fonte: Revista Caros Amigos (http://carosamigos.terra.com.br)

Autora: Natalia Viana

Uma reação contra a política econômica que gera o desemprego: os marginalizados tocam os seus próprios empreendimentos. E contam com uma ajuda inesperada: a de professores e alunos de universidades, nas chamadas Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares.

“O Brasil cresce enquanto seus políticos dormem.” Ouvi essa frase em algum lugar, provavelmente aqui na redação, e foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando comecei a pesquisar o movimento cooperativista no Brasil.

Governantes e economistas continuam procurando saídas pela tangente para a crise do trabalho estudando números, dados e taxas. Enquanto isso, Geralda Maria Costa, paraibana radicada em São Paulo, teve de fechar a sua barraca de pastel e caldo de cana na avenida Jacu-Pêssego por causa do frio. Com sorte, tira 400 reais por mês, com o que sustenta os dois filhos e o marido desempregado. Acordar às 4 horas da manhã e trabalhar até o anoitecer, podendo ser expulsa a qualquer hora, já que a prefeitura não legalizou seu ponto, não é para ela nenhum sacrifício. Nem para milhões de outros brasileiros que dariam graças a Deus se pudessem tirar seu sustento do trabalho, qualquer que fosse. “Antes era mais fácil arrumar serviço. Agora, tão exigindo muito, três anos de experiência na carteira, se a pessoa tá desempregada há mais de dois anos não pegam e nem se tem mais de 30 anos.” Por quê? “Porque acham que não dá tanta produção. Eu acho errado, tô com 42 anos e, se pegar o serviço que fazia na fábrica de tecelagem quando tinha 20 e poucos, dou conta.” Da fábrica, ela foi demitida porque “ficou ruim de serviço” e os donos dispensaram os empregados mais antigos para “pegar gente mais nova pagando menos”.

Resolvi falar da Geralda na nossa revista por dois motivos: primeiro, porque, depois de ler livros e conversar com sociólogos, foi quem melhor me explicou que diabos é a crise do trabalho; e, segundo, porque ela é um exemplo perfeito da parcela da população que dificilmente conseguirá emprego – mulher, nordestina, mais de 30 anos, 1o grau completo, moradora de favela.

Mas pior do que o estigma é a falta de instrumentos que possibilitem alguma mudança real de situação. Se eu estivesse desempregada, poderia procurar meus amigos, fazer contatos, botar anúncio nos jornais, ler livros sobre “como subir na vida, se dar bem e manipular pessoas”, bolar algum projeto mirabolante. Mas e a Geralda?

Aí é que entra o cooperativismo. Desde a última década, o movimento pela economia solidária vem se articulando de maneira inédita no Brasil – reflexo da crise, claro, e por ironia em extrema contradição com o modelo que a gerou. A idéia é organizar cooperativas geridas de maneira democrática pelos próprios sócios. Quanto à finalidade, as cooperativas podem ser de produção, administrada pelos trabalhadores que dividem entre si dividendos e ganhos; podem ser de consumo, com um grupo se reunindo para comprar conjuntamente determinados bens, barateando o custo; e podem ser de crédito ou “clubes de poupança”, formados por um grupo de pessoas que unem suas economias e passam a administrá-las coletivamente e fazer empréstimos a quem precisa.

O fôlego dos últimos anos teve início em 1994, com a fundação da Anteag, a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão, a partir da transformação da falida empresa Calçados Makerli (Franca, SP) em cooperativa gerida pelos funcionários, seus principais credores. O debate ganhou espaço nas universidades e em entidades como o MST e a CUT. Na mesma época, a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, no Rio de Janeiro, propôs aos habitantes desempregados das favelas da região da Maré a criação de uma grande cooperativa para prestação de serviços e produção industrial de louça sanitária, a Cooperativa de Manguinhos. A experiência deu certo e levou o COPPE – Centro de Pós-Graduação de Engenharia da UFRJ – a coordenar a formação de cooperativas, fundando assim um braço “solidário” do programa de incubação de empresas já existente na universidade.

