Raquel Salgado/ Valor Econômico

Laércio Telles de Freitas e Sérgio Luis da Silva, funcionário e cooperado da Uniwídia, que surgiu da recuperação de uma metalúrgica que faliu Um mês antes da virada para o ano 2000, o metalúrgico Marco Antonio Coelho, 38 anos, descobriu que começaria o ano novo desempregado. A fábrica onde havia trabalhado durante dez anos entrou em processo de falência e ficou lacrada pela Justiça por 55 dias. Coelho era um dos 90 funcionários que, em dezembro de 1999, permaneciam na folha de pagamento da Cervin. A empresa produzia, na época, entre 100 e 120 quilos de metal duro em Mauá, região metropolitana de São Paulo. Quase nada, se comparado ao auge da produção, em meados da década de 90, quando cerca de 2,5 toneladas eram fabricadas todo mês.

Cinco anos depois, Coelho é metrologista da metalúrgica Uniwídia, cooperativa que recuperou a Cervin. Há um ano e meio, ele ainda trabalhava como retificador, função que exercia na fábrica falida. O bom desempenho da empresa e a formação técnica na área garantiram a ele uma promoção e salário 12% maior, de R$ 2,3 mil. A Uniwídia tem 32 cooperados e 9 funcionários contratados com carteira assinada. A produção mensal está entre 700 e 800 toneladas de metal duro, também chamada de vídia, combinação de cobalto com carboneto de tungstênio.

Coelho trabalha em uma máquina alemã que verifica se os pesos e medidas das peças de metal duro estão corretos. O equipamento foi adquirido pela cooperativa há um ano e meio e custou R$ 70 mil. A compra não foi simples. Sem patrimônio para dar como garantia, mesmo com faturamento mensal de R$ 400 mil, a Uniwídia, assim como a maioria das cooperativas, enfrenta problemas para se financiar. Recorreu ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para conseguir o empréstimo.

A economia solidária ganhou força no país nos últimos anos. De 2000 para cá, o número de empreendimentos solidários mais do que dobrou. Nesses seis anos surgiram 5.772 empreendimentos, mais do que todas as iniciativas desse tipo vistas no país até o final da década de 90, quando chegavam a 5.224. Hoje, são 13.455 identificados em levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego.

O crescimento de atividades ligadas à reciclagem de lixo e o maior número de assentamentos rurais nesse período são algumas das explicações para o avanço das cooperativas. O movimento sindical e as organizações não- governamentais também tiveram participação na evolução da economia solidária, dando suporte e mostrando alternativas de trabalho aos desempregados.

Para o economista Paul Singer, secretário de Economia Solidária, além da introdução de uma cultura em busca de soluções para o desemprego, o sucesso de algumas cooperativas criadas no início da década de 90 serviu de estímulo para novos empreendimentos. “As experiências vitoriosas jogaram luz sobre a economia solidária”.

As cooperativas e associações despontaram no início década de 1990, durante o governo Collor, e continuaram a surgir mesmo depois da crise enfrentada pelas empresas com a abertura da economia brasileira ao mercado internacional. “Se em um primeiro momento muitas dessas iniciativas estavam ligadas à recuperação de uma companhia falida, nos anos mais recentes a busca por alternativas de geração de renda e emprego serviu de incentivo para os trabalhadores se associarem”, avalia Huberlan Rodrigues, advogado e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Além da dificuldade de obtenção de crédito, as cooperativas e associações lutam por modificações na lei das cooperativas, de 1971. Rodrigues comenta que a lei 5764 surgiu por conta de demandas econômicas da década de 70 e foi redigida pensando em um modelo cooperativista no qual os produtores pudessem se associar de forma a ter estrutura para armazenar seus produtos. “Ela não tem instrumentos para o funcionamento das atividades desenvolvidas pelas cooperativas de trabalho e serviços que existem hoje em dia”, diz.

José Ricardo Tauile, estudioso de economia solidária e pesquisador da UFRJ, diz que o Estado ainda não está preparado para esse modelo de gestão. “As políticas públicas voltadas a essas iniciativas são muito fragmentadas”, avalia. “É preciso facilitar o acesso ao crédito, pois elas têm dificuldades para comprovar histórico contábil e dar algo como garantia do empréstimo, uma vez que não possuem qualquer patrimônio.”

