Fonte: http://agenciacartamaior.uol.com.br/

Por: Iberê Thenório

É comum ações de libertação encontrarem pessoas que já foram resgatadas anteriormente. Trabalhadores voltam a seus municípios e encontram a mesma situação que os obrigou a deixar sua casa. Projetos têm atuado para gerar emprego e renda, mas ainda são insuficientes.

Apesar de receberem verbas rescisórias contratuais e seguro-desemprego no momento da libertação, trabalhadores submetidos à situação análoga à escravidão e a trabalho degradante dificilmente estarão livres de sofrer novamente a situação. Para se ter uma idéia do que isso significa, na última libertação realizada pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no Tocantins, pelo menos quatro dos 75 trabalhadores que ganharam liberdade já haviam sido resgatados anteriormente em ações semelhantes.

Diferentemente do que aconteceu em 1888, quando escravos libertados não receberam nenhuma ajuda do governo federal (a indenização foi dada a donos de escravos), hoje o trabalhador pode voltar para casa com algum dinheiro. Ao ser resgatado pelos auditores do MTE, o trabalhador recebe do empregador todos os benefícios trabalhistas, como se ele fosse um empregado registrado. O valor é calculado sobre o salário prometido pelo “gato” no momento do aliciamento. Assim, tem direito aos salários atrasados, férias vencidas e proporcionais, décimo terceiro, aviso prévio e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Além disso, o trabalhador recebe três parcelas de R$ 350,00, referentes ao seguro-desemprego.

Para garantir a volta dos trabalhadores às suas casas, fica sob a responsabilidade do fazendeiro pagar todas as despesas da viagem de seus empregados até o local onde foram aliciados. Se o libertado não tiver carteira de trabalho, caso muito comum, o MTE confecciona um documento provisório, para possibilitar o recebimento dos benefícios. Em alguns casos – que têm se tornado mais freqüentes nos últimos anos – os trabalhadores também recebem indenizações através de ações civis movidas pelo Ministério Público do Trabalho.

Durante um tempo, é possível viver com o dinheiro obtido na libertação. Muitos compram um pequeno lote de terra, constroem uma casa simples, mas não conseguem emprego ou outra fonte de renda. A proposta para trabalhar em uma fazenda distante, com promessa de bons salários, é tentadora. É aí que o ciclo da escravidão recomeça. “A grande maioria volta [ao trabalho escravo]. A situação financeira fala muito mais alto”, relata a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra de Teresina (PI), Joana Lúcia Feitosa.

DIFICULDADES NA TERRA NATAL

Os maiores fornecedores de mão-de-obra para a escravidão são os Estados do Maranhão e Piauí. Na última medição do Índice de Desenvolvimento Humano realizada pela Organização das Nações Unidas no Brasil, em 2000, os dois figuraram na última e antepenúltima colocação, respectivamente, com índices semelhantes a países muito pobres, como Botswana, Gana ou Camboja. Da mesma forma, a renda per capita desses estados, medida pelo IBGE em 2003, fica no rodapé da lista nacional. Maranhão é o último colocado, exatamente abaixo do Piauí. Enquanto os dois estados têm R$ 2.354 e R$ 2.485 de renda per capita, respectivamente, a média brasileira alcança R$ 8.694 no mesmo período.

Por conta desses números, apenas levar o trabalhador de volta à sua região, com algum dinheiro, não impede uma nova migração involuntária. “O ideal seria proporcionar oportunidades na sua própria terra de origem. Se houvesse requalificação, reforma agrária, geração de renda, alfabetização e documentação para quem não tem, seria possível dar uma recuperação real à essa pessoa”, defende o frei Xavier Plassat, da CPT de Araguaína (TO).

A situação do recém-resgatado Alessandro Silva da Costa, 22, é um exemplo do risco de volta ao ciclo da escravidão. Mais velho entre 15 irmãos, nunca sentou em um banco de escola e não tem nenhum documento, com exceção da carteira de trabalho provisória fornecida pelo MTE no momento do seu resgate. Depois de trabalhar em condições degradantes por um ano em uma fazenda a 150km de Araguaína, ele recebeu R$ 2.203,00 como rescisão contratual, que usará na construção de uma pequena casa para a família. Beneficiado por três parcelas do seguro-desemprego, Alessandro não vê o futuro com entusiasmo: “Esse dinheiro dá pra muito pouco tempo. Depois, como vou conseguir um emprego sem saber ler e escrever?”, lamenta. Ele acabou sendo aliciado para o trabalho degradante quando não conseguiu encontrar emprego na sua região.

AÇÕES GOVERNAMENTAIS

Entre as metas do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em março de 2003, está a “reinserção social de forma a assegurar que os trabalhadores libertados não voltem a ser escravizados”. As ações incluiriam educação profissionalizante, geração de emprego e renda e inclusão das famílias dos libertados na reforma agrária, facilitando a reintegração na região de origem do libertado e evitando o aliciamento.

