Um testemunho de quem estava lá

Fonte: Shirlei Silva (sasilva@marista.edu.br)

Por: Padre Albino N. Oliveira (albino@igrejadocarmo.com.br)

Manhã do dia 03 de abril de 2006. A praça da Assembléia Legislativa de Minas Gerais estava repleta de pessoas, a maioria Sem Terra e/ou atingidos por Barragens. Cerca de duas mil. Eram pessoas de todas as idades: idosos/as, adultos, crianças e jovens. Havia algumas mulheres grávidas que não mediram esforços para mostrar sua indignação diante do sistema opressor. Trabalhadores/as de vários lugares do interior de Minas Gerais vieram protestar contra o desrespeito aos seus direitos. Durante o 1o Encontro dos Movimentos Sociais Mineiros, mostraram que são vítimas de injustiças praticadas pela CEMIG – Centrais Elétricas de Minas Gerais –, pelas outras grandes empresas de energia, das mineradoras, das eucaliptadoras, dos latifundiários, entre outros. O protesto aconteceu durante o 47o Encontro do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento.

O ocorrido na frente da CEMIG no dia 03 de abril foi o sinal de que as coisas não andam bem como parece ser. É certo que a mídia não se interessa e não mostra os fatos da perspectiva dos pobres, exceto quando há interesses ligados a determinado candidato a um almejado cargo político. Essa prática é conhecida e parece que se estendeu com maior virulência nestes últimos anos. Assistimos a uma macabra e horrenda reportagem distorcida, comprada/vendida, que nos desconforta diante da realidade. Há quem agüente tanta podridão? Há que entender a revolta dos Movimentos Populares (MPs) e tentar construir um novo país onde haja justiça, transparência e solidariedade. O grito que soou reticente tornou-se razão para a consciência motivadora na luta: "Pátria livre! – Venceremos"!

O que a mídia não mostrou, pude vivenciar. Os 2 mil participantes estiveram "acomodados" sob as chamadas "lonas pretas", armadas de modo improvisado, mas com muita habilidade. Pude conversar com alguns militantes, membros, lideranças e sentir de perto a realidade inaudita (não dita) de uma movimentação social e democrática. Não obstante, este espaço reservou-me recordar as lutas de grupos indigenistas, posseiros e sem-casa do norte do país. Reminiscências da convivência com os pobres do Estado de Rondônia. Mas minha conversa com algumas pessoas que integravam os vários grupos na luta popular deixou transparecer sua utopia-topia em dias melhores. Indaguei-os sobre os trabalhos do dia anterior, dos acontecimentos do sábado 01/04 – quando a tropa de choque impediu que a marcha dos pobres organizados passasse pela Praça da Liberdade, onde sete companheiros/as que estavam em greve de fome há três dias.

Deu para sentir a existência de uma boa organização entre eles. Os trabalhos eram divididos entre as equipes, conforme a subdivisões de cada setor. Tudo era decidido em reunião e conjuntamente. Sua alegria despistava qualquer sinal de cansaço e o sorriso no rosto era uma constante. Não percebi neles nenhum gesto de grandeza, de superioridade ou de violência. Todos se sentiam iguais e comungavam dos mesmos anseios. Eles reivindicavam seus justos direitos, protestavam contra a política do governo atual que é neoliberal, excludente, geradora de violência e de morte. Essa é a razão principal da luta daquelas pessoas. O mesmo foi dito em relação às altas taxas de energia cobradas pela CEMIG, a empresa mineira que mais cresceu no ano passado às custas do sofrimento de milhões de famílias pobres. Diante deste quadro, percebi que entre eles muitas crianças e jovens começam exercer liderança. Todos alegres formavam pequenos círculos de cantorias. É certo que o ambiente era também de descontração e não de "vandalismo", como insinuou a mídia.

Os participantes do 1o Encontro dos Movimentos Sociais não se utilizavam grande quantidade de materiais que geram lixo. Eles trazem seu copo que serve para tomar café ou água ao longo do dia, prato e garfo para o almoço. Tudo era realizado comunitariamente.

Ao ouvirem o sinal de chamada, deu-se início à marcha rumo à Praça Sete. Formamos três filas. Havia muitas faixas, bandeiras e grande entusiasmo. A intenção, conforme a motivação dos animadores, era despertar nas pessoas a consciência do que estava sendo realizado naquele momento. Ao iniciar a marcha, o carro de som ia à frente orientando-nos sobre a programação do dia. Quando nos aproximamos do prédio da CEMIG, a coordenação e equipe de animação fizeram elogios aos funcionários daquela empresa. Eles são empregados e também sofrem com a exploração feita pelo mesmo sistema que oprime os pobres. Possivelmente, nem todos estão a par do que a CEMIG faz com os atingidos pelas barragens e com milhões de famílias pobres em todo o estado de Minas. As famílias pagam pela energia da CEMIG seis vezes mais do que pagam as empresas. As famílias pagam 30% de ICMs, enquanto as empresas pagam 18%. Ademais, a CEMIG é a responsável por grandes inundações e agressões ao meio ambiente.

