O dia-a-dia numa fábrica “recuperada” de Buenos Aires

Por Marcia Carmo

Fonte: Revista Carta Capital, número 365, de 26/10/2005

“A fábrica quebrou. Ninguém pode entrar.” Osvaldo Donato, 44 anos, lembra, com olhos marejados, aquela frase seca, dita por alguém engravatado no portão da fábrica Cristalux, em Avellaneda, a uma hora e meia de ônibus do centro de Buenos Aires. “Eu não sabia se saía correndo, se forçava a porta para entrar ou se chorava”, recorda. Ele era um dos 800 trabalhadores daquela que foi uma das maiores fábricas de pratos, garrafas, copos, termômetros e outros produtos de vidro da região. Sua marca, Durax, famosa em vários países, era aquela cujos pratos e copos não quebravam, mesmo quando jogados no chão.

História

A Durax em sua nova fase Donato conta a trajetória da Cristalux, dentro da própria empresa. É uma quarta-feira de altas temperaturas em Buenos Aires e aquele calor das máquinas transforma o lugar quase num forno. Mas Donato, pai de três filhos, está acostumado. Ele chegou ali para trabalhar em 1979, sofreu com as portas fechando, naquele dezembro de 2000, e, tempos mais tarde, com cinco ou seis amigos, achou que a única saída era salvar a fábrica. Eles ficaram desempregados durante um ano e oito meses. “Primeiro, fizemos acampamento na porta para tentar evitar mais saques e a destruição do que tinha ficado na empresa”, conta. “Depois, entramos, fizemos mutirão de limpeza e aos poucos fomos colocando as máquinas para funcionar.”

Foi um processo de resistência. A luz estava cortada e eles aproveitavam o dia para trabalhar dobrado. Durante meses, Donato e outros trabalhadores iam e voltavam para casa caminhando. Não tinham o dinheiro do ônibus. E muito menos para a comida em casa. As poucas louças que faziam trocavam por alimentos no armazém da esquina. Hoje, a Durax, assim batizada pelos 120 trabalhadores, que ali se revezam dia e noite, produz 40 mil peças por mês. “Nossa produção atual é equivalente a 10% da capacidade da fábrica. Mas vamos avançar mais e chegar lá”, diz Carlos Armas, de 58 anos.

Armas está apoiado numa bengala, resultado de dribles malfeitos numa pelada com amigos de Lanús, ao lado de Avellaneda, no chamado primeiro cordão da Grande Buenos Aires. Como Donato, que dirigia elevadores de carga, também começou trabalhando na Cristalux, mas como projetista. Depois, estudou engenharia mecânica, virou empregado da Mercedes-Benz e outras grandes empresas. Até ficar desempregado. “Vim aqui e me ofereci para fazer parte do grupo. Eu disse: aceito qualquer trabalho, mesmo na limpeza”, conta. “Não disse a ninguém que eu era engenheiro. Meu objetivo era emprego”. Armas é agora, segundo seus “sócios” na empresa, “peça-central” numa engrenagem que muitos apostaram pifada de vez.

Pai de três filhos, o engenheiro integra, com Donato e “outros companheiros”, o conselho da cooperativa da Durax. A rotina naquele prédio, na avenida Hipólito Yrigoyen, onde sobressaem os esqueletos de outras fábricas quebradas, começa para vários às 6 da manhã. Eles batem cartão, dão bom dia ao porteiro Cornelio Ledesma, de 60 anos e mais de 25 trabalhados naquele endereço, pegam capacete e luvas, dependendo do setor de produção, e parecem orgulhosos. “Trabalho aqui desde o início da recuperação da fábrica. Recebo 600 pesos por uma jornada de oito horas, seis dias por semana. Essa empresa também é minha”, diz Veronica Balzaca, 23 anos. “Não pensei que fosse ter trabalho assim. Só posso comemorar”, afirma Fabio Díaz, também de 23 anos, vidreiro hoje e até há dois anos biscateiro.