A ação do governo, porém, tem se concentrado em áreas de ação de informação e repressão, como a fiscalização, mas um programa de prevenção nacional que envolva também governos estaduais, municipais e sociedade civil não foi totalmente planejado, devido a dificuldades financeiras, burocráticas e políticas.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) está começando a colocar projetos em prática para erradicar a escravidão. O principal deles é a linha de crédito Terra para Liberdade, em que famílias de libertados ou expostas ao aliciamento recebem um crédito de R$ 12 a 18 mil para comprar sua propriedade, e têm até 17 anos para pagar, com dois anos de carência e juros subsidiados, de cerca de 4% ao ano. Os primeiros empréstimos estão ocorrendo no Paraná, com um grupo de libertados. A falta de preparo dos trabalhadores, porém, é um entrave para o sucesso do projeto. “É muito difícil, pela peculiaridade da situação deles, analfabetos, sem informação nenhuma. Tanto para disponibilizar uma terra de reforma agrária, quanto fornecer crédito, eles precisam de uma formação mínima, já que, em última análise, serão empresários”, explica Carlos Kaipper, assessor jurídico do MDA.

Em dezembro de 2005, durante evento no Palácio do Planalto em que participou o presidente da República, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) se comprometeu por escrito a prestar assistência aos trabalhadores libertados, incluindo-os na lista de beneficiados do programa Bolsa-Família através de um convênio com o Ministério do Trabalho. De acordo com a assessoria de imprensa do MDS, contudo, o plano ainda não saiu do papel. O principal obstáculo, segundo eles, é o fato de não haver acompanhamento depois que os trabalhadores voltam para sua cidade, sendo difícil identificá-los.

POR CONTA PRÓPRIA

Enquanto algumas idéias do governo ainda não chegam às regiões de aliciamento, a sociedade civil se movimenta para acompanhar os libertados e prevenir sua volta às condições degradantes de trabalho. As ações concentram-se principalmente em projetos de geração de renda e prevenção ao aliciamento.

Uma idéia inovadora partiu do Instituto Carvão Cidadão (ICC), em Imperatriz (MA). A instituição, criada por siderúrgicas da região dos Carajás, tem um programa que dá emprego nas usinas aos trabalhadores libertados de carvoarias que forneciam matéria-prima para fabricação de ferro-gusa. Até agora, 55 pessoas já foram empregadas e, hoje, atuam com carteira assinada no plantio de eucalipto ou como auxiliares na área de siderurgia. Segundo o presidente do Instituto, Ornedson Carneiro, a maior dificuldade é localizar quem saiu da escravidão. De uma listagem de 687 pessoas fornecidas pelo MTE, apenas 262 foram encontrados. “Eles são nômades e muitas vezes davam o endereço dos hotéis de passagem. Além disso, quando os encontramos, muitos corriam, se escondiam. Pensavam que éramos empregados de onde eles trabalhavam e queríamos matá-los”, conta Ornedson.

Outra iniciativa de ajuda a ex-escravos surgiu em Teresina, onde foi criada a Comissão Estadual de Prevenção ao Trabalho Escravo do Piauí, que auxilia os libertados a requerer seus direitos. Até agora, sete cidades do estado já receberam grupos de trabalho da Comissão. “Além desses trabalhadores, tentamos organizar lideranças do município. Mobilizamos o sindicato, a associação da comunidade, e discutimos com a liderança local sobre a condição do trabalho escravo”, relata Joana Lúcia, da CPT.

Trabalhando com prevenção, o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH) aliou a geração de renda à proteção ao meio ambiente. No início de junho, ele iniciou um curso para capacitar 20 famílias expostas ao aliciamento a produzir o que foi batizado de “carvão ecológico”. O produto será feito com pó de carvão abandonado pelas siderúrgicas, argila e um subproduto da mandioca. No mesmos moldes da capacitação para a produção de carvão ecológico, o CDVDH começou em abril um curso de artesanato em madeira, que está sendo oferecido a 20 famílias de baixa renda com o objetivo de prevenir o trabalho escravo.

Na área de educação e comunicação comunitária, desde 2004 há o projeto “Escravo, nem pensar!”, organizado pela ONG Repórter Brasil, Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), CPT, Organização Internacional do Trabalho e programa Trilhas de Liberdade, entre outros. Seu objetivo é capacitar sobre os riscos da escravidão e os direitos dos trabalhadores os professores e lideranças populares de municípios com altos índices de aliciamento. Dessa forma, eles podem atuar como multiplicadores da informação em suas comunidades. Até agora, mais de 1000 pessoas já foram capacitadas em cinco estados.

Todos esses projetos estão rendendo frutos, mas têm um alcance limitado. Pois há um imenso excedente de mão-de-obra, não só no Maranhão e Piauí mas em diversas regiões do país, que pode ser explorado em fazendas da Amazônia e do Cerrado. Seja através de trabalho escravo, degradante ou infantil.

A escravidão vai diminuir com a redução da desigualdade social. Para isso, é necessário que haja uma real distribuição, de renda, de oportunidades, de terra, de justiça, garantindo melhores condições de vida e de trabalho a todos. Um bom começo, requisitado pelos movimentos sociais do campo, é uma reforma agrária abrangente, que garanta condições de sustentabilidade e desenvolvimento para o trabalhador rural. E que não sirva apenas para fixá-lo próximo de indústrias e de grandes propriedades garantindo uma despensa de mão-de-obra barata.

Uma realidade que apresente oportunidades. Para que trabalhadores, como o Alessandro, diante de seus 22 anos, não precisem deixar a dignidade guardada em um armário de casa e cair novamente na estrada sabendo o que o espera mais à frente. Ou como ele sentencia: “É melhor sofrer humilhação do que ficar parado.”