Fonte: Maiana Diniz, para Carta Maior
Participantes da I Conferência Regional das Américas contra o Racismo pediram políticas de longo prazo que atinjam as raízes do problema e maior atenção governamental. Para relator da ONU, polícia e Justiça discriminam no Brasil.
“Na América, o racismo foi ampliado e por isso não podemos combatê-lo com sentimentos. A escravidão e o tráfico negreiro foram as maiores tragédias da humanidade e a primeira forma de globalização”. O discurso contundente do relator especial da Organizações das Nações Unidas (ONU) sobre as formas contemporâneas de racismo, Doudou Diène, reflete a tônica dos debates travados na I Conferência Regional das Américas contra o Racismo, que agregou representantes governamentais de 21 países e de entidades da sociedade civil de 35 países da América Latina, Caribe, América Central e América do Norte, entre os dias 26 e 28 de julho, na capital federal.
A instalação de órgãos como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), pioneiro no acompanhamento e realização de ações afirmativas governamentais na América do Sul, foi lembrada em vários momentos durante a conferência, mas os participantes, em geral, pediram empenho maior dos governos. “Apesar de termos avançados nos assuntos relacionados à questão racial, a luta contra o racismo ainda não é uma prioridade para os governos de todos os países, por isso não liberam todos os recursos necessários. Os Estados, incluindo o brasileiro, acham que a questão do combate ao racismo é importante, mas não prioritário. Tomam-se decisões para adotar políticas públicas de combate à discriminação, mas recursos necessários não são incorporados”, coloca Epsy Campbell, deputada da Costa Rica e representante do comitê internacional da conferência.
Sergia Galván, do Coletivo Mulher e Saúde da República Dominicana e membro da Rede de Mulheres Afro-Latinas e Afro-Caribenhas, cobra o comprometimento da ONU e de seus Estados-membros na construção de uma Convenção Interamericana de Combate ao Racismo. “Nos últimos anos foram criados mecanismos de promoção da igualdade racial, a questão está posta na agenda pública, há um crescente processo de articulação dos movimentos sociais em torno do assunto e o fortalecimento das mulheres negras no debate. Mas quase não existem avanços nos níveis governamentais. Não há um compromisso real em transformar o problema em políticas públicas”, complementa.
Segundo o relator Diène, que é senegalês, o mundo vive um momento delicado, desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, nos EUA. Na visão dele, o mundo assiste a um recuo da afirmação dos Direitos Humanos. Por isso, argumenta o representante da ONU, o reconhecimento do racismo como construção de profundidade histórica se tornou ainda mais fundamental.
O caso brasileiro mereceu destaque no Relatório de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e todas as formas de discriminação, lido pelo próprio relator durante a conferência. “O racismo é profundo na sociedade brasileira e para erradica-lo é necessária uma ação em longo e não curto prazo. De acordo com as minhas informações o combate ao racismo no Brasil é muito recente e eu espero que haja mudança, mas primeiro é preciso ter vontade política”. Apenas a vontade política, no entanto, não é suficiente na opinião dele. “É necessário que a população se mobilize e tenha as metas traçadas no relatório e na conferência como uma forma de ação. A vontade política não supre essa necessidade. É necessário que o povo se mobilize e faça pressão”.
No relatório, Diène aponta ainda a polícia e a Justiça brasileiras como executoras das formas mais notórias e profundas de discriminação no País. “O processo de combate ao racismo que o presidente Lula iniciou deve ser expandido para essas instituições, com o objetivo de dar fim a todos os problemas sociais, políticos e econômicos do País”, sustenta. “Há três maneiras de combater o racismo: de forma legal, política e cultural. A política se expressa na vontade de combater o racismo. E isso o Lula já fez. A legal é desenvolver leis de combate ao racismo dentro do país e a terceira seria combater o racismo de maneira cultural, desde a raiz, ou seja, de forma ética”, complementa.
A ministra Matilde Ribeiro, da Seppir, apresenta a própria criação da secretaria como um avanço, mas concorda que o Brasil ainda está engatinhando para acabar com o racismo. “Não podemos cruzar os braços diante de desigualdades históricas, portanto vale a pena, sim, investir em ações afirmativas, vale a pena, sim, investir na somatória de cotas sociais e raciais”, assinala a ministra, defendendo políticas públicas específicas a grupos que sofrem discriminação há mais de cinco séculos, como no caso de negros e índios.
“Acredito que ainda há muita pressão dos grupos conservadores para que os governos não liberem recursos para projetos de igualdade racial, porque os conservadores têm cotas de poder importante em vários países, incluindo o Brasil”, analisa a deputada Epsy, da Costa Rica. “É preciso que todos entendam que políticas públicas contra o racismo contribuem com a paz, o desenvolvimento e a governabilidade. Portanto, geram benefícios para toda a população”.
Documento final
“A Conferência reconheceu que o momento é propício para compilar as melhores práticas na região e compartilhá-las. Os povos dos países americanos, em conjunto, atribuem à sua constituição multiétnica e multicultural um caráter positivo, de contribuição para a convivência humana, para a promoção dos direitos humanos, construção de culturas de paz e de respeito mútuo bem como de sistemas políticos democráticos”, expressa trecho inicial do documento, lido pela ministra Matilde Ribeiro.
O documento traz encaminhamentos importantes, como a necessidade de ações afirmativas preventivas nas áreas da educação e do sistema jurídico, eliminando à violação dos direitos principalmente da juventude negra. Propõe ação governamental nas fronteiras e áreas de trânsito na defesa dos direitos dos imigrantes. E demanda o desenvolvimento de metodologias de aferição dos resultados e planos, programas e políticas de promoção da igualdade racial.
O texto final da 1ª Conferência Regional das Américas também presta uma homenagem às vítimas do colonialismo e da escravidão transatlântica, e repudia todas as formas de racismo atuais. “Que essa memória constitua para cada grupo vulnerável uma fonte de energia inesgotável para persistentes lutas contra as novas modalidades de xenofobia, racismo e discriminação e contra as formas contemporâneas de escravidão. A Conferência convocou os protagonistas da luta contra a discriminação racial (…) a darem novos impulsos aos consensos alcançados para o reconhecimento da diversidade e da igualdade nas Américas, por meio da solidariedade e da cooperação, da paz e da democracia”, conclui o texto.