Crédito ou Desenvolvimento? Que Desenvolvimento?

(Ademar Bertucci)

Vez ou outra as preocupações com a Economia Solidária ficam restritas às questões do crédito, do microcrédito, do financiamento dos empreendimentos. Ainda que o crédito seja fundamental, é insuficiente para pensarmos a economia solidária. E nesse sentido, eu gostaria de tentar refletir sobre o outro lado, que é o lado da cidadania, é o lado do sujeito, é o lado do protagonismo.

No caso da Cáritas Brasileira, essa preocupação está vinculada ao universo do mundo dos excluídos. A Cáritas está trabalhando há cerca de 20 anos com fundos de apoio a pequenos projetos. Entre os pequenos projetos, também os projetos produtivos. A iniciativa de trabalhar com esses projetos tem a ver com o Nordeste. Foi num período de seca no final dos anos 70 para o início dos anos 80. Não era só a seca. Os dados sobre a concentração de renda do Brasil começavam a se tornar cada vez mais alarmantes. Ao mesmo tempo a nação era conduzida pela Ditadura Militar. Por isso mesmo, o nome dado aos pequenos projetos (Projetos Alternativos Comunitários-PACs) tem a ver com o modo de se entender há 20 anos, o seu papel político, que de alguma forma, permanece ainda hoje. O “P” de “projeto” propunha ações organizadas com fins de mudanças, negando a ação assistencial, “filantrópica”, de “doações” que mantém dependências. O “A” de “alternativo” buscava formas criativas de sobrevivência que permitissem às comunidades o exercicío de sua autonomia. Autonomia tem um pouco a ver com sustentabilidade? Tem. E se restringe aos elementos econômicos? Não exclusivamente! E o “C” de “comunitário”, na perspectiva da solidariedade? A Cáritas trabalha com o conceito de solidariedade. É o caminho das ações de todas as linhas da Cáritas; a solidariedade. O aspecto comunitário garantia, algumas vezes de modo até excessivamente rígido, a opção por atividades associativas, grupos produtivos, cuja solidariedade interna estivesse presente

No começo dos anos 90, a avaliação de resultados desses projetos permitiu algumas constatações que permearam o caminho da afirmação da economia popular solidária.

Sementes. Os pequenos projetos sempre se revelavam como sementes de possibilidades das pessoas, juntas, enfrentarem a sua situação de pobreza, de miséria e exclusão. Como semente, as avaliações sempre se mostravam muito úteis, mas absolutamente insuficientes para a solução de problemas que não fossem localizados no pequeno grupo e, assim mesmo, apenas por algum tempo, porque depois de algum tempo, aquilo também se esvaziava.

Organização. O resultado forte evidenciado pela avaliação dos PACs era o lado da organização. Os projetos produziam resultados muito para além da questão econômica, mas os resultados do ponto de vista da organização. Portanto, tem a ver com a questão da cidadania, do sujeito, do sujeito coletivo. É claro que essa avaliação permitiu dizer que esses pequenos projetos ou essas iniciativas de grupos de comunidades, se tornavam mais eficazes quando elas estavam articuladas a movimentos sociais.

Movimentos Sociais. No caso dos grupos com os quais a Cáritas trabalhava, havia uma forte presença das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs. Então esses projetos vieram ajudar a fortalecer o movimento das comunidades. Entre esses projetos destacam-se aqueles de apoio, nos anos 90, ao grande movimento nacional da luta pela Reforma Agrária, que juntou parcela da Igreja, a Pastoral da Terra e o iniciante Movimento dos Sem-Terra, que hoje ao nosso ver, representa o grupo social desse campo da exclusão social que de fato se tornou sujeito. Hoje são os movimentos dos catadores de lixo, da defesa da convivência com o semi-árido, dos quilombolas, das mulheres, etc.

Alternativo a quê? Também a partir daí, se percebeu que os projetos alternativos tinham sido colocados durante a ditadura, numa perspectiva de alternativa às propostas (ou falta de propostas) do governo da época. Para a Cáritas, a questão do governo e do Estado, exigiu a reflexão ligada à cidadania. Isso ocorreu num momento forte que foi o período de transição do governo Collor para o de FHC, quando emerge o movimento de cidadania, de combate à fome, do Betinho (IBASE) e D. Mauro (CNBB). Que se retoma hoje.

