Fonte: Jornal O Globo, por Mariza Louven
Setor é alternativa de emprego para 44 mil pessoas no estado, que atuam em cooperativas e associações
Para mais de 44 mil trabalhadores, no Rio, a solidariedade é mais do que uma palavra que dá o clima do Natal. Virou alternativa ao desemprego, à insuficiência de renda e à marginalidade, segundo pesquisa inédita realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Foram analisados 617 empreendimentos, em 92 municípios, cujas atividades contribuem para o sustento de pelo menos 160 mil pessoas – grupo equivalente à população de Angra dos Reis ou Cabo Frio.
– Começamos como catadores de materiais descartados, em 1973, por necessidade total. Agora, somos 18 pessoas, cinco da minha família, a ganhar a vida transformando lixo em coisas úteis – afirma Luiza Rodrigues Teixeira, de 50 anos.
Luiza está entre os 40% dos entrevistados que disseram ter optado pela economia solidária como alternativa ao desemprego. Na Arte Reciclagem, que funciona em Vilar dos Teles, cada participante consegue tirar cerca de R$450 mensais.
Maioria dos negócios surgiu a partir da década de 90
É o caso, também, dos 22 operários da Cooperativa de Produtores de Parafusos (Cooparj), criada em 1996 após a falência da Fábrica de Parafusos Águia, de Duque de Caxias.
– As pessoas já tinham uma certa idade e dificilmente conseguiriam trabalho no mercado – diz Antonio Barbosa, hoje com 57 anos.
O Mapeamento dos Empreendimentos Econômicos Solidários do Rio faz parte de estudo que está sendo realizado em todo o Brasil por iniciativa de Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária (Senaes), do Ministério do Trabalho, em conjunto com o Fórum Nacional de Economia Solidária. No Rio, a entidade escolhida para executá-lo foi o Ibase, em conjunto com a Delegacia Regional do Trabalho (DRT). O foco foram os empreendimentos solidários cuja principal característica é a autogestão: todos produzem, tomam decisões em conjunto e dividem o resultado.
– Cerca de 87% dos negócios analisados surgiram dos anos 90 para cá, em decorrência da estagnação da economia e do desemprego – diz o cientista político João Roberto Lopes, coordenador geral da pesquisa.
De acordo com o economista Marcio Pochmann, da Universidade de Campinas (Unicamp), o levantamento vai mostrar em que medida essas experiências de resistência ao desemprego se consolidaram como um novo padrão de trabalho e devem ser alvo de políticas públicas.
– A economia solidária é um fato. Tem função econômica e cumpre um papel social. A pesquisa mostrou que 63% dos trabalhadores envolvidos fazem ações comunitárias e cada vez mais se articulam em redes – acrescenta a antropóloga Eugenia Motta, do Ibase.
Mas, segundo ela, falta o estado reconhecer essa forma de trabalho.
– A economia solidária está à margem da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e de todo o processo econômico tradicional, mas é legítima – opina a delegada regional do Trabalho Lívia Aroeira.
Há cooperativas usadas para burlar a legislação trabalhista, mas também as que são uma resposta da sociedade a questões que a economia formal não resolve, acrescenta.
Um dos objetivos do trabalho é criar a categoria de empreendimento econômico solidário para fins de políticas públicas. A idéia se espelha na experiência da agricultura familiar, definida pela Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), das Nações Unidas, e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1995. Isso possibilitou a criação do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf), lembrou Lopes.
Cooperativas têm pouco acesso a empréstimos
Não existe estatuto legal adequado ao empreendimento solidário, acrescenta Lopes, coordenador da pesquisa no Rio. O mais próximo é o das cooperativas e associações, ainda assim ultrapassado.
Por isso, a maioria dos negócios funciona precariamente: 61% estão na informalidade; 54%, em instalações cedidas ou emprestadas; e 45% só conseguiram gerar renda suficiente para pagar as despesas.
– Com o CNPJ, nós pelo menos existimos – afirma Sandra Maria de Souza, da Kit Frutas, organizada sob a forma de associação, situação de 23% dos empreendimentos pesquisados.
Só 7% da amostra já tiveram acesso a crédito e 67% têm dificuldade de comercialização. A Kit Frutas, montada em 2003 para produzir frutas desidratadas em máquinas artesanais doadas pelo Lar Fabiano de Cristo, faz vendas diretas (é o caso de 44% deles) ou em feiras e exposições (como em 26% do total).
– Foi possível identificar os empreendimentos, a maioria na informalidade, porque partimos de contatos de grupos articulados em torno de movimentos sociais e da DRT – explicou Eugênia.
As Arteiras, da Tijuca, reúnem 17 mulheres que, além de produzir cadernos e outros produtos a partir de papel reciclado, participam ativamente da vida da comunidade e de movimentos sociais.
Entrevista com Paul Singer
Opção não só para pobres
Qual é a importância do mapeamento?
PAUL SINGER: A economia solidária cresceu muito e rapidamente no Brasil. Por isso vem despertando o interesse do mundo científico. Há algumas teses sobre um ou outro empreendimento. Esta é a primeira tentativa de ter um retrato de corpo inteiro.
O que está levando a este crescimento?
SINGER: O desemprego em massa e a falta de oportunidade de inserção na economia formal.
A solidariedade muda a atividade econômica?
SINGER: Entre os mais pobres, ela é uma questão de sobrevivência. As famílias se ajudam, cotizando-se para comemorar e para enfrentar dificuldades. A economia solidária formaliza isso. O substrato é o mesmo.
É uma opção só para os pobres?
SINGER: Principalmente, mas não só. Já há mais de 30 incubadoras organizadas por professores e alunos de pós-graduação, em universidades, para acompanhar e dar apoio legal, contábil etc. a esses empreendimentos. A partir desse trabalho, vêm surgindo grupos formados por ex-alunos. A da USP gerou as cooperativas Verso, de psicólogos, e Integra, de engenheiros.