Como no processo com empresas convencionais, a equipe coordenadora contava com alunos e acadêmicos trabalhando com metodologia própria. Surgia assim a contribuição tupiniquim ao movimento mundial pela economia solidária, as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs).

As ITCPs são projetos de extensão universitária e trabalham principalmente com comunidades vizinhas às universidades. O processo chamado incubação começa com um contato entre a incubadora e as pessoas interessadas em montar uma cooperativa. A postura é abertamente política. “A marca das ITCPs é um posicionamento político de atuar junto à população excluída, lutando pela transformação social através de outro modo de organização do trabalho”, conta Maria Paula Patrone Regules, coordenadora da incubadora da USP.

Transmitir os valores do cooperativismo – democracia, solidariedade, intercooperação, autogestão – acaba sendo, por vezes, tarefa bastante complicada. Primeiro, porque muitas pessoas recorrem às incubadoras querendo arrumar trabalho, e ponto. “No começo é: ah, emprego, cadê a fichinha pra eu preencher?”, diz Paula. Depois porque, no fim das contas, é difícil trabalhar democraticamente em grupo, ainda mais numa sociedade em que trabalho é imediatamente associado a hierarquia.

Por isso, a incubação começa pela formação do cooperado. “O curso tem de ser transformador, um embrião da cooperativa. Então, a gente discute tudo junto: quando vai se encontrar, a que horas, quem vai trazer o cafezinho”, explica Paula. A questão central é construir um grupo coeso, resgatando experiências individuais de cooperação. “As pessoas têm muito introjetado o discurso de ‘ah, aqui ninguém se ajuda, ninguém faz nada’. Então, a gente pergunta ‘mas quem fez a laje?’ ‘fui eu, a vizinha e mais não sei quem’ “. Esse é o começo de uma discussão que vai longe, abordando formas de se organizar conjuntamente, diferenças entre o trabalho coletivo e o trabalho individual e o papel de cada um no conjunto.

Terminada essa fase, é a vez de decidir se o grupo quer ou não formar uma cooperativa. Se quiser, descobrir cooperativa do que, já que muitas vezes os futuros sócios têm experiências profissionais em diferentes áreas. E ir atrás de capacitação, o que é uma das grandes vantagens da ligação com a universidade, diz o economista Paul Singer, coordenador acadêmico da incubadora da USP: “Na universidade, a gente consegue descobrir quem tem recursos e soluções, porque existe gente na área de contabilidade, administração de empresas, psicologia…”. Resta fazer o registro formal, de acordo com a lei cooperativista 5.764, de 1971, redigir o estatuto e, por fim, idealizar um modo de produção e comercialização dos produtos.

Fábio de Oliveira, coordenador acadêmico da incubadora da PUC-SP, explica que, ao contrário do que se pensa, “é possível produzir com um recurso mínimo e algum conhecimento técnico”. Cita como exemplo a Cooperativa Bom Viver, formada por um grupo de moradoras da favela União de Vila Nova, entre elas a Geralda do começo da matéria. “Elas não têm dinheiro, mas conseguiram retalhos para costurar fuxicos (trouxinhas de pano para enfeite). Aí, dá para produzir valor, que é reinvestido.”

Foi baseadas nessa idéia que Geralda e suas companheiras tomaram a iniciativa de sair da cinzenta favela onde moram, na várzea do Tietê, sem saneamento básico, perto de um lixão e tomada pelo barro, para procurar a ITCP da PUC, “enterrando o não-consigo e ressuscitando o consigo”, nas preciosas palavras de Fabiana do Espírito Santo, 14 anos, aprendiz da cooperativa. Queriam formar uma cooperatviva de costureiras, tricoteiras, bordadeiras e fuxiqueiras “de mão”. No começo, apenas algumas sabiam costurar. Montaram um curso para socializar a técnica, ou “aprender ponto de cruz e tricô”, como diz Fabiana. Com a venda dos produtos feitos em aula, puderam comprar mais linha e tecido, constituindo um primeiro – pequeno, mas, por que não? – patrimônio da empresa.