Políticas Públicas. Naquele momento a Cáritas foi uma das entidades parceiras de grande peso no CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) . Para a Cáritas, tratava-se de entrar nessa discussão de políticas públicas. Como consequência, ela também contribuiu, em seguida, para elaboração do PROGER. A idéia do PROGER, do Ministério do Trabalho, dos recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador, um recurso dos trabalhadores), era de assegurar uma política voltada para o combate à exclusão social na perspectiva de atividades mais permanentes e estruturantes e menos emergenciais da primeira fase do movimento de combate à fome, que eram as cestas de alimentação. Então nesse sentido, a Cáritas teve um papel relevante em relação a essas duas iniciativas de ordem pública, na conjuntura em que isso se dava.

Tais iniciativas foram abortadas na conjuntura seguinte do governo FHC: o CONSEA se transfigurou, perdeu seu caráter de representação da sociedade civil e o PROGER tomou outros rumos e perdeu a perspectiva inicial de um projeto integrado onde a questão do crédito era apenas uma das vertentes.

Dos PACs à Economia Popular Solidária. Em meados dos anos 90, no Rio Grande do Sul, a Cáritas, ao compor com um conjunto de entidades o Fórum Estadual da Economia Popular Solidária, iniciou uma pesquisa junto com algumas forças sociais do estado. Entre elas, a Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), o Movimento Sem-Terra e as primeiras iniciativas de Bancos ou fundos públicos populares que começavam a acontecer na Prefeitura do Rio Grande do Sul. É dessa pesquisa do Rio Grande do Sul, que vem a contribuição da Cáritas, para evidenciar, na prática, a possibilidade de convivência do espírito solidário com o espírito empreendedor, base de estruturação da da Economia Popular Solidária. Então a perspectiva de se pensar que a economia não é apenas um espaço de exploração do trabalho humano a favor de uns e contra outros, a reflexão das experiências ocorridas vai nos levar a algumas constatações que hoje são mais ou menos óbvias. Do conjunto de experiências sistematizadas, de fato apenas 6% se caracterizavam com dificuldades de trabalhar essa questão do espírito solidário junto com o empreendedorismo.

Relações internas: a auto-gestão. Aí vêm algumas questões ligadas às relações internas e externas das iniciativas. É possível combinar valores da cooperação com valores da competência técnica? É. Eu até diria que os “metodólogos” em algum momento do passado (não sei hoje), desenvolveram e aplicaram metodologias participativas, coletivas, de administração de empreendimentos. Tais abordagens permitiram fugir daqueles modelos de transposição de toda metodologia empresarial do grande capital para as pequenas e microempresas, sem levar em conta a sua realidade, inclusive a sua natureza que não é acumulação de capital. Então é possível a competência do ponto de vista societário, do ponto de vista da cooperação, do ponto de vista da administração colegiada ou coletiva. Isso é possível e a pesquisa mostrava isso.

Relações externas: o desenvolvimento sustentável. Mais do que essa possibilidade da auto-gestão de um empreendimento, o que se mostrava fundamental – e aí volta novamente a discussão -, é a relação desses pequenos empreendimentos com seu “meio ambiente”. Está claro que nenhum pequeno empreendimento sobrevive por si só. E essa questão da sustentabilidade, de avaliação da eficiência econômica isolada está furada. Não dá para ser analisada sozinha. É um equívoco essa ótica de “desenvolvimento sustentável” que busca a sustentabilidade localizada num grupo. Por isso que a discussão de mais ou menos juros é irrelevante se nós pensarmos a questão de desenvolvimento de uma outra forma. Se pensar a questão de desenvolvimento só pelo ângulo economicista, ele não dá conta da nossa realidade na sociedade. Não tem sustentabilidade econômica nenhuma, em nenhuma situação do capitalismo, que não seja dado por alguma acumulação de recursos públicos. E o grande capital sabe fazer bem isso. Mas nós ficamos transferindo responsabilidades de sustentabilidade para os pequenos, para não ser “assistencialistas”. Responsabilidades de coisa que não é da ordem econômica, mas da ordem de direito!

