Fonte: Cáritas Brasileira (www.caritasbrasileira.org)

Marchantes seguem em direção a Brasília no dia 16

Frederico Rick

O calor intenso e seco durante o dia, as noites frias dormidas em colchões no chão, a caminhada diária de cerca de seis horas não foram empecilho para que o trabalhador Geovani Rangel saísse de seu acampamento, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com sua mulher e três filhos pequenos e se juntasse a outros 420 companheiros de Minas Gerais, que se somaram a outros tantos trabalhadores e trabalhadoras de 23 estados do Brasil, compondo a grande fileira de 12 mil Sem Terra, que seguiram em marcha de Goiânia até Brasília, do dia 1º ao dia 17 de maio, num percurso de 238 km.

Geovani explica que se fosse sozinho, não seria a mesma coisa. "Se não fosse essa marcha, nem eu, nem meus filhos, nem minha mulher, não tava sabendo de nada, só o que a burguesia coloca para gente, a mídia. Só o conhecimento liberta", afirma. Mesmo cansado, ele, sua mulher e as três crianças – de 4, 6 e 7 anos – retornam ao acampamento Carlos Lamarca modificados para o futuro.

A mídia a que se refere Geovani escolheu, mais uma vez, tratar a grande mobilização como caso de polícia. Manchetes agressivas nos jornais impressos, sobriedade falsa na televisão, ironias em matérias radiofônicas tentaram enfatizar apenas os incidentes, virando as costas e os gravadores à imensa massa branca e vermelha que peregrina em seu próprio país em luta por terra, justiça e participação.

"Depois dos primeiros dias da marcha a imprensa mudou totalmente o foco e tentou desvirtuar os objetivos do que a gente quer com esse movimento, colocando histórias peculiares e insignificantes em destaque sobre a beleza e o tamanho que tem a marcha", explica Vanderlei Martini, da direção estadual do MST.

Organização

Joana Tavares

O tamanho da marcha impressionou o garoto Maicon André Almeida, que do alto dos seus 6 anos de idade, possui a experiência de duas marchas. Ele e sua família vieram da regional Rosinha Maxacali, no Vale do Jequitinhonha, do acampamento 16 de abril. Sua irmã Juliana Almeida, de 7 anos, achou muito bonito o "tanto de bandeiras vermelhas". Sua mãe gostou mais das místicas, cada dia organizada por um estado, e seu pai Manoel Lopes de Almeida disse que não tinha como resumir tudo o que aprendeu, mas "a coisa mais importante que eu achei foi a organicidade, tudo muito bem organizado, todo mundo em fileira. Nesses dias todos não teve confusão nenhuma".

Para garantir a organização, os marchantes foram divididos em núcleos, brigadas e setores. Os responsáveis pela infra-estrutura, por exemplo, desmontavam todos os dias o acampamento e seguiam para o próximo local, deixando as barracas prontas para quando os marchantes chegavam. A equipe de segurança seguia de perto as três fileiras, garantindo a integridade dos pedestres e a organização das filas. A equipe da cozinha preparava e distribuía diariamente 24 mil marmitas. Várias outras equipes garantiram a organicidade da marcha, como a de comunicação, que produzia todos os dias o programa Brasil em Movimento. Com o rádio colado ao ouvido, além do programa e das músicas, os marchantes tinham à tarde uma formação, que vinha pelo rádio.

Maria Aparecida Alves, mais conhecida como Cidona, veio do acampamento Franco Duarte, no Vale do Jequitinhonha e compunha a equipe de saúde. "Estou aqui contribuindo com a organicidade da marcha e contribuindo para que todos os companheiros e companheiras estejam saudáveis para marchar até o dia. Marchar é preciso. Marchamos porque lutamos por um Brasil socialista, por liberdade, por soberania, lutamos porque precisamos buscar aquilo que sonhamos. Só vamos conquistar as nossas metas e os nossos sonhos lutando. Por isso que eu luto sempre".

Preparação para a marcha

O processo de preparação para a marcha foi realizado em todas as instâncias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Vanderlei Martini, da direção estadual, explica que primeiro houve a discussão na direção estadual e depois na coordenação estadual sobre a importância da marcha. Em seguida, foi feita a discussão nas coordenações regionais, que por sua vez a passou para a coordenação dos assentamentos e acampamentos para enfim ser feita em todos os núcleos de base.

Além de fazer a discussão, houve um estudo de dois dias para a preparação das pessoas que iam para a marcha. Quem ficou nas áreas também aprendeu sobre seu significado para saber conversar com a sociedade local.

