Por: Secretaria Executiva do FBES (forum@fbes.org.br)

Há muitos anos sente-se a necessidade e urgência de se estabelecer uma legislação do cooperativismo que dê conta da situação atual deste setor, tão mal amparado pela Lei 5.764 de 1971. Por conta disso, vários projetos de lei foram submetidos à Câmara Federal e ao Senado Federal, mas aparentemente sem maiores avanços, talvez por causa das dificuldades de consensos em torno desta regulamentação.

Em 1969, foi criada a OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras), que teria como missão representar o cooperativismo no Brasil e monitorar as cooperativas, emitindo certificados de filiação que garantiriam que determinada cooperativa seria autêntica, isto é, que estaria seguindo os princípios do cooperativismo. A partir da lei 5.764/71, a OCB passou a ter o caráter de entidade para-estatal, sendo nomeada por essa lei como órgão técnico-consultivo do governo federal.

Entretanto, o fato de haver apenas uma entidade formalmente nomeada como guardiã do cooperativismo e representante das cooperativas brasileiras leva a uma contradição, visto que a constituição de 1988 prevê, nos incisos XVII e XVIII de seu artigo 5, que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização“!

A relação do Estado com as cooperativas tem sido sempre meio ambígua: por um lado, vê-se o cooperativismo como uma maneira alternativa de exercício de atividades econômicas – baseadas em princípios como o da autogestão e da cooperação -, e por outro como uma brecha para se escapar de tributos e leis trabalhistas, através das cooperativas apelidadas de “cooper-gatos”. Estes fatos dão mais força à importância de se modificar a legislação sobre o cooperativismo.

No final do ano passado, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado ficou com a incumbência de definir uma legislação de regulação do cooperativismo, e o Senador Demóstenes Torres foi escolhido por esta comissão como relator para analisar 3 projetos de lei que tratavam deste tema, dos quais ele escolheu o PLS (Projeto de Lei do Senado) 171/99, de autoria do Senador Osmar Dias como sendo a que melhor atenderia ao cooperativismo.

Apesar de ter aspectos interessantes, como a redução do número mínimo de pessoas necessárias para montar uma cooperativa para apenas 7 pessoas (a lei atual exige no mínimo 21 pessoas), esta lei tem vários pontos preocupantes, dentre os quais vale destacar os seguintes:

Unicidade de representação concedida à OCB: ou seja, que a OCB seja formalmente a única entidade que represente o cooperativismo no país;

Registro e Controle concedidos à OCB: um dos pontos mais difíceis e controversos do PLS 171. O projeto prevê que toda a cooperativa terá que se registrar na OCB, de modo que esta tenha a possibilidade de monitorar e fiscalizar as cooperativas;

Admissão de pessoa jurídicas com fins lucrativos nas cooperativas como sócias: este ponto é preocupante, pois significaria um desvirtuamento dos princípios cooperativistas, além de que, com este artigo, aliado a outros do PLS, seja possível abrir uma grande brecha para fraude e evasão fiscal;

Possibilidade de aporte de capital em cooperativas: Este ponto viola outro princípio cooperativista, pois dá a possibilidade de controle de investidores na cooperativa, mesmo sem que eles sejam cooperados diretos;

Ampliação do ATO Cooperativo: o PLS 171 prevê a ampliação da definição de ato cooperativo, para as atividades correlatas. Isto pode vir a trazer grande perda e evasão fiscal, uma vez que o ato cooperativo tem tratamento fiscal diferenciado, conforme a Constituição federal.

No dia 14 de dezembro de 2005, ocorreu uma sessão da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária em que poderia ser aprovada esta lei 171/99. Felizmente, o movimento de Economia Solidária foi alertado, e o Senador Suplicy realizou uma audiência pública com presença, na mesa, do Secretário de Economia Solidária (Min. do Trabalho) Paul Singer e do Secretário de Desenvolvimento Agropecuária e Cooperativismo (Min. da Agricultura) Márcio Antônio Portocarrero. Da sociedade civil estava a OCB e entidades do campo da Economia Solidária, todos do Fórum Brasileiro de Economia Solidária: Anteag, Unicafes, Unisol e Concrab/MST.

A partir do debate desencadeado por esta audiência pública, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado (CRA) decidiu criar um Grupo de Trabalho misto para tentar chegar-se a um consenso entre as partes antes da votação, que ficou então prevista para ocorrer até meados de fevereiro. De fato, desde este dia 14 de dezembro, tem sido intensa a negociação tanto entre as entidades da sociedade civil (as do campo da Ecomnomia Solidária e a OCB), quanto internamente ao governo federal (entre os ministérios do Trabalho, do Desenvolvimento Agrário, da Agricultura e a Presidência da República). Além disso, muitos diálogos foram estabelecidos também entre governo e sociedade civil, na busca de um consenso possível.