Todas os dias, elas se reúnem na casa de Marileide, cantora evangélica, para tricotar e bordar. Marileide coordena o trabalho, distribuindo os afazeres, as linhas e agulhas para terminar a encomenda de trezentos enfeites de tricô para decorar cerimônias da Igreja. Vendo a sua postura, logo me perguntei se ela não estaria tomando a posição de chefe. A resposta veio da Geralda: “Ela não é chefe porque, quando a gente não quer fazer o que ela falou, a gente leva ela no bico. Todas nós mandamos junto, conversamos sobre tudo o que tem que fazer, o que vai entrar e como vai ficar melhor”.

Para escoar a produção, Fábio de Oliveira aposta na atuação dos incubadores: “Um recurso completamente à parte do mundo em que elas vivem são os contatos. Com o respaldo da universidade, a gente apresenta o trabalho para outros mundos. Por exemplo, no bairro de Vila Madalena tem uma lojinha de artesanato que se interessou em deixar o produto delas em consignação”. Uma vez inserida numa rede de contatos e tendo adquirido experiência de negociação e lógica de produção, a empresa tem tudo para andar com as próprias pernas. Pra onde quiser. “A cooperativa é extremamente dinâmica porque os sócios podem decidir tudo, é um processo de invenção. Então, a flexibilidade que a empresa capitalista busca como farsa – participação do trabalhador, comprometimento com os valores da empresa etc. – é verdade no cooperativismo”, diz Fábio. Na entrevista a seguir, Paul Singer disseca melhor essa questão, contando como ela representa um dos grandes entraves na empresa tradicional. Mas quem fica com a palavra final é, mais uma vez, a Geralda: “Trabalhar junto é bom, até rende mais o serviço. Melhor do que ficar com um encarregado no pé da gente – a gente fica nervosa. Assim, não tem que ficar xingando escondido”.

Singer: “Aprendemos com os incubados e eles também.”

Paul Singer é professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Seu engajamento na economia solidária teve início na campanha de Luíza Erundina pelo governo municipal de São Paulo em 1996, quando propôs a formação de uma grande cooperativa de consumo e produção na cidade. Passou a estudar o tema e participar de debates, se inserindo no recente movimento cooperativista brasileiro. Em 1998 colaborou para a fundação da Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT e assumiu o cargo de coordenador acadêmico da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP.

Existe uma metodologia de incubação?

A incubação é feita a partir dos princípios do cooperativismo, mas ela em si é totalmente prática. Não tem uma rota predeterminada, a gente vai na medida em que as circunstâncias nos estimulam a andar. É um processo de conflitos, na verdade: uma coisa é você ser um bom vizinho na favela, outra coisa é entrar numa aventura econômica em que há dinheiro para repartir e gente que acaba tendo mais influência. A idéia é ser totalmente democrático, mas, na prática, nunca é, alguns têm liderança, são eleitos, então freqüentemente ocorre a formação de facções dentro do próprio grupo, e aí uma delas perde e acaba saindo, formando outro, desistindo… Acontece de tudo. É importante buscar uma metodologia, sim, mas precisamos de muito mais tempo do que até agora temos conseguido. Em cada caso aprendemos muito com os incubados e eles também. É uma troca de saberes. Agora estamos atuando com prefeituras, porque o PT elegeu um grande número de prefeituras, então, em geral, elas procuram as incubadoras. Essa relação com o poder público é uma nova experiência. A Igreja está nessa há muito mais tempo que nós, especificamente a Cáritas, que nos anos 80 começou a financiar grupos que faziam artesanato com recursos europeus. A Igreja é ótima para organizar, estimular, apoiar, mas precisava de uma parte também econômica, contábil. Quando a incubadora entrou em atividade, muitos desses grupos estavam vegetando. Enfim, é uma luta complicada e estamos fazendo uma parte. Agora estamos tentando abrir dois pontos de estrangulamento: a falta de mercado, porque se criam muito mais cooperativas para produzir do que para vender, e a falta de capital. Estamos tentando criar cooperativas de crédito, e montar clubes de poupança. Elas constituem um primeiro passo na criação de instituições que possam financiar empreendimentos solidários.

