o caso dos Guarani-kaiowa do Mato Grosso do Sul, processados pela morte de dois policiais na aldeia Passo Piraju, em abril deste ano. Numa região fortemente marcada por conflitos de terra e perseguição dos indígenas por parte de fazendeiros e políticos locais, a entrada de policiais à paisana na aldeia – segundo os índios, os PMs dispararam vários tiros para o alto – no dia 1o de abril suscitou uma reação alegadamente de defesa, que resultou na morte dos agentes.

Os demais casos são menos complexos. Em dezembro de 2005, um bloqueio de estrada para pressionar o governo a retirar não-índios da terra indígena Toldo Chimbangue II, de 975 hectares, em Chapecó, resultou em prisões e posterior processo. Em setembro passado, os Pipipã e Kambiwá do semi-árido pernambucano fizeram a retomada de uma área reivindicada por eles, a fazenda Fonseca, de 3,6 mil hectares. Para manter a ocupação, os indígenas saquearam caminhão de alimentos da Funai.

Já o cacique Truká Aurivan dos Santos foi acionado criminalmente pelo processo de luta de retomada das terras tradicionais dos Truka e pela homologação da Ilha de Assunção, em Pernambuco. Por fim, no último dia 9, quinze indígenas Tupinikim e Guarani foram presos na cidade de Aracruz, Espírito Santo, por supostamente estarem retirando madeira de uma área de litígio, reconhecida como terra indígena pela Funai, mas atualmente ocupada pela empresa Aracruz Celulose.

Preocupação Segundo o advogado do Cimi Paulo Machado, um dado concreto da intensificação do envolvimento da Justiça penal com casos relacionados de alguma forma a conflitos territoriais é que mais de 50% da carga de trabalho do departamento jurídico da entidade, cujo foco é o apoio das lutas pela garantia dos direitos históricos dos povos indígenas, passou a ser na área criminal.

“Antes, nosso trabalho se centrava em disputas judiciais; de uns cinco anos para cá, no entanto, os processos estão migrando para a área criminal, hoje são cerca de 50% dos casos”, afirma Machado.

Para a advogada Michael Nolan, especializada em defesa dos direitos humanos, existe uma relação direta entre o crescimento do número de processos e o aumento das lutas indígenas pela terra, mas também estão surgindo mais situações onde ocorre a criminalização dos indígenas. Além disso, o problema seria aprofundado pela falta de preparo da Justiça de lidar com indivíduos de uma cultura diversa.

“Como o juiz ou o promotor lida com um Guarani que mal fala o português e que desconhece a justiça dos brancos? Mas no global, é complicado adotar procedimentos de branco para alguém que não entende esta cultura”, avalia Michael. Segundo ela, um exemplo claro da interferência branca nefasta foi “jogar índio contra índio” no caso dos Xucuru em Pernambuco.

Existe no Brasil um mecanismo legal pelo qual a Justiça aceitaria formas culturais dos próprios indígenas de resolver pendências penais, assim como está garantido aos índios infratores a prisão no posto indígena da Funai mais próxima de sua aldeia. Estes mecanismos dificilmente são adotados, afirmam os advogados (“Só na cadeia de Dourados estão presos cerca de 70 indígenas condenados pelos mais variados delitos”, diz Machado).

Segundo o procurador geral da Funai, Luis Fernando Vilares, em princípio, quando o índio não compreende a conduta ilícita que lhe é imputada, não deveria ser punido. Mas essa norma é adotada mais em casos de crimes ambientais, como pesca, caça ou extrativismo não permitidos pela lei dos brancos, mas que é parte da cultura e dos hábitos indígenas.