Nos dias 31 de janeiro e 8 de fevereiro deste ano, ocorreram duas reuniões formais do Grupo de Trabalho (GT) criado na CRA em 14/12/2005. Nestas reuniões estavam representados a CRA, o governo federal e a sociedade civil, e houve grandes avanços na negociação, tendendo a um consenso em torno da proposta de criação de um Conselho Nacional de Cooperativismo, com composição de 40% do governo e 60% da sociedade civil, e em que as cadeiras da sociedade civil serão entidades representativas do cooperativismo. Em outras palavras, a proposta é a de que haja critérios para que uma entidade possa ter acento no conselho, conforme sua abrangência e representatividade do cooperativismo nacional. Além disso, o Conselho deve credenciar entidades representativas de cooperativas para que estas possam emitir certificados garantindo que suas afiliadas são cooperativas autênticas conforme os princípios do cooperativismo minimamente estabelecidos pelo Conselho.

É uma proposta concreta de quebra da exigência por lei de unicidade de representação das cooperativas: cada cooperativa poderá, então, se filiar a qualquer entidade representativa credenciada pelo conselho, ou mesmo não se filiar a nenhuma. Se filiar-se a uma entidade representativa, esta terá a função de monitorar a cooperativa; se não se filiar a nenhuma, o próprio conselho fará o monitoramento. Em outras palavras, no primeiro caso é a própria entidade representativa credenciada que pode emitir a certificação da sua afiliada, e no segundo caso é o conselho que o emite. Esta certificação seria um critério para garantir que a cooperativa segue os princípios cooperativistas (com variações nas formas de monitoramento e acompanhamento e mesmo em alguns dos critérios para obtenção do certificado dependendo da entidade representativa) e que com isso possa ter acesso a determinados benefícios, como crédito ou financiamento público, ou participação em licitações públicas.

A idéia também é que seja feito um cadastro único das cooperativas, que estará de posse do conselho, que por sua vez terá função consultiva de proposição de políticas públicas de fomento e apoio ao cooperativismo no país, de acordo com a realidade baseada em estudos e pesquisas a partir do cadastro único.

Nesta proposta, uma cooperativa pode ser criada simplesmente através da Junta Comercial, sem necessidade de certidão de entidades representativas antes do registro. Depois disso, a cooperativa fica livre para se decidir a que entidade se filia, ou mesmo se deseja filiar-se.

O governo federal, que apresentou a proposta do Conselho na segunda reunião do GT (8 de fevereiro) a partir das negociações e diálogos interno e com a sociedade civil, também propôs que a lei 171/99 tenha um novo capítulo, dedicado especialmente ao fomento das cooperativas que são muito incipientes e que precisam de apoio na forma de capacitação, benefícios fiscais, desburocratização, crédito e capital de investimento para conseguirem se consolidar. É o reconhecimento do cooperativismo também como forma de inclusão sócio-econômica de pessoas em situação de vulnerabilidade social, como por exemplo desempregados urbanos ou pequenos agricultores familiares.

O GT espera especialmente de nossas entidades do campo da Economia Solidária, em diálogo com a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), uma proposta para este capítulo, que chega a ser considerado também um espaço para o reconhecimento legal de diferentes formas organização econômica que não costumam ser associadas ao cooperativismo atual. Na segunda reunião do GT, chegou-se a chamar este capítulo de “Cooperativas Especiais” ou “Cooperativas de Economia Solidária”, mas o debate ainda está em andamento neste momento, e depende muito das propostas e deliberações das entidades do movimento de Economia Solidária.

Está previsto, portanto, que nas próximas semanas as várias entidades do campo de Economia Solidária e a SENAES estarão preparando uma proposta inicial para disponibilizar ao conjunto do movimento, no sentido de buscarmos consensuar esta lei. O GT propôs à CRA que fosse então adiada a votação deste projeto de lei, até que as emendas sejam elaboradas.

Uma última notícia é que no dia 9 de fevereiro a OCB afirmou ser contrária à proposta do Conselho e às propostas que foram consensuadas na reunião do GT do dia 8 de fevereiro, mas como a OCB não participou daquela reunião (o seu presidente estava em tratamento dentário e não enviou outros representantes), o presidente do GT, Senador Flávio Arns, propôs que fosse dado seguimento ao acordo firmado no dia 8 de fevereiro, sempre na busca de um diálogo com todas as partes, visando a aprovação de um projeto de lei claramente importante para o campo do cooperativismo hoje em dia.