Fonte: Folha Opinião – 30 de março de 2005
Autor@s: Rose Marie Muraro e Marcos Arruda
Na pré-história as pessoas faziam trocas diretamente, sem necessidade de dinheiro ou de um padrão que as balizasse. Isso era o escambo. Nessas transações ninguém perdia. Era uma matemática do ganha/ganha. A invenção da moeda trouxe a compra e a venda. E o lucro surgiu quando foi possível vender um produto por um valor acima dos custos da sua produção. A moeda foi por muito tempo apenas meio de troca e símbolo do trabalho realizado para trazer o produto ao comprador. Quando ela ganhou um preço -os juros-, passou a ser também reserva de valor, funcionando como mercadoria que se compra e se vende.
Era o início da matemática do perde/ ganha: para um ganhar, o outro tinha que perder. Essa veio a ser a matemática econômica dos últimos 5.000 anos. Desse modo se explica a riqueza de umas nações em detrimento de outras e a de um indivíduo em detrimento de outros. Não era mais a matemática em que ambas as partes atribuíam o mesmo valor a um produto, mas aquela cujo valor era atribuído por quem tivesse maior capacidade de barganha. Esse tipo de troca perde/ganha gerou o mercado competitivo e as suas complexidades, a concentração de riquezas na mão de cada vez menos pessoas e o empobrecimento de cada vez mais pessoas. Isso acabou dando no que se chama globalização.
Ora, esse segundo tipo de matemática está levando o mundo a um terrível jogo de perde/perde: em médio prazo todos acabam perdendo. E a ganância dos que querem ganhar cada vez mais, na medida em que vão lucrando, leva a esse jogo terrível e mortal, porque, colocando o lucro como valor único, não se importam com a destruição de comunidades inteiras e do meio ambiente.
O exemplo máximo é o que está acontecendo com a natureza: ela já perdeu 30% da sua capacidade de regeneração, segundo a ONU, devido ao excesso de uso dos seus recursos. E, se os países em busca de lucro continuarem a despejar toneladas de CO2 na atmosfera no ritmo atual, de acordo com o biólogo Robert Watson, isso levará o nível do mar a continuar crescendo por mais 2.000 anos ("Jornal do Brasil", 23/11/00).
Então, o caminho capaz de reverter esse processo perde/perde seria o da volta da matemática do ganha/ganha, recentrando a economia nos valores humanos em vez de nos lucros. Se os valores femininos são os da cooperação e da proteção à vida -o ganha/ganha-, e os masculinos os da competição e da busca do lucro a qualquer preço -o perde/ganha e o perde/perde-, ver-se-á que a pré-história encarna os valores femininos, e o período histórico, os masculinos. E como seria a matemática do ganha/ganha no século 21? Dois exemplos do que já está sendo feito poderão nos dar uma idéia.
O lucro surgiu quando foi possível vender um produto por um valor acima dos custos da sua produção
O primeiro são as feiras de troca, já existentes pelo menos em 60 países. E a mais interessante foi a da Argentina, na época da crise aguda de 2002-2003. Nesses dois anos, essas feiras atraíram quase 5 milhões de pessoas empobrecidas que trocavam entre si mercadorias e serviços sem precisar da moeda nacional -o peso-, porque usavam como meio de troca uma moeda complementar -o crédito-, criada coletivamente e feita em computador. Nesse sistema não há interesse em acumular moeda justamente porque ela não é reserva de valor, associada a uma taxa de juros. Desse modo, tirou-se do mercado competitivo cerca de US$ 2 bilhões, ao mesmo tempo em que se permitiu que os pobres trocassem alimentos, serviços e outros bens entre si sem gastar pesos.
Outro exemplo: uma firma paulista da área agroquímica, muito endividada, decidiu apostar nos seus funcionários, investindo no aumento da remuneração, na saúde, no lazer e, principalmente, na democratização do capital. Assim, ela conseguiu reverter a sua situação econômica e alcançar um grande desenvolvimento, compartilhado por todos. E hoje já existe um número cada vez maior de firmas desse tipo. Nos Estados Unidos, firmas geridas desse modo, conduzidas por homens ou por mulheres, cresceram numa década 129%, ao passo que outras, geridas pelo modelo perde/ganha, só 85%.
Na Índia, o Coletivo de Mulheres de Tamil Nadu vem gerindo solidariamente as finanças, a produção e o consumo. O mesmo fazem cerca de 2 bilhões de habitantes do planeta ainda não monetizados, segundo a economista americana Hazel Henderson. Ainda segundo ela, se todo esse trabalho não monetizado fosse computado no PIB mundial, acresceria um valor estimado em US$ 16 trilhões (Folha, 27/8/04).