Origem e constituição de fundos de apoio. A Cáritas, assim como a rede de organizações que atuam com Fundos Solidários, trabalhou até recentemente com recursos que vêm da Cooperação Internacional, a maioria de origem ecumênica. Hoje, entretanto, os recursos estão vindo de um movimento que no Brasil já tem mais de 20 anos, que é a Coleta da Campanha da Fraternidade. Nesse momento, os recursos internacionais que os nossos nove (9) Regionais têm para apoiar pequenas iniciativas, somados, são menores que os recursos nacionais advindos de parcela (40%) da Coleta da Campanha da Fraternidade.. E ambos somados, não devem dar 0,01% dos recursos do BNDES, a agência nacional de desenvolvimento que opera com recursos do trabalhador.

Juros de mercado e os Bancos de Financiamento. A algum tempo, a própria Cooperação Internacional e, em especial, os nossos amigos alemães, um pouco animados (ou pressionados) pelo neoliberalismo europeu daquele momento, estavam nos obrigando a exigir dos grupos produtivos, além do retorno de 100% do empréstimo, taxas de juros de mercado, etc. Considerando a faixa dos excluídos com os quais a Cáritas trabalha, é de absoluta constatação óbvia que os grupos, na linha de sobrevivência, não têm condição de dar conta dessa perspectiva de mercado tal como se propõe. Nesse sentido, a Cáritas se coloca hoje não como um Banco de financiamento. A Cáritas não pretende desenvolver “carteiras de crédito”. A não ser como instrumento-meio da sua ação de desenvolvimento na luta contra a exclusão. A Cáritas acha que é importante, é fundamental que a sociedade desenvolva seus inúmeros mecanismos públicos (governamentais ou da sociedade civil) de crédito popular na perspectiva de finanças solidárias. Há iniciativas de cooperativas auto-gestionáveis de crédito que a Cáritas vem contribuindo para seu desenvolvimento.

Projeto de Desenvolvimento e protagonismo. A reflexão que acontece na Cáritas não é só da Cáritas, não é só no âmbito das ações sociais da Igreja, das pastorais sociais, dos movimentos sociais. Num determinado momento, nos anos 90, nas Semanas Sociais que a Igreja promoveu em todo país, foi se explicitando essa preocupação de retomarmos à idéia de um projeto nacional de desenvolvimento. Como a Cáritas se interpõe como mediadora das relações entre esse mundo dos excluídos, aparentemente desorganizado (não tanto quanto nós afirmamos) e o mundo da elaboração de projetos de desenvolvimento ? Essa ponte precisa estar sendo construída permanentemente. Se pensarmos na perspectiva da radicalização da democracia, tem que ser construída com aqueles que são os mais excluídos e se não for, nós vamos construir um outro Projeto de Desenvolvimento e não aquele voltado para o respeito aos sujeitos humanos. Se não incorporar os segmentos excluídos na sua construção, não é o projeto do nosso sonho, da nossa utopia.

É possível pensar a questão de Desenvolvimento Local no sentido da defesa do meio ambiente, apenas localmente, sabendo que os grandes países há anos definiram que iriam reduzir a sua responsabilidade sobre a camada de ozônio, e não fizeram nada? É possível que nós queiramos resolver a questão da Sustentabilidade Local, sem levar em conta as decisões de ordem internacional no que diz respeito à sobrevivência humana, à vida de todo o planeta?



Políticas Públicas: Legislação, subordinação e autonomia.

Acrescentaria uma última coisa. A Colômbia aprovou uma legislação que define o setor de Economia Solidária como um dos três grandes setores econômicos: tem o setor do grande capital, tem o setor das empresas estatais, e tem o setor da economia solidária. E isso lhe assegura direitos! Eu penso que o fortalecimento desse grande movimento que avança para rever toda uma estrutura de gestão política, da legislação ao crédito, da educação à comunicação, a favor da Economia Solidária pode ser um grande espaço de transformação. Dentro dessa perspectiva, fica mais claro entender o caráter de subordinação que as iniciativas de EPS têm, hoje, no processo de luta no contexto do capitalismo. Por isso mesmo, o avanço de um grande movimento de forças favoráveis à EPS significa sair da resistência apenas, para ocupar espaços de construção de sua autonomia enquanto sujeitos capazes de se contrapor aos projetos que negam a dignidade humana e possam apontar para outra perspectiva de desenvolvimento humano.