Ao passar em frente à sede da CEMIG, o povo, correndo, entrou no saguão do prédio da CEMIG. A intenção era ocupar pacificamente e, lá dentro, fazer o LANÇAMENTO DA CAMPANHA PELA REDUÇÃO DA TARIFA DE ENERGIA. A polícia militar iniciou, imediatamente, a atirar para o alto, a jogar bombas de gás lacrimogêneo. O carro de som foi destruído parcialmente pela PM e, sob ataque da polícia, a situação se descontrolou. O contingente policial foi reforçado e começaram as pancadarias. Muitas pessoas foram violentamente agredidas com pauladas, socos e chutes. Além das armas de fogo, havia também as de efeito moral: gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha. Uma grande parte da cavalaria policial esteve no local. Eles manobravam os cavalos sem qualquer cuidado entre as pessoas. Também com seus carros e as motos. Um garoto aproximou-se de mim chorando. Ele deveria ter cerca de onze a doze anos. Estava com um dos pés sangrando. Busquei socorro junto ao carro de som. Logo depois, vi que um senhor de aproximadamente 58 anos estava caído e ferido. Ele havia sido espancado pelos policiais. Seu braço e suas pernas estavam imóveis. Com ajuda de outras pessoas, o retiramos do meio da confusão. Muitos passavam correndo ao nosso redor e os policiais continuavam a jogar bombas de gás lacrimogêneo. Foi muito difícil resistir àquele gás, mas não podíamos abandonar o senhor idoso, quase desmaiado. Ele ficou fora de sentido alguns instantes. Pedi para que parassem de jogar gás lacrimogêneo. Consegui resistir ao gás, contendo a respiração por alguns instantes. Logo depois, com o auxílio de outras duas pessoas, conseguimos tirá-lo dali e ele pôde caminhar com muita dificuldade. Sua clavícula estava quebrada. Ele passara seis meses com o braço engessado, agora deveria engessar o braço novamente. Perguntei o seu nome e o grupo ao qual pertencia. "Antônio", disse-me. Ele pertencia ao grupo número dois. Estava muito enfurecido com os policiais.

Estávamos ajudando aquele pobre cidadão a encontrar um lugar seguro e a tratar de suas feridas. Ao passarmos diante do Hospital "Mater Dei", fiquei muito triste ao ver que um dos funcionários do hospital fez um cerco com seus braços a fim de impedir que adentrássemos pelo portão. Nem acenamos dizendo que iríamos entrar e ele adiantou-se em mostrar que "ali, não"! As pessoas, digo, "gente" dessa categoria não interessa tratar em um hospital chique. Aquele funcionário parecia dizer: "vão, saiam daqui, vão embora. Vocês não podem entrar aqui"! Um Hospital que leva esse nome, mas que não consegue honrar seu distintivo "Mater Dei", isto é, mãe de Deus! É puro comércio, é funcho! E mais, agindo dessa forma comete um ilícito penal, já que tem o dever legal de prestar socorro às pessoas! Caminhamos com o Sr. Antônio até a Praça da Assembléia Legislativa. O grupo havia se dispersado. Aos poucos todos foram chegando de volta à praça-acampamento. A coordenação pediu para que o grupo ficasse junto para evitar outro ataque da polícia. Tomamos providências para que os feridos pudessem ser encaminhados ao Pronto Socorro. Ao todo foram umas 20 pessoas. Vários outros foram presos. O SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – foi chamado e acompanhou com curativos os feridos e os encaminhou ao HPS Oeste, de Belo Horizonte.

Permaneci com o povo por mais algumas horas. As manifestações continuavam. Deu para sentir a revolta das pessoas. Algumas vítimas da agressão policial relatavam as cenas de violência. Um deles, com o ombro enfaixado, falou-me de como foi agredido. Ele viu o seu pai sofrendo agressões e tentou socorrê-lo. Neste momento, enquanto ele ia descrevendo as cenas de violência, um dos companheiros fez um aceno. Ele disse que percebeu um olhar investigador de um estranho. Poderia ser um policial disfarçado que estaria querendo infiltrar-se na movimentação.

Senti a revolta das pessoas. Elas querem ter o seu chão com dignidade, a sua família e as suas coisas. Até quando o governo vai continuar gastando um absurdo com seus interesses eleitoreiros e deixar para último plano o bem público, a terra e a água?

As manifestações deverão continuar. As pessoas continuarão a ser expressão forte na luta pelos direitos que lhes são garantidos pela própria Constituição brasileira. Os gestos de revolta, assinalados por esses companheiros/as, prestam-se à contra-revolta em uma sociedade burguesa, pós-moderna e escrava do exacerbado consumo que alimenta ideais fundamentados em capitais geradores de uma exploração ainda maior. A revolta manifestada no dia 03/04 é contra o sistema que mata e explora os pequenos da terra, produtores/as, trabalhadores/ras e funcionários públicos que são dizimados e não reconhecidos em sua humanidade. Há muitas maneiras de se gritar. Há muitos modos de se manifestar. Um deles acontece através da união dos Movimentos Populares que ao fazerem a sua manifestação querem deixar a sua indignação e o seu grito contra o modelo de sistema político atual. Ele não pode continuar enganando e explorando. Trata-se de uma contra-revolta em vista do bem comum. Somente através da luta e da união de todos é direitos humanos serão respeitados. "Pátria livre! – Venceremos"! Então, mãos à luta.