Quanto mais fumaça liberam as chaminés da Durax mais jovens se aproximam para deixar seus currículos. Talvez a diferença dessa fábrica para outras não esteja apenas na persistência dos trabalhadores, mas, como diz o metalúrgico Víctor Vázquez, no “rápido” intervalo em que ela ficou desativada. O que permitiu, conta Donato, promovido a coordenador do depósito, recuperar clientes. “Para reconquistar a freguesia, oferecemos preços mais baixos que a concorrência”, revela. Hoje, os salários ali variam entre 500 e 600 pesos.

Vázquez, 44 anos, pai de um filho, sonha com o dia em que poderá contar histórias semelhantes às da Durax. Na viagem de ônibus entre o centro de Buenos Aires e Avellaneda, a primeira localidade depois do malcheiroso rio Riachuelo, ele fala do seu desejo de construção. “Ver a fábrica Sasetru gerando 350 empregos e produzindo vários tipos de massas.” A Sasetru está a 15 minutos da Durax, em frente à Villa Sapito (favela Sapinho). Ali, há três anos, ele e outros 110 desempregados e moradores do bairro abriram os portões da fábrica abandonada, que tinha sido uma das líderes na produção de alimentos na América Latina. O abandono das instalações durou 20 anos, até 2002, na crise argentina. Com enxadas e ferramentas, eles renovaram aquele lugar, agora com paredes verdes. Mas ainda mergulhado num deprimente silêncio.

“Estamos pedindo ao governo a ajuda de 1,5 milhão de pesos para que ela volte a funcionar. Está difícil”, diz Vázquez. “Sete mil pessoas trabalharam aqui e 35 mil em todas as fábricas da Sasetru no país. Por que não fazer isso tudo funcionar? Vai gerar empregos”, ressalta. Vázquez sobrevive como eletricista, em trabalhos esporádicos, desde que ficou desempregado em 1998. Ele é do partido Polo Obrero, um dos braços que participam da “recuperação” das fábricas. Os empresários preferem usar o termo “usurpação”, principalmente se existe briga na Justiça.

Opção

A ocupação de fábricas garantiu emprego a 15 mil pessoas, como Carlos Armas e Osvaldo Donato No total, como conta o professor da Universidade de Buenos Aires, Pablo Heller, existem 200 fábricas recuperadas. Um terço delas de pequeno e médio porte. Juntas, elas geram 15 mil empregos. “São pessoas que estariam desocupadas, não fosse essa iniciativa”, afirma. Autor do livro Fábricas Ocupadas, ele entende que os setores que mais cresceram na nova era econômica da Argentina foram os que mais beneficiaram as “recuperadas”. Caso do Hotel Bauen, na avenida Callao, no centro de Buenos Aires. Há pouco mais de um ano, quando os empregados já tinham aberto seus portões e colocado o café para funcionar, o ar ali era melancólico. Agora, quando o turismo nacional e internacional bate recordes na capital do tango, seus pisos brilham, as paredes exibem uma pintura nova, os salões de conferências vivem lotados e os quartos idem.

“Temos 160 quartos habilitados, mas hoje todos estão ocupados”, avisa o recepcionista José Alvárez, 49 anos, casado, dois filhos. “Eu carregava malas, quando o hotel fechou. Agora, sou recepcionista”, diz, orgulhoso. O hotel de três estrelas tem 120 empregados, reunidos numa cooperativa, cobra 120 pesos a diária e, vira-e-mexe, seu nome aparece nos anúncios dos jornais, reclamado pelos antigos donos. Mas o ritmo do hotel, que recebe delegações de Cuba e da Venezuela, e espetáculos múltiplos no seu anfiteatro, não pára. Vázquez acha que, para esse ritmo das “recuperadas” continuar, os diferentes movimentos devem unir-se. Por isso, eles se reunirão no próximo fim de semana, na Venezuela, onde Hugo Chávez abrirá o encontro dessas fábricas na região.