Para evitar arcar com o ônus de ser dono de seu próprio negócio o metalúrgico Laércio Telles de Freitas, 59 anos, preferiu não entrar na cooperativa criada após a falência da Cervin. “Fiquei com receio de que não desse certo. Quando se está numa cooperativa, você fica responsável por tudo: pelo sucesso e pelo fracasso”. Mas, poucos meses depois, com dificuldades em arrumar outro emprego, pela idade já avançada, ele retornou à antiga fábrica e como funcionário.

Também o medo de não arranjar outro emprego e a vontade de tomar as rédeas da empresa para a qual trabalha desde 1997 fizeram com que Sérgio Luis da Silva, 41 anos, virasse um cooperado da Uniwídia. “Não faço só meu trabalho do dia-a-dia. Precisamos pensar na gestão da empresa, em economizar, em arrumar clientes”, diz. Sérgio ganha R$ 1,5 mil por mês. Com esse dinheiro consegue sustentar a esposa e dois filhos. “Não quero outro emprego não”.

Em busca de uma política pública de incentivo a esse tipo de empreendimento, o governo Lula criou a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) para estimular essas ações. Segundo Singer, secretário da pasta, é possível que até o final do ano o BNDES aprove a criação de um fundo especial para a recuperação de empresas pelos ex-funcionários. “Os juros devem ser os mesmos já aplicados pelo BNDES, mas o programa vai atender às cooperativas que queiram crédito para comprar a massa falida da empresa”.

Pelos dados do Ministério do Trabalho, a maioria dos empreendimentos solidários, 55%, está organizada em forma de associação e concentrada no setor agrícola (40%). As iniciativas ligadas à produção e serviços também se destacam e representam 26,6% e 10,6% do total. O Nordeste é a região do país que mais conta com esse tipo de empresa: 45,3% do total delas estão lá. A baixa renda da população e o alto índice de desemprego justificam essa concentração. O Sul vem logo atrás, com 23,6% dos empreendimentos. Lá estavam a maioria das associações antes dos anos 90, resultado da cultura dos imigrantes europeus, especialmente alemães e italianos.

Mas nem tudo é uma maravilha. Segundo Tauile, os empreendimentos solidários costumam passar por dois tipos de crise. Uma de curto prazo, que diz respeito à sobrevivência imediata: como pagar as contas no final do mês? Quando esse primeiro desafio é superado, aparece outro: onde essa empresa quer chegar? “É aí que entra a necessidade de uma política pública de Estado, e não de governo, que olhe para a economia solidária”. Redução de tributos e linhas de crédito especiais são algumas das reivindicações dos cooperados.

“Pagamos INSS duas vezes aqui. A cooperativa paga 20% sobre a folha de pagamento e o cooperado contribui com mais 11%”, reclama Aziel Pereira da Silva, ex-funcionário da Cervin e atualmente presidente da Uniwídia. E não há como escapar desses tributos.

Elias Domingos Parente, de 56 anos, que o diga. Trabalhando na Cooperlimpa, cooperativa de reciclagem de lixo de Diadema, o ex-metalúrgico caiu de um caminhão lotado de garrafas pet e fraturou os dois punhos. Ficou dois anos de molho. Como nenhum dos 18 cooperados contribuía para o INSS, resolveram tirar do próprio bolso o salário de Parente, que continuou a receber durante todo esse tempo.

“Foi um sufoco, mas não podíamos deixá-lo na mão”, conta o presidente da Cooperlimpa, José Lacerda. Os cooperados aprenderam a lição. Há cerca de dois anos e meio contribuem mensalmente como autônomos para o INSS.

Hoje, a cooperativa vende 25 toneladas de lixo reciclável por mês. Com isso, a retirada média dos trabalhadores está entre 1 e 1,5 salário mínimo. “Já chegamos a vender 40 toneladas por mês, mas sofremos com a concorrência”, diz. São os catadores, que circulam com carroças por Diadema e recolhem boa parte do lixo reciclável.

“O desempenho das associações e cooperativas é muito irregular. Há aquelas que funcionam por pura teimosia, e onde os trabalhadores ganham bem menos do que o mercado pagaria”, analisa Tauile. É o caso da Cooperlimpa, que tenta entrar no ramo de reciclagem de óleo de cozinha para servir como biocombustível. Caso a iniciativa dê certo, os salários serão engordados em pelo menos 20%.

Parente não reclama do trabalho. “Se não estivesse aqui, estaria desempregado. Tenho mais de 50 anos, o que dificulta muito.” Com a ajuda de três filhos, vive com a esposa na casa que acabou de construir com o salário da cooperativa.