Você defende o financiamento do Estado às cooperativas?

Não tenho a menor dúvida de que os municípios, os Estados e o governo federal têm uma responsabilidade em relação à situação econômica de miséria. A maior responsabilidade do governo federal é fazer este país crescer, pois estamos estagnados, o desemprego está um horror e a exclusão social também. Estamos esvaziando o oceano com colherinha, quer dizer, é uma enorme dificuldade para botar trinta pessoas trabalhando, enquanto isso vem a crise e 30.000 perdem o emprego. Não vamos resolver a questão do desemprego pela economia solidária hoje, daqui a dez anos, não sei, mas neste momento somos ainda muito poucos. Então, a gente exige, na verdade, uma mudança de modelo que faça o Brasil crescer, mas, enquanto isso não acontece, acho que faz todo o sentido uma ação do tipo que a prefeita de São Paulo Marta Suplicy vem desenvolvendo, que, a meu ver, é o melhor modelo até hoje. O que se exige que o Estado faça é dar uma oportunidade para que as pessoas miseráveis possam deixar de ser miseráveis pelo seu próprio esforço, não dando dinheiro apenas. A prefeitura de São Paulo executa vasto programa de bolsa-escola e bolsa-trabalho que oferece auxílio monetário aos mais carentes, seja para que mantenham os filhos na escola, seja para adquirirem formação profissional. Os que o desejam também recebem iniciação ao cooperativismo e os grupos que se formam para se tornar cooperativas são incubados, com a prefeitura cobrindo as despesas. As incubadoras da USP, PUC e FGV já estão trabalhando na periferia há mais de um ano, ao lado da Anteag, Unisol e Napes.

A idéia, para muitos que trabalham com incubação, é transmitir valores de mudança da situação do trabalho e do modelo econômico. O Estado colaboraria com essa mudança, por meio do financiamento?

À primeira vista se pode estranhar, mas o cooperativismo é hoje um fenômeno mundial, aliás, há duzentos anos, e em geral tem tido o apoio do Estado, com algum favorecimento fiscal. Há várias motivações. Dos socialistas, é óbvio, esse é o modelo que eles gostam, de democracia, igualdade etc. Mas os capitalistas também acham uma boa porque ficam menos pobres pelas ruas e os trabalhadores aprendem como é difícil fazer uma empresa, ficam mais responsáveis, então tem o apoio também de uma certa direita liberal. Na verdade, onde o cooperativismo tem tido mais apoio sistemático é nas igrejas cristãs, porque alguns princípios mais à esquerda coincidem totalmente com os princípios cristãos. Difícil é compatibilizar o capitalismo com o cristianismo. A Igreja sempre foi contra, teve enormes dificuldades para engolir o mercado livre, essa história de competição, de que ganha o melhor e quem não ficar rico é porque é inferior mesmo. Esse tipo de ideologia não casa com o cristianismo nem católico nem protestante, nem com o judaísmo, nem com os muçulmanos. Então, as religiões no fundo são, digamos, aliadas ideológicas em termos muito gerais.

As cooperativas não acabam sendo contra-revolucionárias ou reformistas?

Acho que a cooperativa, como tal, já é revolucionária porque cria um foco de contradição dentro do capitalismo, tentando mostrar que “um outro mundo é possível”, ou seja, você pode realizar atividades econômicas eficientes e competitivas sem criar uma estrutura em que poucos mandam e todo mundo obedece. Isso, ao meu ver, é revolucionário em si. Mas não basta. Estou convencido de que a transformação socialista, e eu sou socialista, depende de conquistas políticas, jurídicas, culturais… Mas, na parte econômica, a economia solidária tem um papel importante.

Como a incubadora trabalha para evitar que as cooperativas incubadas percam os princípios democráticos?

Nunca aconteceu, mas tudo é possível. Um agrupamento humano pode tomar qualquer direção e acho que não podemos impedir. Podemos dizer: “Olha, não há mais compatibilidade entre o que vocês estão fazendo e os nosso princípios, tchau, boa sorte”. Não aconteceu nenhuma vez ainda, mas, veja, é possível que alguém seja eleito presidente, seja reeleito o tempo todo e acabe sendo o dono da cooperativa. A gente trata de ajudar pra não ser, e até agora conseguimos evitar.