"Uma avaliação da Coordenação Nacional do MST é que a marcha nos elevou para um outro patamar, ela colocou o MST num outro patamar diferente desses 21 anos. Nunca na história do MST a gente tinha feito uma atividade tão grande, com tanta gente, dos 23 estados, com participação dos acampamentos e assentamentos, da juventude, das companheiras, das equipes. O novo que está colocado para nós agora é o seguinte: nós vamos ter que superar as ações pequenas. Temos que fazer ocupações massivas, marchas massivas, fazer tudo grande, com muita gente, muita organização. Outra coisa importante da marcha foi a questão do estudo. O aprendizado foi uma coisa ímpar na história do MST. Fantástico. Foram os 18 dias de formação mais intensivos que nós tivemos", afirma Vanderlei.

Rumo à Embaixada, Ministérios e Congresso Nacional

Adauto Silva, acampamento Pastorinhas

No dia 17 de maio, trabalhadores de diversos setores, estudantes, atores e demais simpatizantes engrossaram as fileiras da marcha e entraram na Esplanada dos Ministérios. Ronilda Soares dos Santos foi uma das participantes do último dia da marcha. "Na vinda pra cá hoje, olhando para aquela terra, aquela paisagem, eu fui entender o que eles vieram fazer aqui, comecei a entender o que é Reforma Agrária. Acho que o caminho é esse, é um povo unido, a gente vê a solidariedade das pessoas. A gente emociona mesmo, sente o braço arrepiar, e pensei ‘acho que estou no lugar certo’. Me senti fazendo parte desse grupo mesmo", conta a agente Cáritas, que foi a Brasília com outras 12 pessoas de Belo Horizonte.

O primeiro ato público do último dia da marcha foi nos fundos da embaixada dos Estados Unidos. Sob o olhar de 200 policiais, os marchantes queimaram simbolicamente o lixo produzido pelo império. O próximo ato foi em frente ao Ministério da Fazenda. Além de erguer faixas de protesto, os marchantes se sentaram para ouvir a palestra do presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, o professor Plínio de Arruda Sampaio, que explicou as mudanças de modelo econômico adotado pelo Brasil desde a década de 30. Em seguida, os marchantes seguiram até o Congresso Nacional.

A Polícia Militar tentou retirar os manifestantes do gramado em frente ao Congresso, ameaçando os Sem Terra com os cavalos e fazendo vôos rasantes com o helicóptero. O confronto, que rapidamente foi controlado, deixou um saldo de 30 feridos e fez manchete em muitos jornais do dia seguinte. O MST publicou no seu site uma nota de repúdio. "Nesses 21 anos, o MST nunca foi adepto e nem adota princípios da violência para resolver o problema da Reforma Agrária no Brasil. Somos contra o uso de armas para resolver problemas sociais. Queremos uma justa distribuição da terra, onde todas as famílias possam viver e trabalhar com dignidade", consta trecho da nota.

Marcha em família

O mesmo senso de luta e amor à militância levou Bernardo Moreira de Souza, de 16 anos, e José Divino Moreira de Souza a se reencontrarem na marcha. Bernardo mora no assentamento Barro Azul, em Governador Valadares, e José Divino no acampamento Mãe Esperança, em Teófilo Otoni. Pai e filho eram só chamegos nos momentos de descanso da marcha. Além da alegria do reencontro com a família, José Divino aponta o desenvolvimento da identidade nacional do MST como ponto positivo da marcha. "Com a marcha, que é massiva, as pessoas se misturam, convivem, trocam experiências. Assim o Movimento fica mais forte e todos podem retornar com disposição muito maior, sem grandes ilusões. Com disposição de se animar mais na luta", diz. "Para mim está apenas começando. Se a gente luta por alguma coisa, agora que está começando de verdade e a gente tem que continuar", completa Bernardo.

Reivindicações

A pauta de reivindicações da Marcha Nacional pela Reforma Agrária continha 16 itens, que iam desde mudanças na política econômica ao cumprimento da meta do governo de assentar 430 mil famílias até o final do mandato. Cinqüenta representantes do Movimento se reuniram com o presidente Lula, que reafirmou seu compromisso com as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária, mas se manteve reticente quanto ao cumprimento das reivindicações. Os pontos que foram discutidos com o governo estão disponíveis em: www.mst.org.br/informativos/especiais/marcha/noticias57.htm