Vários países já estão tentando colocar nas suas contas nacionais valores humanos em vez de agregados macroeconômicos abstratos, reduzindo assim os seus déficits e os transformando em superávits, como fizeram os EUA no governo Clinton, o Canadá e a Suíça. O presidente Lula está tentando tirar do superávit primário os investimentos em infra-estrutura, o que humanizaria muito as nossas contas nacionais.
Quanto mais países tirarem os investimentos da reserva dedicada aos juros, mesmo à revelia do FMI, mais chances haverá de chegarmos a um ganha/ganha e revertermos o processo de destruição do planeta.
Rose Marie Muraro, 74, editora e escritora, é membro fundadora do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Marcos Arruda, 64, economista, é diretor do Instituto para Políticas Alternativas para o Cone Sul.
O jornal mais importante é o da comunidade
fonte: observatório da imprensa (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/)
Autora: Ivani Cunha (Jornalista)
As pessoas acostumadas a ler jornais diários, e mesmo aquelas que os folheiam ocasionalmente, podem falar sobre a impressão de que, naquelas páginas, faltam muitos assuntos de interesse real da população. É que a maioria desses jornais, inclusive os chamados "populares", está muito voltada para os temas nacionais e internacionais, o noticiário sobre as celebridades da TV, a cobertura do esporte e da violência. Reportagens, notas e comentários dessas áreas aparecem com poucas variações nesses jornais. Grande parte desse material é fornecida pelas agências de notícias, e o restante produzido pelos repórteres das publicações específicas com base nas mesmas pautas ou roteiros, como se fosse tudo combinado entre os editores.
Para o caso do grande volume de matérias enviadas por agências, sabe-se que esse recurso diminui o custo de produção do jornal. Já as matérias locais parecidas ou iguais são produzidas com inspiração no noticiário de rádio, da TV e da internet. Os repórteres, muitas vezes, apenas dão continuidade aos temas levantados por esses meios, que oferecem (há quem escreva "disponibilizam") a informação praticamente em cima do acontecimento.
Além disso, os jornais têm que trabalhar depressa para fechar as edições num horário que possibilite a sua presença nas bancas mais distantes do estado ou do país antes de o Sol nascer. Portanto, fica muito difícil seguir o conselho de Ricardo Noblat no livro de sua autoria, A arte de se fazer um jornal diário (Editora Contexto). Os jornais devem se esforçar para explicar os fatos em vez de continuar insistindo apenas em contar o que aconteceu no dia anterior (até o início da noite, pois o deadline está cada vez mais apertado), porque as pessoas já sabem quase tudo ou os fatos mais importantes, que foram transmitidos por outros meios.
O tempo que se gasta para escolher os temas, buscar a informação, redigir os textos e editar um jornal diário não é o único problema. Sabe-se que as redações não contam, atualmente, com um número de jornalistas experientes que possa garantir a rápida produção de matérias analíticas sequer sobre os principais temas do dia. No caso de reportagens investigativas ou exclusivas há o problema do custo, até porque devem ser feitas por repórteres especiais, que ficam por conta desse trabalho durante dias, às vezes semanas ou meses.
Alerta aos aventureiros
Por causa desses empecilhos, os jornais diários, em geral, parecem não dar importância à proposta de oferecer edições que expliquem os fatos. Alguns se limitam a comentar a notícia em poucas linhas. Leitores mais exigentes, que paralelamente assistem à TV, ouvem rádio ou usam a internet, percebem isso e já procuram publicações que atendam mais a seus interesses. Estão prestando também mais atenção nos jornais de suas comunidades, porque ali encontram a informação que os grandes jornais ignoram ao insistirem na mesmice das coberturas.
As pessoas que não têm acesso aos jornalões, por causa do dinheiro que teriam de desembolsar ou por outros motivos, constituem a grande massa potencial de leitura dos jornais comunitários, que podem ser vendidos a preço mais em conta ou até distribuídos gratuitamente, dependendo de patrocínios e parcerias. Tais publicações, quando são bem feitas, falam a linguagem dos leitores e atendem diretamente a seus interesses. Uma coisa puxa a outra e, da mesma forma, as empresas instaladas no universo em que circulam esses jornais também acabam se convencendo de que essas publicações merecem patrocínio e parceria.
Mas não se enganem os aventureiros, pois os empresários escolhem com rigor o espaço para anunciar seus negócios. A possibilidade de contar com esse apoio, de fundamental importância para um jornal, é mais uma razão para se fazer jornalismo de qualidade, capaz de informar, entreter e contribuir para a formação dos leitores.