Você acha que a experiência de ser um cooperado muda as relações de trabalho, sendo difícil voltar a uma empresa capitalista?

Não sei se todos, mas um caso que estudei é o da antiga fábrica de fogões lá no Rio Grande do Sul chamada Wallig. Era a maior fábrica de fogões do Brasil e acabou quebrando, e os remanescentes dos trabalhadores criaram duas cooperativas. Bom, a falência da Wallig, depois de não sei quantos anos, foi revertida em concordata na Justiça. Então tiveram de entregar todo o patrimônio para a família. Evidentemente, eles recuperariam os empregos também, muitos deles tinham muitos anos de casa. Disseram: “Conosco, não”. E se retiraram, acharam outro local em Cachoeirinha e estão lá, produzindo como cooperativa, competindo com a antiga empresa. Esse é um caso interessante porque, quando eles criaram a cooperativa, a única coisa que queriam era os seus empregos. Mas foram se educando no cooperativismo e, depois de seis ou sete anos, chegaram à conclusão de que não queriam ser assalariados.

A meu ver, as cooperativas podem funcionar em três frentes: suprir uma necessidade local, como acontece numa favela; fundar uma rede auto-suficiente e, portanto, afastada do grande mercado; e a outra é entrar nesse mercado…

Nunca pensei nessa tricotomia, mas é isso mesmo. Tem de fazer as três coisas. À primeira vista não tem nenhuma cooperativa que trabalhe diretamente para a favela, porque é um mercado já bem saturado. O comércio é a coisa mais acessível ao pobre, então não creio que haja muito espaço. Na realidade, até agora é a terceira alternativa que tem sido tentada: ir para o mercado, tentar produzir coisas e vendê-las. Com êxitos muito variados; não dá pra generalizar. Mas a realidade é essa, tem de competir, se possível, não com outras cooperativas, mas com empreiteiras, com empresas capitalistas, com o que tiver. A segunda alternativa está sendo tentada pela formação de clubes de compras, cooperativas de consumo e também lojas do chamado consumo solidário, procurando convencer pessoas que têm simpatia pelo movimento a preferir comprar esses produtos, ainda que sejam um pouco mais caros ou um pouco inferiores. Não gosto muito da idéia, porque cria um mercado fechado e dá uma sensação meio de esmola, você compra para ajudar. Eu preferiria que as nossas cooperativas produzissem tão barato e com tão boa qualidade quanto outras empresas.

No mercado, os produtos e a demanda estão muito ligados ao modo de produção capitalista, então o que é bom é o que tem um design arrojado, por exemplo, com uma tecnologia tal por trás. Como fazer isso?

As empresas ligadas à Anteag estão dando muito certo em muitos casos. Já eram empresas capitalistas, mas viram empresas solidárias com bastante autenticidade e recuperam seu mercado, conseguem produzir, ganhar e pagar os impostos. Então, o fato de ser uma empresa solidária não a torna menos competitiva. Na verdade, existem duas razões para acreditar que ela fica mais competitiva: uma é que os trabalhadores têm muito mais empenho porque ganham conforme a empresa ganha. Na empresa capitalista o trabalhador ganha se a empresa produzir ou não, então ele tem que ser constrangido a trabalhar bem e manter a qualidade através de um processo de supervisão, de sanções, e no final é mandado embora se não fizer o que deve. Na cooperativa não tem capataz, não tem mestre, essa coisa toda, porque eles se vigiam mutuamente; se alguém é indisciplinado, é expulso. Acontece. Então, isso é uma vantagem, há um empenho visível maior. Me lembro agora das cooperativas que fazem objetos de cristal. Numa certa altura no Plano Real abriram a importação, veio cristal da China baratíssimo e de alta qualidade, o que literalmente acabou com a indústria de cristal brasileira. Fechou uma empresa atrás da outra. Então, os trabalhadores acabaram ficando com o patrimônio de várias delas e tocando enquanto cooperativas. E conseguem. O índice de quebra de peças caiu 80 por cento. Isso é uma prova de que o aumento de empenho engendra importantes ganhos econômicos.

