Todos os domingos, o governo fecha um quilômetro de avenida para o Mercal, onde alimentos são vendidos por 50% do preço

Fonte: Lycia Ribeiro (lyciaribeiro@uol.com.br)

Por: Sheila Machado (Jornal do Brasil)

Nos dias úteis, a Avenida Bolívar é uma das mais movimentadas do centro de Caracas. Mas nos fins de semana, 1 km dela é fechado ao tráfego para uma das missões bolivarianas do goveno de Hugo Chávez, o Mercal. Trata-se de um mercado que nasceu com o propósito de vender alimentos a preços mais baixos para os pobres, seus principais eleitores, além de tirar dos empresários o monopólio do abastecimento no país.

Hoje, encontra-se de tudo lá, desde produtos de limpeza a prendedores de cabelo. O forte, entretanto, continuam sendo os produtos alimentícios, principal razão que levou no domingo mais de 2 mil pessoas à feira.

– Venho todos os fins de semana, no sábado ou no domingo. Fazer as compras aqui representa 50% de economia em relação aos supermercados – afirma o motorista Ricardo Garcia, de 61 anos, acompanhado da mulher, Maria Núñez.

Dona-de-casa, Maria atesta que o orçamento doméstico ficou mais folgado depois que o casal passou a freqüentar o Mercal:

– Tem ainda a vantagem de não ter embalagens industriais, que sempre encarecem os produtos – disse, junto ao carrinho de feira já cheio, enquanto esperava na fila sua vez de comprar óleo, sob sol forte.

Nas sacolas, já havia tomate e cebola a 1.000 bolívares o quilo (cerca de R$1), arroz a 990 bolívares (R$ 0,99) e um pouco de pó de café, o artigo mais caro do Mercal: 1kg chega a custar R$ 10,80. No fim do ano passado, a Venezuela viveu uma crise de abastecimento de café, que sumiu das prateleiras dos supermercados. Onde era encontrado, cobrava-se ágio.

Para amenizar o calor na feira – o mormaço queima a pele dos desavisados, e o boné é peça indispensável -, ambulantes oferecem água, refrescos, refrigerantes e cerveja. E disputam espaço com consumidores e feirantes que não têm dinheiro para alugar uma barraca e expõem seus produtos no asfalto quente.

O Mercal da Avenida Bolívar conta com mais de 100 barracas, pelo menos 35 delas administradas diretamente pela Associação Cooperativa Força Bolivariana, aliada ao governo. Nas tendas governamentais, o preço é um pouco mais em conta do que nas cedidas aos demais feirantes. Nelas, as filas são sempre maiores, mas não há confusão. Todos sabem que não vai faltar produtos porque a venda é limitada por pessoa – dependendo do artigo. Se alguém insistir em querer levar mais do que pode, sempre há um policial militar por perto para dissuadí-lo.

Bétis Piegas, de 48 anos, é feirante no Mercal há mais de seis meses. Além de ter um lugar de graça para fazer comércio, o governo subsidia os grãos que vende, como lentilha, feijões e milho. Tudo é importado, de países como a China e a Argentina.

– A Venezuela até produz alimentos, mas a demanda é muito maior do que a produção. O governo importa, eu compro e revendo. Em média, o meu lucro chega a 30% – conta.

Bétis mora em Caracas e toda sexta-feira chega à Av. Bolívar às 22h, para montar a tenda com os produtos. Tudo tem que estar pronto às 6h de sábado, quando começa o Mercal. Às 18h, a feira encerra, para recomeçar no domingo, à mesma hora. Há feirantes que vêm de Maracay e Valencia, perto da capital, onde plantam principalmente batata e milho.

– Eles dormem nos caminhões ou em casas de amigos na cidade – diz. – Mas como há Mercal em várias cidades da Venezuela, os vendedores do interior não são maioria aqui. Há mercado para esta feira em todo o país.

O motorista García ressalta outro aspecto do Mercal, além de fazer o salário do trabalhador render mais:

– Comprar aqui é uma forma de apoiar a revolução do comandante – afirma, usando para Chávez o apelido que o mundo acostumou-se a associar ao socialista cubano Fidel Castro.

Barracas também têm livros

Como nem só de pão vive o homem, o Mercal da Avenida Bolívar também tem uma barraca – a maior de toda a feira – destinada a vender livros a preços populares. Os títulos são subsidiados pelo Ministério da Cultura e vários são reedições feitas pela Fundação Kuai Mare do Livro Venezuelano. O preço começa em 1.000 bolívares (R$ 1) e vai até 30.000 (R$ 30), no máximo. Neste caso, há desconto de 20%, fazendo-o cair para R$ 24.

– Temos todos os tipos de compradores, desde os mais pobres, que separam mil bolívares para um livrinho, até a classe média. E não fazemos distinção, temos promoção para todos. Quem compra um livro pode ganhar outros três ou quatro, dependendo do que houver em estoque – afirma Marisbel Bisbal, que trabalha no caixa da barraca, onde ficam expostas os exemplares de bolso da Constituição Bolivariana, a R$ 4 cada.

Diferentemente das livrarias, não há corredores, os livros ficam em mesas unidas, que dão bastante espaço para os interessados que queiram entrar com os carrinhos de feira. A tática dá resultado: são vendidos até 300 livros num fim de semana, segundo Marisbel.

– As pessoas de classe média tendem a comprar poesia, literatura. Os mais pobres, livros de política e literatura infantil – conta a caixa. – Os livros políticos são os mais vendidos, sempre.

Os títulos disponíveis variam de semana a semana. No domingo, por exemplo, havia vários volumes de Cuba desde Venezuela, A revolução chavista, Povos indígenas e o Plano Colômbia, O destino superior dos povos latino-americanos (uma entrevista dada por Chávez a Heinz Dieterich) e até um livro de caricaturas dos presidentes venezuelanos, de Perez Jiménez a Chávez. Leitores também encontravam As aventuras de Quixote, de Miguel de Cervantes, uma biografia do jogador de futebol brasileiro Ronaldo e do ídolo pop britânico David Bowie.

– Os venezuelanos estão lendo bem mais agora. E, como diz o slogan do programa do Ministério da Cultura, ‘o livro liberta’ – afirma Marisbel.

Fidel cedeu médicos

Outra missão bolivariana que será usada por Hugo Chávez como propaganda para tentar conseguir os 10 milhões de votos desejados nas eleições presidenciais de dezembro é a Barrio Adentro (Favela Adentro), que trouxe médicos cubanos para atender à população venezuelana. O programa funciona no sistema de módulos., pequenas construções de atendimento para cada especialidade.

Em dezembro, Chávez anunciou que a missão, iniciada em 2003, entrava na segunda fase, com a inauguração de um centro do primeiro Centro de Diagnóstico Integral (CDI) e a ampliação para 30 unidades em todo o país das Salas de Reabilitação Integral (SRI).

Mas não são todos os cidadãos que vêem a missão com bons olhos. Uma mulher que prefere se identificar apenas como Inés conta que nunca entrou nem pretende entrar num módulo médico.

– Tenho amigas que passaram pela desagradável situação de terem prescrição médica errada. Como os remédios são de graça, os médicos receitam o que tiver no estoque, o que nem sempre adianta.