E quanto a investimento em estratégias que estão muito em voga, como RH, comunicação empresarial…

Na realidade, acho que não tem a ciência de administração coisa nenhuma, tem é modas. E eles tiram muito dinheiro das empresas, fazem seminários, trazem os gurus lá dos Estados Unidos. Agora a moda é a qualidade, num outro momento era ser centrado no cliente, pouco importa. O importante é o processo de liderança e de conflitos; toda empresa tem muito conflito. Só que na empresa capitalista não pode brigar porque quem manda é um só, o dono, então se briga escondido. E, quando a empresa é grande, a quantidade de sabotagem não é brincadeira. Os departamentos mais próximos, como pesquisa e marketing, que deveriam se ajudar mutuamente, disputam verbas, disputam lugares, se sabotam, sonegam informações. Há um ambiente de forte competição meio reprimida na empresa capitalista. Dentro da empresa solidária, os conflitos vêm à tona, ninguém é castigado por brigar, discutir, disputar eleição. Então, provavelmente, o ambiente é um pouco mais sadio, menos reprimido.

Existem experiências de cooperativas grandes atualmente no Brasil?

A maior de todas é a Catende, uma imensa usina de açúcar que cobre cinco municípios. Depois de ir à falência, o seu administrador foi ganho pela idéia da economia solidária e passou a gerenciar essa imensa organização – tem 12.000 pessoas lá dentro ainda – junto com os sindicatos. Os trabalhadores designam pessoas que formam um conselho administrativo, e estão fazendo maravilhas lá. Conseguiram botar uma cana mais produtiva, o que era fundamental. Todas as usinas da Zona da Mata sul de Pernambuco estão quebradas, não moem. Catende é a única que está moendo e produzindo cada vez mais. A primeira vez que eles tiveram sobras decidiram dar uma bolsa de estudo para todos os analfabetos. E agora estão começando a produzir a própria alimentação, então na entressafra não passam mais fome. Há uma revolução acontecendo em Catende que tem uma enorme influência em toda a zona açucareira, que está vendo aquilo funcionar e dando emprego, e o resto semiquebrado ou quebrado.

É possível uma cooperativa de grande porte manter os princípios democráticos?

Olha, tem muitas dificuldades. A democracia sofre. É difícil fazer assembléias com milhares de pessoas, acaba tendo uma gerência profissional com um papel muito semelhante à empresa capitalista; mas os trabalhadores elegem os seus próprios representantes e esses conselhos têm todo o poder na cooperativa, além da direção, que também é eleita por voto direto. É diferente da empresa capitalista, não há dúvida. Desde o século 19, essa questão do tamanho da democracia é um dilema, está sendo discutida por teóricos, já que a concorrência e a própria tecnologia impõem o grande tamanho por causa da escala. Se você só produzir em pequena escala, produz muito caro ou superexplora e paga mal os trabalhadores. Então precisamos aprender como é possível criar grandes organizações – não precisa ser só empresa, a universidade, por exemplo – e ainda assim democráticas. Isso é um desafio. Não desisti de achar uma solução, não individualmente, mas em termos de experiência coletiva.

Existem hoje 23 incubadoras em todo o país, sendo oito no Sudeste, sete no Nordeste, cinco no Sul, duas no Norte e uma no Centro-Oeste. Estima-se que o número de cooperativas atendidas supere os 150, embora não haja dados precisos. “É difícil quantificar porque a lei só reconhece cooperativas que têm mais de vinte associados, então muitos grupos preferem trabalhar como associações”, explica Francisco José Carvalho Mazzeu, coordenador da rede nacional de incubadoras, que interliga treze centros de universidades em Pernambuco, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Segundo Mazzeu, a grande maioria dos grupos incubados fornece serviços de manutenção e limpeza. Dentre as cooperativas de produção, as áreas de atuação mais freqüentes são têxtil, de alimentos, artesanato e produção rural.